A amplitude do O Futuro das coisas sempre me surpreendeu. Não raro, algum leitor me contacta nas redes sociais e comenta sobre um artigo recente ou compartilha e me marca ou ainda me encontra em algum evento e comenta sobre meus textos nesse espaço. Mas o que mais me surpreende mesmo é quando amigos de longa data me chamam para falar sobre determinado artigo assim que é publicado. De verdade, não entendo como pessoas que me conhecem há tanto tempo, ainda, tem tempo para ler as bobagens desse colunista, extremamente nichadas, que interessam a um número reduzidíssimo de leitores, mas que esse time editorial insiste em manter em seus quadros.
Um desses casos aconteceu precisamente no último artigo que falava sobre indicações geográficas e desterritorialização. Nutro um minúsculo número de amigos, pelos quais não tenho só um enorme carinho, mas principalmente admiração. São tão poucos que nem preciso citá-los. Claro que admiro um monte de gente, mas infeliz ou felizmente não os conheço pessoalmente, até porque, a cada dia fica mais difícil separar autor e obra e muitas vezes é melhor não conhecer seus ídolos de perto.
Foi justamente uma dessas amigas que me chamou para uma conversa após o artigo citado, conversa essa que de tão instigante, resultou nesse presente texto. O trabalho dela que envolve mulheres refugiadas e o senso de pertencimento diante da situação limite do refúgio foi nosso ponto de partida, nada mais desterritorializado do que isso.
Numa rápida pesquisa no site da ACNUR, agência da ONU para refugiados, conseguimos entender o quão crítica é a situação e, ao mesmo tempo, imaginar a possibilidade de agravamento ao levarmos em conta as mudanças climáticas em curso. Pouco menos de noventa milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas, e dessas, mais de vinte e sete milhões são refugiados, onde metade deles tem menos de 18 anos.
Talvez, ao pensarmos em refugiados, lembremos automaticamente da Síria, que de fato representa 27% (6,8 milhões de pessoas) da origem dos refugiados. Surpreendente, a segunda colocada nesse ranking é nossa vizinha Venezuela com 18% dos refugiados (4,6 milhões de pessoas). No Brasil, no início de 2023 abrigávamos mais de 65.000 pessoas reconhecidas como refugiados, em sua maior parte venezuelanos (dados entre 2011 e 2021), seguidos por sírios e congoleses.
Ao longo da nossa conversa buscávamos entender como se dá a territorialidade durante processos de refúgio e abrigamento. Sempre é preciso lembrar que um lugar é feito de pessoas e, portanto, pelo grupo que habita determinado território. Se o lugar é feito pelas pessoas, qual seria então o problema do refúgio ou do abrigamento?
Deixando as óbvias dificuldades materiais, temos uma série de impactos a observar. Nesse ponto, não deixava de pensar numa autora que me foi apresentada após uma palestra que dei em Belo Horizonte, por uma pesquisadora que tinha se debruçado sobre o tema para sua tese de doutorado, e me fez uma resenha quase tão boa quanto o próprio livro. Tratava-se de Simone Weil, escritora e filósofa francesa da primeira metade do século XX e seu trabalho derradeiro chamado “O Enraizamento”. Como sempre, pego emprestado aquilo que me faz sentido e, com isso, deixo de lado as características mais esotéricas e religiosas que envolvem o pensamento weiliano. Entre o que me faz sentido, encontro o que considero o cerne do seu livro, algo que ela chama de “Necessidades da Alma”, que completariam as necessidades físicas, porém com maior dificuldade de reconhecimento uma vez que não tinham relação direta com o corpo.
O primeiro estudo a fazer a ser feito é o das exigências que são para a vida da alma aquilo que são as exigências do alimento, do sono e do calor para a vida do corpo. Deve-se tentar enumerá-las e defini-las. Não se pode confundi-las com os desejos, os caprichos, as fantasias, os vícios. Deve-se também distinguir o essencial do acidental. O homem carece não de arroz ou de batatas, mas de alimento; não de lenha ou de carvão, mas de calor. O mesmo com as exigências da alma: deve-se reconhecer as satisfações diferentes, mas equivalentes, que respondem às mesmas exigências. (WEIL, p. 17)
As necessidades da alma, para Weill são: ordem, liberdade, obediência, responsabilidade, igualdade, hierarquia, honra, castigo, liberdade de opinião, segurança, risco, propriedade privada, propriedade coletiva e verdade, além do enraizamento.
O enraizamento é talvez a exigência mais importante e ignorada da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos presságios do porvir. Participação natural, isto é, suscitada automaticamente por lugar, nascimento, profissão e ambiente. Todo ser humano precisa ter múltiplas raízes. (WEIL, p. 65)
Por motivos óbvios, o interesse para esse artigo recai sobre os conceitos de enraizamento e desenraizamento, que podemos, de várias formas, compará-los às ideias de territorialização e desterritorialização e ainda apontar para uma terceira hipótese como a reenraizamento, assim como falamos de reterritorialização. Se o enraizamento é uma necessidade da alma, o desenraizamento, por sua vez, é uma doença social. Entre os três tipos de dezenraizamento, o chamado “desenraizamento geográfico e nação”, é o mais relevante para esse artigo.
Hoje, todos os franceses sabem o que perderam desde quando a França naufragou. Sabem disso como sabem o que falta quando não se come. Sabem que uma parte da sua alma está tão colada à França que, quando a França lhes é tirada, permanece colada, como a pele a um objeto tórrido, e assim é arrancada. Há, portanto algo a que está colada uma parte da alma de cada francês, a mesma para todos, única, real embora impalpável, e real à maneira das coisas que se podem tocar. Desse modo, o que ameaça a França de destruição – e em certas circunstâncias uma invasão é uma ameaça de destruição – equivale à ameaça de uma mutilação física de todos os franceses, e dos seus filhos e dos seus netos, e dos seus descendentes a perder de vista. Pois há populações que nunca convalesceram de uma conquista sofrida. (WEIL, 2001, p. 182).
Se os refugiados são, por definição, pessoas desterritorializadas, será seu destino também o dezenraizamento? Acredito que não. Da mesma forma que Weil separa as necessidades do corpo das necessidades da alma, é preciso esse tipo de atenção aos movimentos migratórios involuntários.
É absolutamente compreensível que organizações humanitárias usem a “lente” das necessidades do corpo como abordagem objetiva, afinal, é preciso garantir que as pessoas estejam vivas e, portanto, alimentadas e saudáveis antes de qualquer outra coisa. A questão desse processo também levantada pela filósofa francesa é que a falta dos elementos que compõem as necessidades da alma, podem influenciar diretamente na saúde física das pessoas, e levá-las ao que chamou de “malheur”, palavra sem correspondente em português mas que comumente é traduzida como infelicidade mas sem a capacidade de absorver toda a carga filosófica embarcada no termo weiliano.
O enraizamento, ou melhor, o reenraizamento, ouso dizer, se dá a partir da cultura. Após a lente da necessidade física é preciso usar a lente da cultura, da identidade. Gosto da ideia da cultura como um patrimônio social. O Antropólogo inglês Edward Tylor definiu cultura como “um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e todas as produções dos homens em sociedade”. Quanto a identidade, numa abordagem mais contemporânea, temos Stuart Hall e seu sujeito pós-moderno, sem identidade fixa ou permanente, que se molda ao seu tempo:
“…o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas…” (HALL, 2006)
Embora Hall nos dê algumas dicas sobre como o homem contemporâneo tem uma maior capacidade (e necessidade) de adaptação, ainda precisamos entender como fazê-lo quando esse processo é involuntário. No que se refere aos refugiados, minha hipótese é que os campos de refugiados funcionem como o Metaxo platônico, também utilizado por Weil, mas com a grafia metaxu. Metaxo ou metaxia é algo com função de meio, intermediário ou conectivo. Proponho essa reflexão menos na forma transcendental usada por Weil, mas como intermédio entre dezenraizamento e reenraizamento, ou se preferirem, nos termos deleuze-guattarianos, mais comuns nos meus artigos, desterritorialização e reterritorialização.
Para que os abrigamentos possam servir de metaxo, a lente da cultura e da identidade precisa estar presente e ter a mesma importância da abordagem fisiológica. Para que isso aconteça é preciso parar de pensar unicamente na macroescala, absolutamente compreensível frente ao tamanho do problema e entender, mais uma vez, que a microescala, nesse caso não a escala do indivíduo, mas a escala da cultura, em forma de grupo, é tão importante quanto.
Os grupos recém-chegados podem exercer sua cultura e identidade no novo agrupamento, teoricamente provisório? Existem as condições necessárias para tal? Não adianta adotarmos os radicalismos e abraçarmos ideias como “já tem abrigo e comida, querem mais o que?”. Bastaria o conceito básico de humanidade para contrapor esse argumento, mas como vimos ao longo desse artigo, talvez, o completo desenraizamento mate as pessoas da mesma forma que a fome ou a doença, só que com requintes de crueldade, dada a sua lenta e invisível velocidade.
Se a comida e o abrigo são o hardware, a cultura e a possibilidade de exercê-la são mais do que o software, são o próprio peopleware, lembrando que hardware são elementos físicos e imóveis de um lugar, o software é o conjunto de atividades que ocorrem no lugar e o peopleware a cultura e identidade do lugar, baseado em quem o habita, ainda que transitoriamente. É preciso entender o caráter provisório e emergencial dos abrigamentos, mas é preciso entender também o caráter permanente da cultura, ainda que essa perenidade reflita apenas as dimensões mais profundas dos seres humanos, e como isso é capaz de impactar-nos e como sem isso podemos estar saudáveis fisiologicamente, mas completamente desprovidos daquilo que ao fim e ao cabo, nos torna humanos.
Referências Bibliográficas
HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2006.
Weill, Simone. O Enraizamento. Belo Horizonte. Âyné, 2022
Crédito imagem da capa:
© ACNUR/Georgina Goodwin
Sofri um ‘desenraizamento’ quando tinha 12 anos. Mudei de estado com minha família, mas sinto que mudei de planeta. Foi difícil, dolorido e como você menciona no artigo, foi de morrer aos poucos.
Retornei a minha terra natal 20 anos depois, e agora sinto que estou reencontrando minha identidade.
Sinto que estou novamente em casa, sinto que sou novamente eu.
Tive uma experiência de mudança forçada para um outro lugar totalmente diferente da minha cidade natal aos 15 anos e como o comentário do colega, digo que foi uma “morte”, extremamente difícil de lidar e se adaptar. Tinha todos os benefícios e até mais qualidade de vida, mas era infeliz e me faltava muita coisa. Durante esse tempo de 6 anos, aprendi a cultura de outro lugar, mas nunca deixei de gostar de onde cresci e hoje retorne a cidade e me sinto mais viva e feliz.