Corria o ano de 1969. Naquele dia, eu havia participado de um campeonato de natação onde tinha nadado duas provas individuais e um revezamento. Assim como toda a meninada, estávamos só pensando no filme 2001: uma Odisseia no Espaço que iria passar à noite no cinema do Centro Tecnológico de Aeronáutica, em São José dos Campos, onde morávamos. Na primeira parte do filme, fiquei atento ajudado pela música de Strauss. Após a cena em que o macaco lança um osso em direção aos céus, o filme entra numa fase de música suave e confesso que entrei num sono agradável. Acordei assustado na cena em que um dos passageiros da aeronave falava com alguém na terra através de um monitor. Achei o máximo, mas pensei: será isto um dia possível?

Contei esta historinha para me posicionar em relação ao tempo. Este filme foi um sucesso na época e para nós, crianças, 2001 era um futuro por demais distante. O tempo passou, fiz faculdade de medicina e residência em cirurgia vascular e tentei de todas as formas me manter atualizado com as inovações tecnológicas na minha especialidade. Uma palestra do Dr. Leonardo Aguiar, da Laduo Cocriação em saúde, em 2017, me deixou fascinado e ao mesmo tempo preocupado. Ele lançou uma pergunta e um desafio: Como se manter relevante como médico na era pós digital? Após concluir uma formação de quatro meses sobre o tema, e por coincidência com esse mesmo médico, comecei a observar, com maior conhecimento de causa, os colegas e estudantes de medicina ao meu redor e percebi que não há um debate ativo com a classe médica, e nem na formação dos estudantes sobre o futuro e como devemos nos posicionar e nos preparar para o amanhã.

A tentativa do Conselho Federal de Medicina de normatizar a telemedicina, demonstrou o intenso desconhecimento da classe sobre o assunto. Declarações furiosas correram nas redes sociais e ficou patente para mim que os colegas se encontravam à beira de um ataque de nervos.

De forma cada vez mais rápida, o médico vê o seu modo de vida deteriorar. O outrora dono da verdade, respeitado e bem remunerado profissional vê sua renda cair drasticamente, fruto da abertura de mais de três centenas de faculdades médicas e da verticalização dos planos de saúde.

Vê também seu conhecimento ser confrontado com o “Dr. Google” e pela obediência aos protocolos e fluxos da medicina baseada em evidências. Se depara com a afirmação ainda de 2012 de Vinod Khosla, milionário do vale do silício, de que as máquinas irão substituir 80% dos médicos. Corroborando esta ideia, em 2016, o Prof. Geoffrey Hinton dizia: “É bastante óbvio que devemos parar de treinar os radiologistas, pois os algoritmos de percepção de imagem logo serão demonstravelmente melhores do que os humanos”. Artigo de março de 2020, na revista médica “The Lancet”, confirma esta afirmação (volume 2, Issue 3, PE 138-148), March 01,2020).

O aparecimento cada vez maior de equipamentos prontos para substituir o trabalho do médico continua. O computador Watson, da IBM segue aumentando sua capacidade de diagnóstico. Scanners de corpo diagnosticando doenças apenas com a simples passagem sobre o paciente. Vários aparelhos de bolso (point of care), disponíveis no mercado, já estão qualificados para acompanhar várias situações clínicas. Prontos para disparar um aviso para o paciente, seu médico e para o serviço de emergência. Corra! Você está sofrendo um infarto.

O tema é vasto e difícil de sintetizar. Poderíamos falar na medicina de precisão, na inteligência artificial, na realidade ampliada, na robótica, no Big data, na internet das coisas, mas minha intenção é apenas sensibilizar os profissionais da medicina para algo mais importante. Tenho a opinião de que vai haver um refluxo rápido no número de faculdades de medicina. O mercado não vai absorver os quase 40 mil médicos formados ao ano. Aos 20% dos médicos necessários, segundo Vinod, será obrigatório estarem plenamente aptos para acompanhar as transformações digitais. Por outro lado, estes médicos não podem ser apenas técnicos frios como os equipamentos que utilizam. As pessoas adoram as novidades tecnológicas, como mostram várias pesquisas, mas adoram mais uma capacidade chamada empatia, carinho, acolhimento. Nada pior que ser atendido por um médico que mal o cumprimenta, mal o examina e mal o enxerga. Por outro lado, atendendo pessoas carentes no estado da Paraíba me pergunto: Quando toda esta tecnologia vai chegar a esta gente?

Um trecho do livro A Nova Medicina, do Dr. João Lobo Antunes, neurocirurgião português acho que resume tudo que penso:

Não sei o que me espera mas sei o que me preocupa: é que a medicina empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão”.

No tempo dos cuidados centralizados no paciente não devemos esquecer estes ensinamentos.

Imagem da capa: cena do filme “2001: uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Foto: divulgação.

Dr Douglas Faria Correa Anjo

Médico formado pela universidade federal do Rio Grande do Norte. Especialista em angiologia e cirurgia vascular SBACV/AMB. Ex-presidente da Unimed Jaraguá do Sul/SC.

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