Logo no começo da pandemia, fui convidada para participar de uma live na qual se discutia o famoso “pós-normal”. Naquele momento, os participantes refletiram o que tinha acontecido durante os dois primeiros meses de quarentena e como empresas de diferentes setores usaram tecnologia para se adaptar ao distanciamento social. 

Mas a inovação não esteve apenas nos novos apps ou no aprimoramento de infraestrutura para internet, por exemplo. Houve uma mudança comportamental e de percepção sobre certas práticas. “Antes, quem pedia para fazer call em vez de encontrar presencialmente era visto como alguém mal educado, agora é normal”, uma pessoa comentou. É verdade. Quem nunca “perdeu tempo” no trânsito para tomar um café e conversar com um potencial cliente que morava do outro lado da cidade, mas depois nunca mais ouviu falar dele? Um clássico pré-pandêmico.

Agora se tornou comum e recomendado fazer reuniões pela internet ou então optar por outros formatos assíncronos, mensagens de voz, e-mails etc. Tão comum que chegou ao limite: lives, reuniões online, ou até happy hour com os amigos, tudo era feito pela tela e, portanto, passamos a vivenciar a tal “fadiga de tela”. Foi nesse contexto que a startup britânica Synthesia criou uma ferramenta que usa a tecnologia do deepfake, mais conhecida por seu uso pornográfico ou humorístico (como nos conteúdos de Bruno Sartori), para criar avatares ou duplos digitais.

A princípio, a ferramenta foi pensada para ser um clone digital de uma pessoa (basta sentar por 40 minutos em frente à câmera e ler um texto pronto) de modo a utilizá-lo ad infinitum na criação de vídeos que podem ter diferentes finalidades: pitches de negócio, uma palestra curta ou mesmo treinamento de funcionários. Apesar de a Synthetic deixar claro em seus materiais que se trata de uma simulação e que há consentimento por parte do indivíduo “copiado”, certos formatos semelhantes se mostraram tão verossímeis que se tornaram, na verdade, uma forma de burlar esse “novo normal”.

Primeiro, a implementação e melhoramento do fundo falso em aplicativos de conferências como o Zoom possibilitou que as pessoas gravassem vídeos que seriam reproduzidos em loop, assim substituindo o participante enquanto este fazia qualquer outra coisa — até dirigindo. Mais do que um exemplo de que teve gente querendo dar uma de “espertinha”, esse tipo de estratégia só comprova o quanto estávamos tropeçando em estratégias de interação online.

Se, por um lado, muita gente encontra em aplicativos de mensagem ou mesmo em jogos online uma oportunidade para formar laços com pessoas distantes, a pandemia nos obrigou a usar apenas esses canais para poder ter qualquer interação social. A falta de opção levou à irrupção do excesso de telas, o burnout por extenuantes horas de trabalho (que vieram junto ao medo de que as pessoas seriam menos produtivas trabalhando de casa), e até mesmo as questões com a própria imagem, sempre ali refletida em um retângulo na tela. A ferramenta de aceleração dos áudios de WhatsApp também diz muito sobre isso.

A Samsung também criou seus “humanos virtuais” que serviriam como avatares “white label”, enquanto que a Synthesia propõe realmente a criação de um duplo. Apesar de a empresa dizer que responder com um vídeo automatizado é mais “afetivo” do que mandar um e-mail curto, vamos supor que esse tipo de ferramenta seja absorvida pelas pessoas e se torne mais comum, como as reuniões online e o trabalho remoto. 

Será que um dia iremos mudar a percepção de que “mandar um avatar é grosseiro” como reavaliamos a ideia de que “marcar call é mal educado”? Até que ponto a nossa presença física e mental é realmente necessária em certas ocasiões? Até que ponto usar um clone digital pode ser uma vantagem para liberar a agenda ou apenas uma trapaça para mais cobrança por produtividade, como foi no caso do trabalho remoto?

Isso me remete a uma leitura que terminei recentemente, o livro “Klara and the Sun” de Kazuo Ishiguro. Também disponível em português, o romance de ficção científica tem um estilo mais próximo da literatura mainstream e, portanto, pode agradar mesmo àqueles que não são fãs do gênero. 

O livro aborda um futuro próximo no qual crianças podem ter AFs (artificial friends ou amigos artificiais), que são robôs programados para cuidar de crianças e também fazerem companhia. Nesse mundo, ninguém mais vai à escola, mas possui tutores online e marcam com determinada frequência a organização de reuniões de socialização para que os estudantes não estejam despreparados quando se tornarem adultos.

Apesar de certas personagens se manterem claramente contrárias aos AFs, outras acabam cedendo conforme a protagonista, Klara, se demonstra cada vez mais empática e “humana” em suas interações. O que quero dizer com isso é que, apesar de algumas pessoas realmente não mudarem de posição, uma inteligência artificial bem escrita e programada poderia muito bem nos enganar para além do Teste de Turing (quando não se sabe se a pessoa do outro lado da conversa é humana ou não) e nos fazer capazes de amar um objeto (robô ou IA) como um indivíduo — esta é a discussão central do livro.

Diferentes autores trouxeram essa abordagem de maneiras variadas. Ishiguro não é tão otimista, mas talvez ele esteja mais próximo do real do que do pessimismo. Se outrora a ficção científica imaginava ou que máquinas iriam nos extinguir ou que elas iriam ser nossas redentoras, cada vez mais conseguimos ver esse cenário com clareza e maturidade que se adquiriu ao longo do desenvolvimento dessas tecnologias.

Pode ser que nunca nos conectemos com um avatar de uma pessoa existente porque sabemos que há um indivíduo real que está sendo ali automatizado, então o seu uso pode continuar soando rude em certas ocasiões. Por outro lado, vendo projetos como o da Microsoft de querer trazer “os mortos de volta à vida” através de IA, esse tipo de tecnologia pode ganhar uma outra camada de significado para as interações humanas post-mortem e a maneira como lidamos com o luto — como já explorado em “Be Right Back”, episódio de Black Mirror, por exemplo. 

É por conta desse tipo de novidade que futurólogos, tecnologistas e pesquisadores de inovação tecnológica parecem querer viver para sempre para testemunhar o que virá de fato a acontecer. Segundo Aubrey de Grey, estamos muito mais próximos de poder viver 1000 anos se assim desejarmos, o que talvez seja tempo suficiente para ver o que vai sair desse caldo que só começou a esquentar.

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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