A agricultura foi a primeira revolução tecnológica que moldou a forma de viver da humanidade: determinou a noção de tempo, desenvolveu a nossa capacidade de pensamento de futuro, moldou as regras de convivência em sociedade, estabeleceu os primeiros conceitos econômicos, e estruturou os primeiros mitos religiosos monoteístas.
Passados 10 mil anos, a agricultura segue a sua revolução guiada especialmente por duas megatendências que estabelecem a dinâmica de produção e de consumo. A primeira é a mudança do eixo do poder econômico mundial. Após quase um século de dominância, EUA e Europa já não conseguem manter o crescimento econômico e, sua influência sobre a economia global, vem diminuindo. Enquanto isso, a China e a Índia estão desfrutando de um crescimento econômico sustentado por meio da liberalização do comércio, de reformas econômicas, da livre circulação de capitais e da transferência de tecnologias. Estas duas nações extrapolam a demanda por alimentos de uma forma que não cabe dentro de suas próprias economias.
A segunda megatendência é o inevitável crescimento populacional global. A ONU prevê que a população mundial irá alcançar 9 bilhões em 2050 e 11 bilhões até o final do século 21 e também prevê que a produção de alimentos terá que dobrar até 2050 para alimentar o mundo. Garantir o alimento para toda essa população será um desafio, e é ainda mais complicado pelo impacto das mudanças climáticas na agricultura.
Essas duas megatendências exigem um aumento da demanda por alimentos como nunca visto antes, posicionando a América do Sul, historicamente produtora de alimentos, como solucionadora deste gap. O subcontinente possui um solo rico para a plantação de grãos e pecuária, um clima favorável o ano inteiro e ampla extensão territorial. Estas condições apontam a América do Sul como a fazenda que alimentará o mundo.
Mas, a construção deste celeiro sul-americano passa por duas forças de mudanças vigentes que estabelecem uma encruzilhada no cenário da agricultura da próxima década (2020 a 2030):
A primeira força é o desempenho produtivo, comandada pelos produtores e pelas indústrias, pelo uso de tecnologias de manejo, pelo desenvolvimento da bioengenharia e pela exploração ambiental;
A segunda força de mudança é o desempenho nutricional, puxada pelo consumidor, pelo consumo consciente de baixo desperdício, pelo desenvolvimento de tecnologias para distribuição, movimentos gastronômicos e adaptação ambiental.
Estas duas forças de mudanças são tão polarizadas quanto as opiniões políticas em redes sociais. A primeira, o desempenho produtivo, tem como premissa a lógica de oferta e demanda de mercado. O argumento é simples: o mundo vai precisar de alimento e precisamos aumentar a produção. Neste argumento o produtor rural tradicional terá que ampliar a sua produção através de tecnologias.
Entretanto, o aumento do desempenho produtivo não acontece somente na esfera do produtor. A cadeia toda dos alimentos está em mudança. Em setembro do ano passado, o New York Times publicou uma reportagem de grande repercussão mostrando como grandes multinacionais da indústria alimentícia estão expandindo o seu crescimento de forma agressiva, contribuindo para obesidade e problemas de saúde em populações menos favorecidas. A reportagem cita como exemplo a estratégia da Nestlé para entrar nas favelas do Rio de Janeiro através de centenas de vendedores ambulantes (door-to-door vendors) oferecendo chocolates e salgadinhos. Este é o tipo de situação onde a frase “o açúcar é a nova pólvora” faz sentido, principalmente quando você vê pessoas obesas sem acesso aos alimentos convencionais, sendo diagnosticadas com diabetes.
Bom, mas e o argumento de que “precisamos alimentar o mundo”? Ao tentar responder essa pergunta, muitos vilões e heróis emergem. Se o açúcar é a nova pólvora, causando mais mortes por diabetes no mundo do que armas de fogo tiram vidas, a vida animal também está sendo repensada. É cada vez mais comum a tentativa de continuar produzindo proteína sem tirar a vida de bilhões de porcos, galinhas, vacas e ovelhas que são criadas de forma discutível ao redor do globo. É crescente o esforço para a geração de carne criada em laboratório, sendo que até figurões como Bill Gates e o mega empreendedor Richard Branson tem investido nesta ideia. Na mesma onda, é cada vez mais comum encontrar produtos oriundos de insetos, sejam os próprios insetos preparados in natura ou transformados em farinha para a produção de pães e bolos. Em novembro de 2017 a padaria finlandesa Fazer anunciou que estaria comercializando produtos feitos de grilos a partir de 3,99 euros. Juntamente com a Finlândia outros países europeus como o Reino Unido, a Holanda, a Bélgica, a Áustria e a Dinamarca passaram a permitir a criação de insetos para uso comercial.
E no Brasil?
Em 2016, a rede Globo, lançou a campanha “Agro é Tech, Agro é Pop” com massiva veiculação. Segundo a rede, o objetivo da campanha era “conectar o consumidor com o produtor rural e ao mesmo tempo desmistificar a produção agrícola aos olhos da sociedade urbana”. O esforço da mídia conseguiu difundir o conhecimento sobre a riqueza do agronegócio para o mainstream e, até mesmo, um posicionar a economia agropecuária como líder da produtividade nacional. Entretanto, a campanha não foi unânime, sendo alvo de críticas das mais diversas.
O próprio governo brasileiro, em consonância com o empresariado tem realizado ações para posicionar o país como ingresse fornecedor de carnes e grãos do mundo. No entanto, estas iniciativas não são muito populares. Recentemente o governo tentou a liberalização de espaços de terras da Amazônia para a produção de grãos e pecuária. O projeto sofreu grande resistência da população, envolvendo inclusive ativistas famosos como Gisele Bündchen, e acabou recuando. O mesmo governo, que sofre de baixíssima popularidade, tem como principais apoiadores grandes produtores rurais que tentam expandir suas atividades para se tornarem fornecedores globais.
Estes mesmos produtores dependem fortemente de fornecedores multinacionais de grãos, agrotóxicos e vacinas. Não raro, estas multinacionais são acusadas de forçarem a compra de insumos desnecessários, gerando desperdício e endividamento. Só para você ter uma ideia, segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de consumo de agrotóxicos desde 2008. Enquanto nos últimos dez anos o mercado mundial desse setor cresceu 93%, no Brasil, esse crescimento foi de 190%, fazendo uso inclusive de substâncias não permitidas nos Estados Unidos e na Europa, como glifosato, substância associada ao surgimento de câncer, de acordo com um estudo publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Paralelo a isso, segundo as multinacionais do agronegócio, o aumento da produção de grãos passa necessariamente pelo uso de Organismos Geneticamente Modificados (OGM), conhecidos também como transgênicos, uma pauta polêmica para qualquer governo.
Voltando à encruzilhada da alimentação do futuro, a segunda força de mudança, o desempenho nutricional, traz um argumento onde o entendimento sobre alimentação migra do combate à fome, para a nutrição do corpo, relacionando diretamente saúde com alimentação – algo incomum algumas décadas atrás. Essa mudança de paradigma traz consigo o comportamento do consumidor que cada vez mais se preocupa com a sua saúde e com o que está ingerindo.
Se você é o que você come, é melhor priorizar o melhor que o mundo pode oferecer da melhor forma. Este pensamento fez com que surgissem nas últimas décadas movimentos como a alimentação orgânica, a alimentação natural, o slow food, o vegetarianismo e o veganismo.
Como já comentado, os alimentos continuam sendo bombardeados por agrotóxicos, chegando à nossa mesa frutas e legumes lindos e resistentes, mas recheados de veneno. A busca por alimentos orgânicos torna-se cada vez mais comum uma vez que os consumidores estão amedrontados com possíveis consequências dos agrotóxicos, ainda que não existam estudos conclusivos sobre seus efeitos no ser humano. Essa busca por uma alimentação natural também tem base na crença de que os animais têm sentimentos, o que tornaria a atual estrutura da indústria de carnes uma das maiores catástrofes ambientais causadas pelo homem.
Além do sacrifício de animais confinados, esta atividade é responsável por aproximadamente 14,5% das emissões globais de gases de efeito estufa, segundo a Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas. Isso dispara a preocupação de consumidores informados e preocupados com o impacto que causam no meio ambiente, fazendo com que o consumo em casa ou em restaurantes evite o consumo de carnes e esteja mais orientado para os movimentos de vegetarianos e veganos.
Some a estes movimentos, a preocupação com o desperdício de alimentos, onde em algumas regiões do mundo chegam a 30%, e a preocupação cada vez mais acentuada com a estética a partir de dietas medidas na ponta do lápis. Cria-se uma onda de consumidores ávidos por soluções que atendam a sua necessidade por um consumo mais consciente de alimentos.
Cenários Futuros
Os cenários que se formam a partir do cruzamento destas forças de mudança são promissores e garantem muita discussão. Alguns cuidados devem ser tomados para que uma boa solução não se torne um equívoco. Por exemplo, em outubro de 2017, o prefeito de São Paulo, maior cidade da América do Sul, lançou o projeto “Comida para Todos”. A proposta previa que alimentos descartados por indústrias em condições de consumo seriam processados e transformados no produto Allimento, que recebeu o apelido de ração para humanos. Esta ração seria distribuída para a população que vivia abaixo do nível de pobreza, cerca de 5% dos habitantes da cidade. Ainda que o Allimento garantisse os nutrientes fundamentais para viver, o projeto foi criticado internacionalmente por discriminar pessoas que não tinham acesso à comida. Estando em um dos países que mais produz alimentos no mundo, a proposta foi rejeitada e trouxe à tona a discussão sobre distribuição e acesso aos alimentos no Brasil.
Por outro lado, no início desse ano um novo empreendimento no sul do Brasil tem a ambição de redefinir a alimentação. A empresa UrbanFarmcy se divide em duas frentes: um restaurante e a produção de alimentos através de hortas urbanas. Um sistema bem estruturado de módulos automatizados para o cultivo indoor de vegetais é montado em casas e prédios de uma rede de fazendeiros urbanos que são remunerados para cuidarem das estufas. Os vegetais produzidos nestas fazendas urbanas são coletados a cada 40 dias e se tornam o insumo para o restaurante, que oferece uma refeição pelo ticket médio de R$ 60 (15 euros).
Na mesma linha, há alguns anos vem surgindo o conceito de fazendas urbanas verticais, que ainda não comprovaram a sua viabilidade técnica e econômica, mas que tem atraído o interesse do público e de investidores, a exemplo da Platagon, um conceito que está sendo desenvolvido em Linköping, na Suécia.
Também existem iniciativas que buscam trazer uma ruptura na alimentação a partir de pílulas e shakes que garantem todos os nutrientes necessários para o ser humano, como o Soylent uma febre no vale do silício. Certamente esta é uma solução interessante, mas incapaz de resolver os dilemas trazidos pela alta demanda global por alimentos.
O modelo ideal para desvendar o segredo da encruzilhada da alimentação global ainda não foi revelado, mas algumas experiências, como o UrbanFarmcy, podem estar dando alguns sinais sobre como adequar o modelo produtivo, de distribuição e de consumo de alimentos nas próximas décadas. A América do Sul será fundamental neste processo e o mundo aguarda que os países da região tomem a liderança neste processo de mudança.
Considerando a nossa cultura sul-americana, ao menos podemos esperar que seja um futuro muito mais saboroso do que o Vale do Silício propõe com as 150 pílulas do futurista Ray Kurzweil.
Crédito da imagem da capa: VideoBlocks