Acredito que um dos grandes desafios da nossa era seja a alienação de uma parcela da sociedade. O pensamento livre, independente, é uma necessidade nesses tempos complexos caracterizados também pela desigualdade educacional e, ao mesmo tempo, pelo excesso de informação e de fake news. “Sendo o direito à informação a extensão natural do direito à educação, para aqueles que a transmitem, seria uma função social à serviço da emancipação intelectual”, como disse René Maheu, que foi professor de Filosofia e Diretor Geral da UNESCO (1961 a 1974).

Líderes com ambições autoritárias e líderes antidemocráticos, para consolidar seu poder, costumam atacar pessoas e instituições que produzem conhecimento e informação. Preferiam que ninguém pensasse com independência e clareza e essa intenção é facilitada com o fenômeno da “mentalidade de rebanho”, em que membros individuais de uma multidão subvertem sua vontade à vontade unificada da massa.

Nos Estados Unidos, a expressão “Maria vai com as outras” é conhecida como sheeple, junção de sheep (ovelha) com people (pessoas). Um estudo feito na Universidade de Leeds, no Reino Unido, intitulado “Ovelhas em roupas humanas – cientistas revelam nossa mentalidade de rebanho”, comprova a tendência que muitos têm de agir inconscientemente seguindo a multidão, como se não possuíssem uma mente capaz de raciocinar. O estudo mostra que é preciso apenas uma minoria de cinco por cento para influenciar a direção de uma multidão – e que os outros 95% seguem sem perceber.

Nós todos já passamos por situações onde fomos “levados” por uma multidão. Mas o que é interessante sobre esta pesquisa é que nossos participantes acabaram por tomar uma decisão por consenso. Na maioria dos casos eles não perceberam que estavam sendo conduzidos por outras pessoas.” – Professor Krause, Universidade de Leeds.

O professor de Filosofia da Universidade de Durham, Peter West, em um artigo que escreveu recentemente à Aeon, resgata a contribuição que a filósofa britânica Susan Stebbing teve para o pensamento independente. Em um livrinho de bolso, publicado pela primeira vez em 1939, intitulado Thinking to Some Purpose, Susan buscou evidenciar a relevância do livre pensamento e da lógica para a vida cotidiana, e fez isso com senso de urgência, ciente das nuvens sombrias que se aproximavam da Europa naquela época.

Susan foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira de Filosofia no Reino Unido, em um universo quase completamente dominado por homens. Começou sua vida profissional publicando e assinando apenas como L S Stebbing (“Lizzie” é seu primeiro nome) porque receava que gênero ou status pudessem enviesar debates filosóficos. Em 1933, foi nomeada professora titular em Filosofia – na Bedford College, onde passou grande parte de sua carreira. Embora na ocasião, essa conquista tenha sido amplamente noticiada, Susan é pouco conhecida fora dos círculos acadêmicos especializados e não possui a aura mítica que cerca ‘grandes’ filósofos como Bertrand Russell ou G.E. Moore (ambos seus contemporâneos). Ela não é tão conhecida quanto outras filósofas que emergiram no período pós-guerra, como Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Iris Murdoch e Mary Midgley.

Lizzie Susan Stebbing fotografada em 1939 por Howard Coster. Foto © National Portrait Gallery, Londres

Nascida em Londres, em 1885, e educada em Cambridge e King’s College, Susan morreu de câncer, em 1943, com apenas 57 anos. Desde criança, se interessava por problemas filosóficos, e para ela, a filosofia não tratava apenas de resolver problemas mapeados por ‘homens’ em Cambridge ou Oxford, mas era um modo de vida – e, como tal, não exigia educação universitária ou publicações em instituições acadêmicas de prestígio. Contraditoriamente, suas credenciais acadêmicas são extraordinárias. Entre 1924 e 1939, publicou pelo menos um artigo por ano nas principais revistas de Filosofia da época. Seu nome era conhecido pela maioria dos filósofos. No entanto, sempre se interessou em fazer coisas que realmente resolvessem problemas, e não apenas ficar pensando neles. Por exemplo, entre os anos 1930 e 1940, dedicou uma quantidade considerável de tempo e energia para garantir a segurança de refugiados vindos da Alemanha e de países ocupados pelos nazistas.

Em Thinking to Some Purpose, ela busca sensibilizar os leitores sobre como a Filosofia pode ser benéfica para o mundo real. Também os ensina como praticá-la. O livro é tido como um manual de ‘primeiros socorros’ para clarificar o pensamento, mostrando como detectar, nos processos mentais, a falta de lógica tanto de outras pessoas e como evitá-la em nós mesmos.

Ao sugerir aos seus leitores que precisam aprender a pensar com clareza, propiciando meios para isso, Susan se soma a uma longa lista de filósofos conhecidos como “livres pensadores”. O Livre Pensamento remonta ao Iluminismo europeu e originalmente rejeitava a autoridade religiosa e o dogma acadêmico à luz dos novos desenvolvimentos da ciência. Essencialmente, os livres pensadores pressionavam por uma democratização do conhecimento e acreditavam que as pessoas deveriam seguir sua própria razão ao invés da Bíblia ou de antigos textos filosóficos. Thinking to Some Purpose inclui até uma citação de Anthony Collins, filósofo do século 18, extraída de sua obra A Discourse of Free-thinking (1713):

se temos o direito de conhecer toda e qualquer verdade, temos o direito de pensar livremente … não há outra maneira de descobrir a verdade.

Assim como os livres pensadores dos séculos 17 e 18, Susan acreditava que deveríamos evitar “autoridades” como fonte de conhecimento; em vez disso, confiar em nossas próprias habilidades racionais. Acreditava que as pessoas somente são verdadeiramente livres quando são capazes de pensar com clareza. Para ela, escrever enquanto a sombra do fascismo cobria a Europa na década de 1930, era algo urgente. No Epílogo de Thinking to Some Purpose, ela escreve que, “Sem liberdade de espírito, nenhuma instituição democrática pode ser mantida de forma satisfatória.”

Peter West observa que Susan traça uma linha entre liberdade política e econômica – dois tipos de liberdade que nações democráticas tradicionalmente defendem – e liberdade de espírito. “Para ela, libertar a própria mente é, exclusivamente, uma responsabilidade pessoal, e é dificultada pela ignorância. As pessoas podem parecer livres, porque vivem em uma democracia liberal, mas essa aparente liberdade pode ser ilusória. A liberdade genuína consiste em saber como pensar de forma independente e livre”, diz.

Para ilustrar esse ponto de vista ao leitor, Susan usa como exemplo uma experiência pessoal: em maio de 1926, quando aconteceu a greve geral do Reino Unido, a maior já registrada em solo britânico, ela ignorava completamente os eventos que desencadearam essa paralisação. Sua falta de informação a impedia de opinar sobre a greve, uma vez que não conseguia pensar profundamente sobre o assunto por si só: “Minha ignorância tornou-me não livre”, escreve.

Mas o que é ter um pensamento independente e claro? Um passo importante, para Susan, seria saber como evitar maus hábitos de pensamento, como por exemplo, o que ela chamava de “pensamento enlatado ou condensado“, ou seja, uma simplificação de ideias usando caracterizações ou frases de impacto. Frases cativantes podem simplificar visões mais matizadas ou sofisticadas e esconder as complexidades de uma ideia. Como exemplo de pensamento condensado, ela aponta para aquelas pessoas que afirmam que a psicanálise freudiana pode ser encapsulada na frase “Tudo é sexo”, dando a impressão falsa de que a teoria de Sigmund Freud limita tudo ao sexo, é simplista e (pior de tudo) faz com que as opiniões de Freud pareçam ridículas”. Susan explicava que deveríamos evitar expressar ideias de forma “condensada” e sempre parar para examinar metáforas usadas em discursos públicos. Ela explica isso em uma metáfora (não muito agradável aos veganos):

Carne enlatada (condensada) pode ser uma forma mais conveniente de se fazer uma refeição rápida; pode ser saborosa, mas seu valor nutritivo é inferior ao da carne fresca, embora a carne enlatada tenha vindo da carne fresca. Da mesma forma, uma crença condensada é conveniente; pode ser enunciada de forma simplificada e breve para atrair a atenção.

Nessa metáfora, ela quer dizer que o pensamento encapsulado pega algo que tem  alto “valor nutritivo” (carne fresca) e o embala de forma que seja mais fácil de vender ou convencer, porém mais difícil de ser genuíno. O pior tipo de pensamento condensado seria o hábito de repetir palavras e frases ‘como papagaios’ sem nenhum pensamento ou crítica por trás.

Outro mau hábito seria o uso ambíguo de palavras. Susan enfatiza que palavras são ferramentas usadas em contextos específicos e que o significado delas pode mudar dependendo de onde e quando são faladas ou escritas. Pistas mais sutis (“um gesto, um tom de voz, uma carranca ou um sorriso”) podem indicar mudança no contexto, mas nem sempre são captadas pelo interlocutor. Nas conversas do dia a dia, isso pode não causar problema, diferente quando as palavras são usadas de forma ambígua em debates públicos importantes. Ela dá o exemplo da palavra “não intervenção” no contexto da guerra civil espanhola na década de 1930. Em sentido literal, ‘não intervenção’ significa ‘não intervir’, mas durante a guerra civil foi associada à ‘neutralidade’, sendo usada por todo os lados do espectro político, de forma diferente de seu significado literal. Para evitar essa ambiguidade, ela recomenda que devemos deixar o mais claro possível para as pessoas como estamos usando certos termos e em que contexto: pensar (e falar) claramente é a chave para uma conversa, fala ou discurso bem-sucedido.

A visão de mundo apresentada em Thinking to Some Purpose, é essencialmente democrática. Cada pessoa tem capacidade de pensar com clareza, apenas pode não saber como, e para evidenciar isso, Susan usa o exemplo de Emily, uma criança que, após ser repreendida por uma enfermeira que ‘ninguém toma sopa com garfo’, responde: ‘Eu sim, e eu sou alguém´. Isso seria uma prova de que pessoas, mesmo crianças, podem raciocinar e identificar uma falsa generalização. Tal exemplo mostra que todos nós temos potencial para fazer o que pessoas lógicas fazem; ou seja, elas não apenas discordam de certas afirmações, mas descobrem o que há de errado com o raciocínio que está por trás delas.

Peter West nos lembra que Thinking to Some Purpose é um produto de seu tempo. Entre as décadas de 1930 a 1950 houve um aumento no número de autodidatas, pessoas que não puderam frequentar a universidade, mas mesmo assim tinham fome de conhecimento. A série da Pelican – a qual Thinking to Some Purpose fazia parte – foi criada para alimentar essa fome. Como dizia o próprio Allen Lane, criador da série, os livros seriam “outra forma de educação para pessoas que, como eu, deixaram a escola aos 16 anos”. Susan claramente acolheu o espírito da iniciativa de Lane e começou a fazer pela Filosofia o que outros livros da Pelican fizeram pela história, literatura e ciências.

Thinking to Some Purpose é um conteúdo filosófico importante não apenas por razões históricas. Hoje, mais do que nunca, filósofos estão buscando formas de promover habilidades e ideias fora das universidades. Por exemplo, há vários podcasts de Filosofia que são muito ouvidos, e livros que são best-sellers. Filósofos já estão publicando volumes sobre a pandemia da COVID-19 e como lidar com ela.

Para Susan, uma das funções da Filosofia seria nos ajudar a pensar com clareza. Isso requer não apenas acessar informações relevantes, mas também saber o que fazer com elas. O objetivo é desenvolver nas pessoas habilidades de pensamento que sejam aplicáveis ​​em uma variedade de contextos. Isso significa mais do que apenas transferir o conhecimento de um especialista para um público passivo. Seria uma via de mão dupla. Não se assemelha a um ambiente universitário tradicional, onde um professor ou palestrante entrega conhecimento a um aluno. Em vez disso, requer um público que seja proativo e ávido por adquirir conhecimento da maneira certa. Susan explica:

Um educador tem dois objetivos principais: transmitir informações e criar em seus alunos hábitos mentais que lhes permitam buscar conhecimento e ter a capacidade de formar um julgamento independente com base em fundamentos racionais.

Grande parte do nosso modelo educacional adota a abordagem em que o conhecimento é transferido de um especialista para um público leigo ou inexperiente. Susan, no entanto, defendia e praticava uma abordagem em que o público se envolveria ativamente, estando equipado com ferramentas de aprendizagem (formas de pensar) aplicáveis em qualquer domínio de conhecimento.

O livro de Susan é único por ter sido escrito como resposta às ameaças à liberdade individual que ela via aumentar no mundo. Foi concluído em novembro de 1938, pouco menos de um ano antes do início da Segunda Guerra Mundial. Enfatizou o valor do sistema democrático e fez questão de apontar maneiras pelas quais esse sistema pode ser ameaçado caso as pessoas não se esforcem para pensar com independência tanto como indivíduos quanto como nação. Nossa própria liberdade estará em jogo se não aprendermos a pensar com clareza.

Ilustração da capa: Badass Genius

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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