“O livro que os filhos de nossos filhos vão nos agradecer por termos lido”, assim define o guitarrista do U2, The Edge, sobre o livro do filósofo australiano Roman Krznaric, Como ser um bom ancestral: A arte de pensar o futuro num mundo imediatista. Nesse livro, Roman questiona como podemos ampliar nossa visão de curto prazo, estendendo nosso horizonte temporal.

A necessidade de pensar no longo prazo nunca foi tão urgente, seja em áreas como saúde pública (considerando, por exemplo, uma próxima pandemia), seja para contornar riscos como desemprego tecnológico, seja para enfrentar uma crise ecológica e ambiental.

A maioria dos gestores e líderes está mais preocupada com relatórios trimestrais ou semestrais; por outro lado, a maioria de nós, está viciada em notícias instantâneas 24 horas por dia. “Queremos respostas para o agora, a todo momento, na política, na economia, no trabalho. Nosso cérebro é ávido por gratificações e recompensas imediatas”, diz Roman. 

Quase ninguém sabe como pensar em longo prazo, segundo Roman. Fundador do primeiro Museu da Empatia do mundo, em suas pesquisas para o livro The Good Ancestor (Como seu um bom ancestral), ele conversou com dezenas de profissionais como psicólogos, economistas, futuristas, funcionários públicos e investidores – todos convencidos da necessidade de estender o horizonte temporal para sair da tirania do “agora” do mundo moderno. No entanto, poucos deles conseguiram dar à Roman uma noção clara de como isso poderia funcionar, e que passos deveríamos tomar para pensar mais em longo prazo.

Roman sugere começarmos com a pergunta: “quanto tempo seria esse longo prazo?” Primeiro, temos que esquecer a visão de “longo prazo” das empresas, que raramente se estende além de uma década. Em segundo lugar, respirar fundo e considerar cem anos como um horizonte mínimo para o pensamento no longo prazo.

Transcendendo nosso egocentrismo, vamos imaginar futuros que podemos influenciar agora no presente, mas que não estaremos mais vivos para participar deles. Para inspirar essa imaginação, Roman cita O Relógio de 10.000 anos (principal projeto da Fundação Long Now, a qual ele é fundador), que foi projetado para que permaneça 100% preciso por dez milênios.

O Cabo de Guerra pelo Tempo

Roman considera crucial que tenhamos uma estrutura mental que identifique diferentes formas de pensamento no longo prazo. Sua abordagem é representada em um gráfico que ele chama de “The Tug of War for Time” ou “Cabo de Guerra pelo Tempo” (veja abaixo). De um lado, seis motivadores do imediatismo ameaçam nos arrastar para a beira do colapso civilizacional. Do outro lado, seis atitudes para pensar no longo prazo que podem levar a uma cultura de horizontes temporais mais longos, ampliando nossa responsabilidade pelo futuro da humanidade.

Cabo de guerra pelo tempo. (Crédito: Nigel Hawtin. Liceça CC BY-NC-ND)

“Essas seis maneiras de pensar em longo prazo”, Roman explica, funciona “como um kit de ferramentas cognitivas para desafiar nossa obsessão com o “aqui e agora”. Elas oferecem um arcabouço conceitual para responder ao que ele considera a mais importante pergunta de nosso tempo: como podemos ser bons ancestrais?

O cabo de guerra pelo tempo é a luta que definirá a nossa geração. Essa luta acontece tanto em nossas mentes quanto em nossa sociedade. O resultado afetará o destino de bilhões de pessoas que irão habitar o futuro.

Motivadores do “curtoprazismo”

Um forte motivador para a visão imediatista é a distração que o mundo digital nos leva. Nossa atenção é o tempo toda “sequestrada” com “cliques e rolagens”. Outro motivador poderoso, desde a Idade Média, tem sido o relógio, seja aquele que fica em nossos pulsos ou visível em nossas telas, dominando nossa vida.

Roman também considera o capitalismo especulativo, tal qual o crash financeiro de 2008 como motivador da tirania do “agora”. Ciclos eleitorais também desempenham seu papel, gerando um presentismo míope em que os políticos mal conseguem enxergar além da próxima eleição. Essa visão de curto prazo é fortalecida em um mundo de incertezas, onde eventos e riscos são cada vez mais interdependentes e globalizados. Algo que acontece em um canto remoto do planeta pode rapidamente engolir o mundo todo.

Além de tudo isso está a nossa obsessão com o crescimento perene – PIB, por exemplo – aumentando as emissões de carbono, e a perda da biodiversidade, em níveis alarmantes. “Somos como criança que acredita que pode continuar enchendo o balão, sem imaginar que ele possa estourar”, Roman compara.

Esses seis drivers são um coquetel tóxico que nos leva a uma visão imediatista e que pode nos levar a uma queda livre civilizacional.

No entanto, Roman sugere seis maneiras de pensar no longo prazo:

1- Humildade perante o tempo profundo: entender que somos um mero piscar de olhos no tempo cósmico

Humildade frente ao tempo profundo (termo cunhado por John McPhee em 1980) consiste em reconhecer que duzentos mil anos são um mero piscar de olhos na história cósmica.

Assim como houve muito tempo antes de existirmos, também haverá muito tempo à frente. “Em seis bilhões de anos, qualquer criatura que esteja por aí para ver a morte do Sol será tão diferente de nós quanto nós somos da primeira bactéria unicelular”, compara Roman.

Mas, por que exatamente precisamos desse senso de humildade temporal para pensar no longo prazo?

O tempo profundo nos faz ponderar possíveis consequências de nossas ações além de nossa existência. Também nos ajuda a compreender nosso potencial destrutivo: em um período de tempo incrivelmente curto – apenas alguns séculos – colocamos em risco um mundo que levou bilhões de anos para evoluir. “Somos apenas um pequeno elo na grande cadeia de organismos vivos, então quem somos nós para colocar tudo em risco com nossa cegueira ecológica e tecnologias mortais? Será que não temos uma obrigação com nosso futuro planetário e com as futuras gerações e outras espécies que virão?”, indaga Roman.

2. Legado mentalidade: boa lembrança na posteridade

Somos herdeiros de legados extraordinários – daqueles que plantaram as primeiras sementes, construíram as cidades onde vivemos e fizeram descobertas médicas das quais hoje nos beneficiamos. “Mas ao lado dos bons ancestrais estão os ´maus ancestrais´, aqueles que nos legaram o racismo e o preconceito que passa de geração para geração e que ainda permeiam profundamente os sistemas de justiça criminal” contrapõe Roman. “Isso levanta a questão de quais legados nós deixaremos para as futuras gerações: como queremos ser lembrados?”, provoca.

O desafio é deixar um legado que vá além do legado egóico (como alguém que quer seu nome em uma ala de uma galeria de arte) ou apenas o legado familiar (como desejar passar propriedades ou tradições culturais para nossos filhos). Se queremos ser bons ancestrais, precisamos desenvolver uma “mentalidade de legado transcendente”, onde pretendemos ser bem lembrados pelas gerações que nunca conheceremos, pelos estranhos do futuro.

Roman propõe que podemos encontrar inspirações, como por exemplo, o conceito Māori de whakapapa (‘genealogia’), que descreve uma linha contínua de vida que conecta um indivíduo ao passado, presente e futuro e gera um senso de respeito pelas tradições das gerações anteriores, ao mesmo tempo em que considera aqueles que estão por vir. No projeto Future Library, todos os anos, um escritor famoso (a primeira foi Margaret Atwood) entrega uma nova obra, que não será lida até 2114, quando serão todas impressas em papel de mil árvores que foram plantadas em uma floresta nos arredores de Oslo. Também há ativistas como Wangari Maathai, a primeira mulher africana a ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Em 1977, ela fundou o Movimento Cinturão Verde, no Quênia, que na época de sua morte em 2011 havia treinado mais de 25.000 mulheres em habilidades florestais e plantado 40 milhões de árvores. Estes são apenas alguns exemplos de como deixar um legado para o futuro.

3. Justiça intergeracional: sétima geração à frente

“Por que eu deveria me preocupar com as futuras gerações? O que elas já fizeram por mim?” É o tipo de pergunta que nos faz pensar sobre a justiça intergeracional. A questão moral aqui não é como seremos lembrados, mas quais responsabilidades nós temos para com os “futuros proprietários” – as gerações que nos sucederão.

“Nós não herdamos a terra dos nossos antepassados. Nós a pegamos emprestada da geração futura” – Provérbio indígena americano.

Uma abordagem que pode ser útil é reconhecer que a população global hoje será facilmente superada por todos aqueles que virão depois de nós. Em um cálculo feito pelo escritor Richard Fisher, cerca de 100 bilhões de pessoas viveram e morreram nos últimos 50.000 anos. Essas pessoas, juntas com as outras 7,7 bilhões atuais, serão superadas pelas 6,75 trilhões de pessoas que devem nascer nos próximos 50.000 anos, se a taxa de natalidade deste século for mantida (veja o gráfico abaixo). Só no próximo milênio, provavelmente nascerão mais de 135 bilhões de pessoas. “Como poderíamos ignorar o bem-estar dessas pessoas e pensar que só o nosso tem valor?”, questiona Roman.

Alguns povos indígenas americanos, como a nação Oglala Lakota, na Dakota do Sul, praticam a ‘tomada de decisão de sétima geração’, levando em conta os impactos de sete gerações a partir da presente. Este ideal rapidamente está se tornando a pedra angular do crescente movimento global de justiça intergeracional, inspirando grupos como Our Children’s Trust (que luta pelos direitos legais das gerações futuras nos EUA) e Future Design no Japão (que promove assembleias para que os cidadãos possam planejar a cidade, imaginando-se pertencentes às gerações futuras).

4. Pensamento catedral: projetos além da vida humana

O pensamento catedral é a capacidade de conceber e planejar projetos com um horizonte muito mais longo, talvez décadas ou séculos à frente e, claro, é baseado na ideia das catedrais medievais. Na Europa, os construtores dessas catedrais sabiam que não as veriam concluídas no decorrer de suas vidas. Greta Thunberg acredita que será necessário o “pensamento catedral” para enfrentar a crise climática.

Um exemplo é o Silo Global de Sementes de Svalbard, no Ártico, que mantém e irá manter em um abrigo rochoso indestrutível, por pelo menos mil anos, mais de um milhão de sementes de mais de 6.000 espécies. Há também movimentos sociais e políticos, como as Suffragettes, que formaram sua primeira organização em Manchester, em 1867, para o direito ao voto feminino. Elas desempenharam um papel revolucionário na história da Inglaterra, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. 

Mas Roman também alerta que o pensamento catedral pode levar a fins destrutivos ou egoístas. Hitler esperava criar um Reich de Mil Anos. Ditadores buscam manter seu poder e privilégios ao longo de gerações, como é o caso da Coreia do Norte. No mundo corporativo, Gus Levy, ex-chefe do banco de investimento Goldman Sachs, uma vez declarou orgulhoso: ‘Somos gananciosos, mas gananciosos de longo prazo, não gananciosos de curto prazo’.

É por isso que o pensamento catedral por si só não é suficiente para assegurar os interesses das gerações futuras. Precisa ser complementado e orientado por outras abordagens, como justiça intergeracional e objetivo transcendente (veja abaixo).

5. Forecasting holístico: imaginar múltiplos caminhos para a civilização

Roman afirma ser preciso mapear as possíveis trajetórias de longo prazo da própria civilização humana – o que ele chama de forecasting holístico – caso contrário, acabaremos apenas escapando das crises que nos atingem. Especialistas em estudos de riscos globais e em planejamento de cenários identificaram três caminhos que ele chama de Breakdown (colapso), Reform (ajuste) e Transformation (transformação).

Três caminhos para a civilização. (Crédito: Nigel Hawtin. Liceça CC BY-NC-ND)

Colapso (Breakdown) é o caminho que seguimos quando insistimos em atingir metas de progresso econômico e material que até faziam certo sentido no século passado. O ponto de colapso social e institucional no curto prazo acontece quando deixamos de responder às crescentes crises ecológicas e tecnológicas e cruzamos, perigosamente, o ponto de inflexão civilizacional.

Uma trajetória provável é o ajuste (Reform), em que reagimos às crises globais como mudanças climáticas, mas de uma forma inadequada ou fragmentada que apenas estende a curva do colapso, em maior ou menor grau. Aqui, os governos depositam sua esperança em ideais reformistas, como “crescimento verde”, “reinventar o capitalismo” ou acreditar que apenas soluções tecnológicas são a resposta.

Uma terceira trajetória é a transformação (Transformation), onde há uma mudança radical nos valores da sociedade e nas instituições rumo à uma civilização sustentável no longo prazo. Saltamos da curva Breakdown para um novo caminho permeado por modelos econômicos pós-crescimento, como por exemplo, a Economia Donut ou um Green New Deal.

Observe a linha pontilhada azul “Disrupções” (gráfico acima). São inovações ou eventos disruptivos que oferecem a oportunidade de mudar de uma curva para outra. Pode ser uma nova tecnologia como blockchain, o surgimento de um movimento político como Black Lives Matter ou uma pandemia como a da covid-19. O pensamento de longo prazo requer direcionar essas disrupções para uma mudança transformativa.

6. Objetivo transcendente: esforçar-se para prosperar no planeta

“Cada sociedade precisa de um objetivo de longo prazo e um projeto sagrado para guiá-la”, escreveu o cientista e astrônomo Carl Sagan. Embora a meta de progresso material tenha nos servido bem no passado, agora entendemos melhor seus danos colaterais: combustíveis fósseis e resíduos nos empurraram para o Antropoceno, uma nova e perigosa era caracterizada por uma tendência ascendente em indicadores planetários prejudiciais chamados a Grande Aceleração (veja o gráfico).

Aqui, nosso objetivo principal deve ser aprender a viver dentro da biocapacidade do único planeta que conhecemos e que sustenta a vida (antes de pensarmos em mudar para Marte ou outro planeta). Este é o princípio fundamental do campo da economia ecológica desenvolvido por pensadores visionários como Herman Daly: não use mais recursos do que a terra pode regenerar naturalmente (por exemplo, apenas corte madeira tão rápido quanto ela pode voltar a crescer), e não crie mais resíduos do que pode absorver naturalmente (portanto, evite queimar combustíveis fósseis).

De acordo com a Global Footprint Network, atualmente usamos o equivalente a 1,6 planeta Terra a cada ano. “Isso é o tipo de visão de curto prazo mais letal que existe. Uma meta transcendente de prosperar no nosso planeta é nossa melhor garantia de um futuro de longo prazo. E fazemos isso nos preocupando tanto com o lugar quanto repensando o tempo”, explica Roman.

Vencendo o cabo de guerra contra o curtoprazismo

Esse é um kit de ferramentas cognitivas que pode ser usado para que a humanidade possa prosperar ao longo dos séculos e milênios que virão. Roman reconhece que nenhuma dessas seis maneiras (ou atitudes) funciona sozinha para criar uma cultura de longo prazo, mas juntas – e quando praticadas por uma massa crítica de pessoas e organizações – pode fazer emergir uma nova era de pensamento de longo prazo.

Podemos vencer o cabo de guerra contra o curtoprazismo?

“Somente uma crise – real ou percebida – produz uma mudança real”, escreveu o economista Milton Friedman. De crises e guerras surgiram instituições pioneiras que perduram, como a Organização Mundial da Saúde. Da mesma forma, de uma crise global como a da covid-19, podem surgir instituições de longo prazo de que precisamos para enfrentar os desafios de nosso próprio tempo: mudanças climáticas, ameaças tecnológicas, racismo e desigualdade enraizados em nossos sistemas políticos e econômicos. Agora é o momento de expandir nossos horizontes em um “agora mais longo”.

Crédito da imagem da capa: Fabrizio Boni

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

Ver todos os artigos