No mundo da culinária, existem alguns preparos básicos que precisam ser dominados para quem um dia pretenda preparar um banquete digno de chefe de cozinha.

Na humildade de uma pessoa que simplesmente gosta de comer, sei que o roux (se fala “ru”), na França, é um preparo que serve de base para várias receitas. Feito com manteiga e farinha de trigo, serve para engrossar caldos, molhos, cremes, sopas e guisados.

Na Itália, antes de preparar um autêntico risoto italiano, é preciso primeiro aprender a cortar as cebolas no tamanho certo.

Aqui no Brasil, há uma expressão popular para isso (e que por coincidência tem a ver com comida!): “fazer bem feijão com arroz”. Ou seja, primeiro domine o básico para depois fazer coisas mais complexas.

Na realidade, essa é a essência da aprendizagem: primeiro aprendemos a andar para depois correr. Aprendemos primeiro a identificar as coisas, para depois relacionar umas com as outras.

Um dos conhecimentos básicos que nos possibilita fazer coisas mais complexas é saber ler e escrever bem. Isso significa se expressar corretamente ao escrever, e também interpretar o que se lê.

Nas sociedades modernas, leitura e escrita têm lugar de excelência como código linguístico que nos dá acesso ao repertório cultural construído pela humanidade. Também nos permitem comunicar ao mundo novas ideias, formando uma cascata infinita de geração de conhecimento que, direta ou indireta, mais cedo ou mais tarde, impactará a vida de todos nós. 

Assim, quando ficamos sabendo do número de crianças e jovens que não aprenderam a ler e escrever durante a pandemia da covid-19, é impossível não nos preocuparmos.

Segundo dados do UNICEF, em 2019, havia quase 1,1 milhão de crianças e jovens sem frequentar a escola. Esse número saltou para 5,1 milhões em 2020 de acordo com a pesquisa “Cenário da exclusão escolar no Brasil”, sobre os impactos da pandemia na Educação brasileira.

E, quando falamos em alfabetização, precisamos destacar que, segundo o estudo “Impactos da pandemia na alfabetização de crianças”, realizado pela organização Todos pela Educação com dados obtidos pelo IBGE, 40,8% das crianças entre 6 e 7 anos no Brasil não sabiam ler e escrever em 2021, sendo negras e pobres as mais afetadas.

Felizmente, diversas iniciativas estão sendo realizadas para contornar e solucionar problemas que, embora já existissem, tornaram-se mais profundos. Uma delas é a busca ativa de crianças e jovens em todos os cantos do país, batendo literalmente na “porta de casa” para tentar trazê-las de volta à escola. Atividades de reforço no contraturno escolar é outra ação feita para tentar diminuir as lacunas de aprendizagem que ficaram no caminho.

Trazê-las de volta e capacitá-las a dominar a leitura e a escrita é o “arroz com feijão” a ser feito nesse momento, mas dados os desafios inerentes às sociedades complexas, ainda há muito pela frente.

Letramento informacional

Numa sociedade baseada na interação digital e na velocidade da informação, saber ler e escrever é a base para o desenvolvimento de uma habilidade essencial para esse novo mundo: Letramento Informacional.

Letramento Informacional (Information Literacy) é definido pela UNESCO como um meio para “empoderar pessoas em todas as caminhadas da vida para que possam buscar, avaliar, usar e criar informação de forma efetiva, e assim, alcançar seus objetivos pessoais, sociais, profissionais e educacionais”. (tradução livre)

Na era pré-Internet, ler e escrever nos possibilitava alcançar objetivos como escrever uma receita no caderno, procurar um contato na lista telefônica, ou acessar informações por meios restritos e de fontes até então inquestionáveis – como livros e professores.

Na era digital, mais do que saber ler e escrever bem, codificar e decodificar mensagens, nós precisamos saber identificar quais informações precisamos naquele momento e por quais meios podemos acessá-las – avaliando a credibilidade das “vozes” que as trazem e identificando fake news –, organizá-las, dar sentido, e utilizá-las para tomada de decisão e resolução de problemas, com ética e significado.

Em um mundo de rápidas mudanças como o nosso, a necessidade de informação se multiplica na mesma velocidade. Assim, além da leitura e da escrita, o letramento informacional tem como objetivo capacitar pessoas a não somente ler, mas refletir e questionar o que se lê, e não só escrever, mas assumir responsabilidade sobre suas palavras.

Pessoas letradas em termos informacionais não só acessam diferentes fontes, como também conectam informações entre si e produzem conhecimento exclusivo e relevante para desafios pessoais, profissionais e até mesmo globais.

Um banquete de desafios

Receitas prontas já não são suficientes para atender aos inúmeros e complexos desafios que temos na nossa sociedade. O que podemos ter é a combinação de saberes que, juntos, geram novos saberes, novas ideias e novas soluções. 

Podemos fazer do limão uma limonada dando início a uma reflexão profunda sobre os caminhos que trouxeram a Educação no Brasil até aqui, e quais os possíveis novos caminhos para o enfrentamento de necessidades urgentes que, certamente, passam por pessoas que não saibam juntar letras e reconhecer palavras, mas que sejam capazes de criar e identificar diferentes sentidos sobre elas.

A sopa de letrinhas pode ser nostálgica e confortável, mas insossa frente ao banquete de desafios que temos à nossa frente.

Ilustração da capa: Amrita Marino

Vanessa Yosioka Collacio

Vanessa é Pedagoga e Comunicadora. Procura contribuir com pessoas e com o mundo desenvolvendo projetos educacionais para desafios reais.

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