Talvez nunca tenhamos sentido, de forma tão urgente, a necessidade de pensar coletivamente e de entendermos que somos interdependentes. As soluções não dependem de um, mas de muitos.
A humanidade já passou por várias crises financeiras e grandes desastres ambientais. Vivenciou guerras e fome. Algumas crises resultado das nossas próprias escolhas. Mas, continuamos insistindo num modelo vencido, onde impera o pensamento individualista e egocêntrico.
Nesse momento de mundo, vivemos três tipos de desconexões (Scharmer, Kaufer, 2014). A primeira delas é com a natureza. Nossa relação com o planeta é distante. Os recursos são escassos, mas não acreditamos. Pensamos que dominamos a natureza, mesmo com todas as catástrofes que nos deixa reféns dela. Não plantamos mais quase nada e nem a greve dos caminhoneiros foi suficiente para mostrar a nossa dependência das “coisas prontas” e das prateleiras dos supermercados. Na realidade, durante a greve, revelamos o nosso egoísmo ao encher o carrinho com uma quantidade de produtos que nem chegaríamos a usar, pois o gás acabaria antes. Mas não pensamos nisso, nem no outro, nem em compartilhar.
A segunda desconexão ocorre entre nós e o outro. Aproximadamente 2,5 bilhões de pessoas sobrevivem com menos de 2 dólares por dia (dados do Banco Mundial, 2012). Acreditamos piamente que isso não é problema nosso. Observamos tudo à distância, afinal “enquanto minha família estiver protegida, tudo bem”. Mas não está! O professor israelense de história, Yuval Harari disse recentemente que “existem centenas de milhões de pessoas em todo o mundo que carecem de serviços de saúde básicos. Isso coloca em perigo todos nós”. Se não fosse assim, por que uma pandemia que começou na China nos afetaria?
E a terceira desconexão acontece entre o eu atual e o eu do futuro que emerge. Esse divisor se manifesta em dados estatísticos cada vez mais alarmantes de estafa e depressão, que representam a lacuna crescente entre as nossas ações e quem verdadeiramente somos (nossa essência). Há uma insatisfação interna crescente e tentamos compensar com o consumo de qualquer coisa, fortalecendo-nos como um “ter humano”. Não sentimos culpa porque pensamos: “Merecemos, afinal trabalhamos tanto”. Mas, infelizmente, comprar exageradamente ameniza apenas temporariamente o vazio que cresce no peito. O acúmulo de coisas pesa dentro de casa, no bolso, no corpo, na mente e, sobretudo, deixa marcas profundas na Terra e nos seus recursos finitos, cruciais para a nossa própria existência.
Viver desconectado da natureza, do outro e de nós mesmos impacta a todos porque vivemos num sistema interdependente. Mas não conseguimos nos dar conta, apesar de ser visível. O abismo social, a fome, a violência, a poluição, os desconfortos mentais, o individualismo, tudo se apresenta de forma feroz no nosso cotidiano. Sentimos o cheiro podre das águas de rios e mares, mas mantemos os esgotos sem tratamento jorrando na fonte que nos abastece. Conhecemos o processo de muitos alimentos altamente industrializados, mas não rejeitamos o que vai para dentro do corpo, nossa primeira casa. Corremos feito zumbis sem ter tempo para o que realmente interessa. Adiamos a vida para as férias, para a aposentadoria, para um dia.
Se estamos tão desconectados a ponto de não conseguirmos enxergar as ameaças materializadas diariamente na nossa jornada, como poderíamos temer algo invisível como um vírus? O estilo competitivo e apressado da vida atual tem dificultado a visão de outras realidades. O que embaça nossa visão? A janela do carro, a altura do apartamento, o muro da casa, a ganância, o confinamento do nosso eu?
Paralelamente há vários movimentos, ampla literatura, escolas e experiências empurrando aos poucos a sociedade do agora para uma mudança nos níveis de consciência, estimulando uma nova forma de viver. Iniciativas mundiais como Gaia Education, Transition Towns, Movimento Orgânico, escolas como Schumacher College, as próprias ecovilas, a permacultura e muitos outros revelam alternativas possíveis de ser e estar nesse mundo.
Em pleno início do século, o que pode acelerar essa transição é a COVID-19. Com ela, a ilusão de que podemos controlar tudo finalmente ruiu. Não se trata de esperar pelas consequências mais severas das mudanças climáticas para daqui a 20 anos. Ela chegou rapidamente e em duas semanas nos obrigou a repensar nossos hábitos, a forma de trabalhar, valores, crenças, saúde, relacionamentos, a lidar com o medo, a conter o consumo, enfim, a rever a nossa maneira de viver.
Esse vírus invisível, mais presente do que nunca, pode ser um impulso para ampliar a nossa consciência porque nos forçou a parar. A ter tempo em casa. A conviver com os pais. A interagir com os filhos. A voltar a cozinhar. A lidar com o lixo que geramos. A compartilhar. A cooperar. A pensar no outro porque senão não salvaremos a nós mesmos. A enfrentar nossas sombras. A usar álcool gel. A compreender que muitos não têm água e sabão. A ficar longe para voltar a estar perto. A lidar com opiniões antagônicas, quando a escolha é entre a saúde ou a economia. Esse invisível mobilizou o mundo e talvez possa contribuir para finalmente entendermos a teia da qual fazemos parte: nós, o outro, o meio ambiente.
Paralelamente há muitos com pressa de voltar ao mundo de antes, àquilo que considerávamos “normal”. Mas esse mundo, exatamente como era, não existe mais. Forçosamente teremos que mudar nossos comportamentos e usar máscara é apenas um deles, provavelmente o mais simples.
Scharmer, Otto. & Kaufer, Katrin. 2014. Liderar a partir do futuro que emerge – a evolução do sistema econômico ego-cêntrico para o eco-cêntrico. Elsevier Editora Ltda.
Crédito da imagem da capa: Lee Kyutae, aka Kokooma.
obrigada pela aula
Excelente reflexão!
Parabéns 🕊️🦋❤️😘🙋🏽
Oi Regina, sua abordagem das três desconexões é fantástica. Realmente esse momento é um divisor emocional e comportamental para humanidade. Adorei quando você nos traz exemplos positivos. Parabéns
Regina, perfeito o seu texto!
Traduz totalmente os meus pensamentos e sentimentos em relação ao momento que vivemos.
Desejo, imensamente, que as pessoas consigam enxergar essa situação, como uma oportunidade de rever sua existência.
Eu já estava nesse caminho de transição, e esse momento só o fortaleceu.
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