Pensar sobre a cidade é uma atividade repleta de temas espinhosos, ainda mais quando se pensa e se age, ou seja, quando se tem um pé em cada canoa, um na reflexão e outro na prática.

Entre todos os temas espinhosos presentes na cidade de São Paulo, aquela mesma, a maior capital da América Latina, o lugar que se convencionou chamar de cracolândia é certamente um dos mais delicados e, por isso mesmo, perigosos de se abordar.

Sucessivos governos vêm tratando o lugar como caso de polícia, com uma rara exceção, um único programa de redução de danos, que ficou no passado. Operações policiais desmontam barracas que vendem drogas, prendem meia dúzia de usuários-traficantes, dispersam os usuários de drogas e não raro pronunciam o fim da cracolândia, que obviamente, nunca acabou e parece, vem ganhando mais força ano a ano.

Antes de seguirmos, ainda que por alguns minutos, livre-se das ideias pré-concebidas sobre a cracolândia, esqueça as imagens dos telejornais, as fotos, tente abstrair tudo que você sabe ou acha que sabe sobre esse assunto.

Um dos pontos que abordaremos é a ideia de que a cracolândia é um lugar, e como todo lugar que se preza, não está restrito a um território. Complicou? Vale lembrar que um lugar é um espaço dotado de significado pelas pessoas, como diz desde sempre a geografia humana, ou seja, um lugar é essencialmente e, ao mesmo tempo, um receptáculo e um emissor de significados para quem se relaciona com ele, e claro, o lugar de uns, tem outro significado para outros e ainda significado nenhum para terceiros, ou seja, lugares são em sua natureza subjetivos e pessoais e por isso mesmo, tribais.

Entender a “craco” como um território é parte do problema, e não será “limpando” essa ou aquela rua que o problema desaparecerá. Em meio a uma sequência de ações de empurra-empurra, os usuários já mudaram de endereço algumas vezes, levando desespero a outras ruas da região central da cidade de São Paulo.

Minha história com o centro, e mais especificamente com a região da cracolândia, não é algo recente. Há tempos tenho interesse direto e indireto por ela, seja pela convivência com amigos que trabalhavam e resistiam naquelas bandas, seja pelos anos que trabalhei, ainda no século passado, no bairro de Campos Elíseos, seja por meu envolvimento em projetos de qualificação urbana no mesmo bairro.

Lembro da primeira vez que ouvi o termo “fluxo”, que é como as pessoas mais próximas ao assunto costumam se referir ao movimento dos usuários de drogas para lá e para cá. Meu amigo Dário José, que era parte do “Pessoal do Faroeste”, grupo de teatro na rua do Triunfo, que ficava bem no meio da confusão, me contava suas experiências ao filmar os usuários para o documentário DizHeróis e ao conviver com o fluxo quase que diariamente. Demorei anos para entender o termo, sempre achei esquisito, como assim fluxo? Não era um lugar fixo? Fluxo de pessoas chegando e saindo, intuí durante anos.

O “fluxo” na cracolândia no início de 2015, na esquina das ruas Cleveland e Helvetia. (Desenho por Marcelo Maffei)

Pois bem, “fluxo” é a melhor definição possível para o fenômeno da cracolândia, afinal o território é absolutamente secundário nessa construção de lugar, não importa se é a rua A, B ou C, na esquina D ou na praça E, a cracolândia segue o fluxo, ou melhor, a cracolândia é o fluxo, simples assim. Barreiras, barricadas não impedirão o fluxo de existir – e de fluir –, e enquanto ele existir, existirá uma craco, ou ainda várias.

Recentemente, li um artigo do meu ex-colega de Folha de São Paulo, João Wainer sobre a cracolândia, que em grande parte despertou minha vontade de abordar esse assunto e de alguma forma tentar contribuir para a discussão de soluções possíveis para o problema, que é de saúde pública no meu entendimento. No artigo, o João apresenta um personagem do fluxo, o França:

“…Usa como argumento uma teoria interessante, de que as pessoas ali são viciadas, não bandidos, e que a grande maioria quer sustentar o vício de forma honesta. Para quem não quer se envolver com o crime, o centro oferece ótimas oportunidades para se fazer dinheiro rápido nas ruas, como reciclagem de lixo, esmolas, prostituição e centenas de outras modalidades de rolos e contravenções.”

O mesmo personagem tem uma explicação bastante inteligente para o fluxo permanecer na região central de SP: a presença da rua Santa Ifigênia, importante polo de comércio de eletrônicos da cidade, onde o lixo eletrônico é fonte de renda para quem, segundo França, quer manter o vício de forma honesta.

Ao mesmo tempo em que a cracolândia é “fluida” ou desterritorializada, numa apropriação comum em meus artigos e livros sobre o termo de Deleuze e Guattari, onde o lugar não está mais necessariamente ligado ao território, o fluxo é a metáfora perfeita para a desterritorialização. Embora exista uma necessidade de proximidade geográfica com a obtenção de recursos como no caso citado, a cracolândia em si, move-se de acordo com a necessidade de seu grupo, reforçando a ideia de que os lugares são feitos pelas pessoas que lhes conferem significado ao mesmo tempo que nos relacionamos com lugares e grupos mais ou menos na mesma medida, já que os grupos definem os lugares ao mesmo tempo que sua identidade e comportamento definem o meu alinhamento ou não com ambos. Em resumo, pertencer a um lugar é, em grande parte, pertencer ao grupo que dá vida àquele lugar.

A cracolândia nunca foi um território, ela é um lugar, e por isso mesmo, sempre existirá onde a comunidade de usuários estiver, gostemos dessa ideia ou não.

Essa leitura nos ajuda a entender as possíveis formas de abordar o problema, mudando o foco para o usuário e o grupo, mais do que para o território em si. Não é uma questão de criar uma cracolândia num terreno longínquo, longe dos olhos da opinião pública e fundar uma comunidade controlada de usuários de crack. O distanciamento fará com que ninguém fique lá, afinal não existe uma rede de suporte para o grupo (recursos, ajuda, etc…). Embora grande parte da opinião pública e dos gestores públicos possam sentir-se tentados à “solução” fácil de isolar os usuários e com isso tirá-los do campo de visão da sociedade, essa atitude além de não ter aderência dos usuários pelos motivos já citados, criaria, caso imposta, uma comunidade com ares distópicos e com o possível domínio de poderes paralelos.

“A imagem do pássaro surge como uma metáfora interessante para ilustrar o modo de vida na cracolândia. A resistência e a resiliência, assim como no caso do pássaro, são histórias de vida que se misturam em situações de extrema vulnerabilidade. A existência cotidiana, como uma atitude política limite, em que a resistência se expressa por um saudável interesse em sobreviver”. – Thiago Godoi Calil (Desenho por Vanessa Pens)

Outro ponto de atenção a respeito do centro da cidade como sendo ponto de parada do fluxo é a quantidade de pessoas que assistem a esse movimento. Ao mesmo tempo que a população é intimidada e muitas vezes sente-se isolada nas suas próprias casas, sem direito a usar os espaços públicos, é essa mesma sociedade que protege o fluxo, uma vez que a presença das pessoas tende a inibir possíveis arbitrariedades cometidas pelas forças policiais, reforçando a ideia de “olhos na rua” de Jane Jacobs, funcionando aqui quase que de forma inversa, já que a presença da comunidade, intimidada, é ao mesmo tempo a garantia de segurança dos usuários do fluxo.

Então qual será a solução?

Embora possa parecer que tenho opinião sobre tudo, opinião não importa, principalmente a minha, de quem não entende bulhufas de saúde pública, mas ao que parece, enquanto as autoridades continuarem a tratar o problema como territorial, a cidade como um todo, moradores, comerciantes, visitantes e usuários, sairão sempre perdendo.

A cracolândia é um comportamento, e como tal não se restringe a um território, e, em muitos aspectos, parece ser uma das faces mais perversas e visíveis da desigualdade social presente no nosso país, sendo a rua, provavelmente, a última instância da desigualdade, o último refúgio. Muitos podem questionar essa relação pensando que morar na rua não necessariamente significa vício em drogas, e, embora isso seja verdade, não é que o se percebe no dia a dia.

Como não bastaria a experiência com meus vizinhos moradores de rua e a observação da transformação de pessoas relativamente saudáveis em usuários subnutridos em poucos anos, fiz uma rápida busca na internet e não precisei ir muito longe, já que o primeiro resultado do Google me levou para um artigo científico que profetiza que de 20 artigos científicos pesquisados, 18 relacionam o vício à situação de rua, ou seja, trata-se muito mais do que uma simples constatação empírica. Numa previsão óbvia e, ao mesmo tempo, distópica, o aumento crescente da população em situação de rua nos levará a um aumento da cracolândia a médio prazo.

Para combater a cracolândia é necessário muito mais do que cacetetes, fuzis e camburões. É preciso mais do que polícia. É preciso menos desigualdade e mais dignidade, é preciso políticas públicas inclusivas, é preciso enxergar os usuários como pessoas que precisam de ajuda, muita ajuda, e isso não é uma tarefa fácil para uma população assustada e acuada, e não exclusivamente como “nóias” ou “walking deads” como são costumeiramente chamados, muitas vezes por quem não tem a menor ideia de como a vida “real” acontece fora do ar-condicionado.

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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