Há alguns dias, foi publicada a notícia de que a rede de restaurantes Freshii passou a usar um novo sistema de atendimento remoto. Um cliente observou, durante sua compra em uma unidade física em Ontário, no Canadá, a presença de uma tela através da qual um funcionário fazia atendimento remotamente. Essa tela seria fornecida pela empresa Percy.
A questão é que o funcionário não estava trabalhando remotamente devido a adequações à covid-19 ou simplesmente porque a empresa descobriu que mesmo trabalhos em lanchonetes poderiam ser virtualizados. Na realidade, o ultraje gerado pela notícia tem a ver com o fato de que o funcionário estava situado na Nicarágua e ganhava 3,75 dólares canadense por hora de trabalho – um valor muito abaixo da média canadense.
Curiosamente (ou não), a Freshii se autointitula uma rede de restaurantes que oferece comida saudável e de preço acessível. Sabemos que no universo do varejo, por exemplo, preços mais baixos geralmente envolvem algum tipo de manobra duvidosa, como funcionários sendo mal pagos ou até mesmo a existência de condições de trabalho análogas à escravidão. Nas redes alimentares, no entanto, parece que isso não havia ficado tão evidente. Mesmo que aplicativos já estejam tão disseminados, a única ponta realmente humana com a qual temos contato é o entregador e não o suporte.
Na realidade, quando pensamos em call centers e sistemas de atendimento ao consumidor, já é bastante comum que empresas terceirizem pessoas de todos os lugares do mundo para que o serviço funcione 24 horas ou simplesmente para tornar o setor mais barato e/ou eficiente.
Na Europa, é bem comum você precisar usar algum aplicativo de autenticação e ter que mostrar, em uma videoconferência, o seu documento para que um ser humano confirme a legitimidade. Apesar de já existirem tecnologias de reconhecimento de documentação que conseguem escanear, por exemplo, um passaporte, e identificar se o documento é válido ou não, ainda há algumas empresas que optam por esse tipo de atendimento mais “analógico” ou até “humanizado”, dependendo da narrativa da empresa.
A verdade é que estamos nesse entre-períodos de baixa e total automação e, para chegarmos na outra ponta, é preciso fazer adaptações que demandam investimento financeiro e humano. Apesar de o grande temor ser a automação substituindo ou eliminando ofertas de emprego, o que se tem visto é que “trabalho escravo é mais barato do que automação”:
“Conforme a revista Globo Rural, que disse, no mesmo dia que os patrões estão acelerando a retomada de projetos de automação, também disse que, devido ao baixo custo de mão de obra no setor, atrasa o avanço da automação. Ou seja, a única verdade é que, em primeiro lugar, não existe nenhum interesse dos patrões de qualquer automação, uma das razões para isso é o custo dos maquinários e, a outra é o exército de mais de 14 milhões de desempregados. Um setor onde é utilizado praticamente o esforço braçal e nenhum, ou quase nenhum esforço intelectual para o exercício da função dentro dos frigoríficos, os trabalhadores, diante da situação apresentada, recebem os mais baixos salários possíveis e imagináveis.”
Já em 2018, Luis Doncel apontou em um artigo para o El País que o perigo da automação não está no desemprego, mas sim em salários ainda menores. Em outra coluna, já comentei a partir da leitura de Martin Hägglund como guerras e crises são especialmente importantes para o capitalismo, uma vez que a pobreza e o desemprego levam os trabalhadores a aceitarem trabalhos que pagam cada vez menos, porque ainda assim é melhor do que estar desempregado.
Na Nicarágua, as taxas de desemprego nos últimos anos foram menores do que o que observamos no Brasil, por exemplo. Contudo, metade desses trabalhadores são informais. Segundo a reportagem indica, 45% da força laboral do país se encontrava em condição de subemprego, que no país significa pessoas que trabalham em dias alternados e as pessoas que ganham menos de um salário mínimo. Em comparação, a taxa de pobreza no país é de 14,6% – isto é, pessoas que ganham menos de USD 3,20 por dia, um dado que aumentou em uma casa desde 2019.
A notícia sobre a Freshii, obviamente, provocou reação por parte dos consumidores. A empresa, por outro lado, pediu para que a Percy se manifestasse nas redes sociais, tentando contornar a situação. A Percy, que, aliás, foi nomeada a partir de um personagem muito solícito da animação Thomas and Friends, argumentou que “não é sobre substituir pessoas ou empregos; não é sobre salários menores ou condições de trabalho. É sobre a falta de mão de obra na indústria dos restaurantes.” Apesar disso, a empresa não disse nada sobre o salário pago aos funcionários da Nicarágua, apenas disse que “pagam todos os membros do time um valor acima do salário mínimo local.”
O problema é que as pessoas que se manifestaram contra a Percy e a Freshii estavam pedindo para que o funcionário exposto fosse demitido, o que não faz o mínimo sentido se o problema a ser contestado era a injustiça salarial. De qualquer forma, mesmo que o funcionário em questão estivesse na Nicarágua, isso também não seria algo tão surpreendente quando consideramos a clássica crítica feita contra o trabalhador imigrante: de que eles vêm até o país para roubar os empregos, sendo que, em muitas ocasiões, são empregos mal remunerados.
Há pouco tempo, diversos países desenvolvidos passaram pelo que ficou conhecido como a Grande Resignação. Isto é, diferentes trabalhadores preferiram pedir demissão a continuar em um emprego que não era suficientemente satisfatório, flexível ou com salário realmente atraente. Isso, obviamente, causou uma demanda de mão de trabalho em diferentes setores, como startups e empresas de tecnologia.
Ao mesmo tempo, demissões em massa aconteceram porque muitas empresas foram prejudicadas ou precisaram ser encerradas durante o período da pandemia. Nesse sentido, acabamos em um cenário de “cabo de guerra”, em que há demanda por trabalhadores, mas salários são baixos demais para que pessoas qualificadas aceitem e humilhantes demais para permitir que outras pessoas em situação mais vulnerável cooptem.
A pergunta que fica é como será que esse problema será resolvido no futuro. Por parte de algumas visões mais otimistas, defende-se que a automação extrema poderá gerar tanta riqueza que haverá uma renda básica universal. Já em um parecer mais ponderado, a ideia é que, como observado em outros momentos da história, novas tecnologias também gerarão novos postos de trabalho. Contudo, não sabemos nem sequer se vamos chegar nesse ponto enquanto ainda houver preferência pelo precariado. Aparentemente, a questão parece ser mais ética e econômica do que tecnológica, uma vez que parece nos dizer mais a respeito sobre quais riscos e posturas uma empresa deseja tomar, e é nesse ponto que nós, enquanto consumidores e trabalhadores, precisamos estar atentos.
Ilustração da capa: Josh Holinaty