Considerada como positiva no combate ao fisiologismo, ao nepotismo ou aos privilégios corporativos ou mesmo àqueles relacionados à renda ou gênero, a meritocracia é uma alternativa lógica para avaliar as pessoas por mérito, legitimando-as.

Tornando-se um ideal social, os defensores da meritocracia costumam reforçar que as conquistas e recompensas da vida – dinheiro, poder, empregos, admissão na universidade – devem ser distribuídas de acordo com a habilidade e o esforço de cada um.

Conceitual e moralmente, a meritocracia é apresentada como o oposto de sistemas como a aristocracia hereditária, na qual a posição social é determinada pela loteria do nascimento. Sob a meritocracia, riqueza e vantagem são a justa remuneração do mérito, não o acaso fortuito de eventos externos”, compara Clifton Mark. Em seu artigo A belief in meritocracy is not only false: it’s bad for you (“A crença na meritocracia não é apenas falsa: é ruim para você”, em tradução livre), Clifton lembra que, no  que Reino Unido, 84% dos entrevistados de uma pesquisa sobre “atitudes sociais britânicas”, de 2009, afirmaram que o trabalho duro é “essencial” ou “muito importante” quando se trata de progredir, e que, em 2016, o Brookings Institute descobriu que 69% dos americanos acreditam que as pessoas são recompensadas pela inteligência e pela habilidade. Os entrevistados dos dois países acreditam que fatores externos, como a sorte e ter nascido em família rica, são muito menos importantes. Essas ideias, difundidas nesses dois países, são populares em todo o mundo.

Na realidade, o termo meritocracia só passou a ser conhecido no Brasil nas últimas décadas, e com um viés mais politizado do que em países como os Estados Unidos, onde ela é encarada como ideologia e profundamente analisada no mundo acadêmico.

No universo das empresas, a meritocracia é vista com bons olhos, observa Lívia Barbosa, autora do artigo Meritocracia à Brasileira: O que É Desempenho no Brasil. Na nossa vida cotidiana, argumenta Lívia, aplicamos a meritocracia de modo quase inconsciente. “Se você precisa pintar a casa, não sairá à procura do ‘pior pintor’. Sempre queremos o melhor. Por que haveria de ser diferente nas empresas?

Vantagem na largada

Um argumento utilizado entre quem defende a meritocracia é que ela acaba com a possibilidade de a criança mais rica ser beneficiada apenas pelo dinheiro. Afinal, se ela não trabalhar duro e não tiver talento, de nada adiantará a sua riqueza – a qual pode até se transformar em desvantagem caso passe a acreditar que tem “a vida ganha” e, portanto, não precisa se esforçar.

O “bom” da meritocracia é que você pode entrar na escola com R$ 2 milhões em imóveis ou sem merenda, mas o seu sucesso depende só de você”. Essa é uma das principais provocações do livroSuccess and Luck: Good Fortune and the Myth of Meritocracy (“Sucesso e Sorte: A Boa Sorte e o Mito da Meritocracia”, em tradução livre, de 2016). Nele, o economista Robert Frank defende que, para obter sucesso, tão fundamental quanto ter talento e se esforçar é ter sorte — e aí está incluso tudo o que foge ao nosso controle, como nascer em uma família rica, frequentar boas escolas ou simplesmente nascer em um país desenvolvido. “Eu não defendo que as pessoas não sejam avaliadas e recompensadas por suas qualificações”, diz Frank. “Mas há muita gente talentosa e trabalhadora no mundo que não chega lá.”

Sendo o Brasil o sétimo país mais desigual do mundo, onde entre 2014 e 2018, a renda dos 5% mais pobres caiu 39% e houve um aumento de 67% na população que vive na extrema pobreza, segundo dados do FGV, uma comparação que ajuda a entender o ponto de quem critica a meritocracia como sistema de seleção e também por que ela tem relação com a desigualdade é que o mercado de trabalho funciona como uma competição para a qual o participante começa a se preparar desde a infância. Existe uma vantagem na largada, quando começam a acumular capital humano, termo usado por nós economistas para denominar o conjunto de capacidades e competências que favorecem a execução de um trabalho. Para isso, contam com três recursos: os privados, os públicos e seus próprios talentos. Como os recursos públicos e, principalmente, os privados não são os mesmos para todos, ao observar somente o final da corrida, o sistema privilegia poucos. “A meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedadedefende o historiador da Unicamp e de Harvard, Sidney Chalhoub

Capital humano

O bilionário Warren Buffett costuma dizer que, “se alguém está sentado à sombra hoje foi porque alguém plantou uma árvore anteriormente”. Isso leva de volta à discussão sobre o capital humano: é muito mais provável e fácil acumulá-lo quando se tem a sorte de crescer em ambientes favoráveis, o que requer dinheiro e um alto grau de investimento público — da educação à saúde e infraestrutura. Segundo Frank, políticas públicas como ações afirmativas para minorias, são importantes para reduzir as desigualdades que podem prejudicar o sistema.

A questão da desigualdade e do capital humano também leva à discussão das cotas raciais e sociais em universidades brasileiras. Embora as cotas existam desde os anos 2000 no Brasil, só em 2012 foi aprovada uma lei que prevê a reserva de 50% das vagas para negros, pardos e indígenas em todos os cursos de universidades federais. O objetivo da lei foi diminuir as disparidades de acesso, já que apenas 6% dos negros conquistam diplomas universitários no país. Hoje, o número de matrículas de estudantes negros e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou, pela primeira vez, o de brancos, representando 50,3% segundo a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, publicada pelo IBGE. Também houve aumento de matrículas de estudantes negros nas universidades privadas, reflexo de programas como o Prouni, que concede bolsas de estudos parciais e integrais a estudantes de baixa renda.

Uma questão de sorte?

Voltando ao livro de Frank, nele são relatados coincidências e eventos improváveis que levaram à ascensão de algumas pessoas, como a de Bill Gates, fundador da Microsoft, assim como ao próprio sucesso de Frank como acadêmico. Não negando o esforço e o talento de pessoas bem-sucedidas, ele demonstra que a ligação entre mérito e resultado é tênue e indireta. Embora haja uma crença de que o mérito, e não a sorte, determina o sucesso ou o fracasso de alguém, essa crença é demonstravelmente falsa segundo Frank. E não é menos importante o fato de que o próprio mérito é, em grande parte, o resultado da sorte. “Às vezes o que chamamos de “garra”, depende muito dos dotes genéticos e da criação de uma pessoa. Certamente há programadores quase tão hábeis quanto Gates que não conseguiram se tornar a pessoa mais rica do planeta.” De acordo com Frank, em contextos competitivos, muitos têm mérito, mas poucos conseguem. O que separa os dois é a sorte.

As pessoas não gostam de ouvir que o sucesso tem a ver com sorte, elas não querem admitir o papel do acaso em suas vidas”, disse o escritor Michael Lewis no discurso para a turma de formandos da Universidade Princeton em 2012.

Autor de A Grande Aposta e Um Sonho Possível, ambos adaptados para o cinema, Lewis narrou uma série de eventos improváveis que o ajudaram a se tornar famoso e bem-sucedido. “Em um jantar na universidade, sentei-me ao lado da esposa de um figurão de um banco de Wall Street, o Salomon Brothers. Ela foi com a minha cara e meio que forçou o marido a me dar um emprego”, descreve. O resultado da experiência virou o best-seller O Jogo da Mentira. “De repente, todo mundo me falava que nasci para ser escritor, mas até eu podia ver que aquilo era absurdo. Afinal, quais as chances de se sentar justamente ao lado da senhora do Salomon Brothers e cair nas graças dela? E o privilégio de poder estudar em Princeton, uma das melhores faculdades do país? Eu tive sorte, e isso não é falsa humildade.”

Egoísmo e comportamento discriminatório

Um crescente número de pesquisas em psicologia e neurociência sugere que acreditar na meritocracia torna as pessoas mais egoístas, menos autocríticas e ainda mais propensas a agir de maneira discriminatória. Um experimento comum nos laboratórios de psicologia é o chamado “jogo do ultimato”. Nele, um jogador (o proponente) recebe uma quantia em dinheiro e é instruído a propor a divisão entre ele e o outro jogador (o respondente), que pode aceitar a oferta ou rejeitá-la. Se o respondente rejeitar a oferta, nenhum jogador recebe nada. Esse experimento já foi replicado milhares de vezes, e geralmente o proponente oferece uma divisão relativamente uniforme. Se o valor a ser compartilhado for de US$ 100, a maioria das ofertas fica entre US$ 40 e US$ 50.

Uma variação deste jogo mostra que acreditar que um jogador é mais habilidoso leva a um comportamento mais egoísta. Em pesquisa na Universidade Normal de Pequim, os participantes jogaram um falso jogo de habilidade antes de fazer ofertas no jogo do ultimato. Jogadores que foram (falsamente) levados a acreditar que tinham “vencido” reivindicaram mais para si do que aqueles que não jogaram o jogo da habilidade. Outros estudos confirmam esse achado. Os economistas Aldo Rustichini, da Universidade de Minnesota, e Alexander Vostroknutov, da Universidade de Maastricht, na Holanda, descobriram que participantes de jogos de habilidade eram muito menos propensos a apoiar a redistribuição de prêmios do que aqueles que se envolviam em jogos de azar.

Algo perturbador é que a simples consideração da meritocracia como um valor parece fomentar um comportamento discriminatório. Emilio Castilla, do MIT, e o sociólogo Stephen Benard, da Universidade de Indiana, estudaram tentativas de implementar práticas meritocráticas, como compensação baseada em desempenho em empresas privadas. Eles observaram que, nas empresas que consideravam abertamente a meritocracia como um valor central, os gerentes atribuíam recompensas maiores a colaboradores do sexo masculino do que às do sexo feminino com avaliações de desempenho idênticas. Essa preferência desaparecia quando a meritocracia não era explicitamente adotada como valor.

Isso é surpreendente porque a imparcialidade é central para o apelo moral da meritocracia, evitando injustiças com base em gênero, raça e afins. No entanto, Castilla e Benard observaram que, ironicamente, tentativas de implementar a meritocracia podem levar à desigualdade que ela pretende eliminar. Eles sugerem que esse “paradoxo da meritocracia” ocorre porque a adoção explícita da meritocracia como um valor convence as pessoas de sua própria boa-fé moral. Satisfeitas por serem justas, tornam-se menos inclinadas a examinar seu próprio comportamento em busca de sinais de preconceito.

Superioridade pessoal

Como qualquer ideologia, parte do atrativo da meritocracia é que ela tenta justificar o status quo, explicando por que as pessoas pertencem ao lugar em que se encontram na ordem social. É um princípio psicológico bem estabelecido para aqueles que preferem acreditar que o mundo é justo.

Entretanto, além da legitimação, Frank observa que a meritocracia também leva à adulação. Quando o sucesso é determinado pelo mérito, cada vitória pode ser vista como um reflexo da própria virtude e valor de alguém. “A meritocracia é o mais autocongratulatório dos princípios de distribuição. Sua alquimia ideológica transforma a propriedade em louvor, a desigualdade material em superioridade pessoal. Ela autoriza os ricos e poderosos a se verem como gênios produtivos. Da mesma forma, fracassos tornam-se sinais de defeitos pessoais, justificando que aqueles que estão na base da hierarquia social merecem permanecer lá [por conta da meritocracia]“, observa.

Há sempre debates sobre até que ponto alguém “se faz sozinha ou sozinho” e os efeitos de várias formas de “privilégio”. Não é apenas sobre quem consegue ter o quê; é sobre o quanto de “crédito” alguém pode receber pelo que têm, é sobre o que seus sucessos permitem que acredite a respeito de suas qualidades internas. “É por isso que, sob o pressuposto da meritocracia, a própria noção de que o sucesso pessoal resulta de “sorte” pode ser ofensivo” avalia Frank. Reconhecer a influência de fatores externos parece minimizar ou negar a existência do mérito individual.

Gratidão e retorno à sociedade

Frank cita um estudo de 2013 feito pelos cientistas políticos Benjamin Page, Larry Bartels e Jason Seawright, das universidades americanas Northwestern e Vanderbilt. Eles mostraram que o 1% mais rico da população é mais resistente que o restante dos americanos a gastos do governo, impostos e regulações. “Quando você acredita ter alcançado tudo sozinho, fica propenso a se recusar a pagar impostos, por exemplo, pois acha que o governo está ‘roubando’ algo seu por direito”, explica. Isso porque quanto mais as pessoas acreditam que mereceram e conquistaram tudo sozinhas, menos elas sentem que devem algo à sociedade.

Pesquisas sobre gratidão indicam que lembrar da sorte aumenta a generosidade. Frank cita um estudo em que apenas pedir para que os participantes lembrassem fatores externos (sorte, ajuda/apoio de outras pessoas) de seus sucessos na vida os tornava muito mais propensos realizar doações do que aqueles que tinham de lembrar de fatores internos (esforço, habilidade). Ele reforça que não se deve deixar de avaliar as pessoas com base em seus talentos e esforços, afinal, de nada adianta você ter a sorte de conseguir uma oportunidade em algo que você não está preparado. “Diga aos seus filhos para trabalhar duro e não esperar por um momento de sorte”, recomenda. “Mas, assim que se tornarem bem-sucedidos, faça-os enxergar o quão sortudos eles foram.”

Crédito da imagem: Lee Kyutae, aka Kokooma.

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Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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