Nasci em 72, bem no meio dos anos de chumbo, período mais repressivo da ditadura militar (1968-1985). Minha primeira memória de infância foi  assistir a Vila Sésamo em uma pequena televisão preto e branco no quarto dos meus pais num apto de um quarto (onde, para os padrões de hoje, caberia um apartamento de 2 suítes) na orla da praia em Santos-SP. Vi a morte de Tancredo Neves ser anunciada em cadeia nacional durante uma aula da 7ª série do então chamado ginasial. Tudo isso para por em perspectiva um certo desdém ao ouvir ainda em 1989 a música “1965-Duas Tribos” da Legião Urbana, então no auge do sucesso, cantando: “O Brasil é o país do futuro”.

Há décadas somos o país do futuro, proclamado por Zweig, autor judeu-austríaco, radicado em Petrópolis que, em 1941 lançara o livro “Ein Land der Zukunft” ou “Brasil-País do Futuro”, ressaltando nossas virtudes, de forma um tanto ufanista é verdade. Perseguimos essa ideia há 77 anos.

Deu-se então a minha chegada ao Rio, que me causou uma das mais fortes impressões de minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, comovido, pois se me deparou não só uma das mais magníficas paisagens do mundo, nesta combinação sem igual de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas lambem uma espécie inteiramente nova de civilização. Aqui havia, inteiramente contra minha expectativa, um aspecto absolutamente próprio, com ordem e perfeição na arquitetura, e no traçado da cidade, aqui havia arrojo e grandiosidade ems todas as coisas novas, e ao mesmo tempo, uma civilização antiga ainda conservada de modo muito feliz, graças à distância. Aqui havia colorido e movimento; os olhos não se cansavam de olhar e, para onde quer que os dirigisse, sentia-me feliz. Apoderou-se de mim uma ebriedade de beleza e de gozo que excitava os sentidos, estimulava os nervos, dilatava o coração e, por mais que eu visse, ainda queria ver mais.” ( ZWEIG, 1941)

Em meio ao calor das eleições presidenciais que dividem o país, é relevante refletirmos sobre o futuro do nosso país. Não pretendo nesse espaço fazer qualquer reflexão política, nem ressaltar pontos positivos ou negativos desse ou daquele partido. A ideia é criarmos uma perspectiva estratégica a respeito do que poderíamos fazer para o nosso futuro, para que, inclusive, um dia ele chegue de fato.

Ao melhor estilo americano de “10 ações para isso” ou “5 passos para aquilo” vou elencar algumas reflexões necessárias, começando pela mais óbvia.

1.Visão estratégica

Enquanto vários países do mundo estão discutindo e criando metas e objetivos para 2050, nós ora somos paralisados por sessões da Câmara ou do Senado e pela iminência de alguma prisão, ora pela polarização política diante de mais uma eleição. Não conseguimos planejar o próximo mês, quem dirá a próxima década, 2050 então é praticamente uma outra encarnação.

Enquanto a Holanda quer ser o primeiro país vegano do mundo até 2030 e a Dinamarca pretende banir o uso de combustíveis fósseis usando 100% de energia limpa até 2050, o que nós estamos projetando? Claro que existem questões emergenciais e estruturais em nosso país, muito antes de pensarmos em sermos veganos, ou sustentáveis, mas estamos projetando essas necessidades estruturais e emergenciais de forma efetiva?Ou simplesmente apagamos um incêndio por vez? (nunca uma figura de linguagem fez tanto sentido infelizmente)

Existem ações isoladas, não governamentais, muito voltadas para os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) da ONU como a plataforma Agenda 2030 ou o projeto Brasil 2030 e promessas por parte do governo como a redução de emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2050.

Mas a questão permanece, qual a visão de país que compartilhamos, que buscamos?

2. Imagem-país

Quem acompanha os meus artigos aqui no O Futuro das Coisas pode estranhar a aparição do conceito de imagem antes de falarmos de identidade, afinal a imagem é resultado de uma identidade e não vice-e-versa. Explico. É essencial pensarmos na imagem projetada e percebida do país. Provavelmente teríamos mais força se a “Imagem-País” fosse mais trabalhada, ao invés de pensarmos de forma setorial ou pior, ficarmos amarrados às marcas de performance internacional que se alinham com a “ideia/imagem” do Brasil. Lembrou de alguma marca em especial? Uma né? E olhe lá… Algumas marcas, inclusive, parecem preferir não associar sua imagem com a imagem do país.

Claro que marcas fortes originárias de um país contribuem (e muitas vezes constroem) a percepção do próprio país. Usando o exemplo clássico, as marcas suíças reforçam a percepção da Suíça ou a marca-país reforça a percepção das marcas suíças? A resposta é simples, não importa!!! Tal o nível de maturidade tanto das marcas suíças quanto da Marca Suíça, a origem da percepção é irrelevante, uma vez que ambas se complementam e entregam uma mesma “promessa”. Promessa essa cuidada, não por acaso, por um órgão governamental do país chamado Presence Switzerland.

Essa é inclusive uma das minhas provocações nas palestras sobre place branding, independente da região do país onde esteja , após ouvir vários atributos e vários produtos quando pergunto sobre o que a Suíça remete as pessoas. Um silêncio constrangedor se instala no auditório após a mesma pergunta ser feita, só que dessa vez, usando o Brasil como sujeito.

Essa história nos leva ao item número 3 da nossa lista.

3. Identidade

Há muito tempo ouvimos o termo identidade nacional, que, convenhamos, soa cada vez mais anacrônico, mas é preciso entender a sua importância, ainda que absolutamente distante da ideia compartilhada pelo “Estado Novo”, que então buscava um argumento para personificar a identidade nacional e edificar uma nação a imagem dessa sociedade.

O fato é que ainda não sabemos quem somos, pudera, não paramos para pensar nisso, muito por conta do 1º item dessa lista. Somos historicamente bombardeados por estigmas e caricaturas, do próprio Zweig, seguido pelo simpático Zé Carioca, personagem da Disney de 1942, pelo país do futebol, do Carnaval, da Tropa de Elite a impagável cena de Velozes e Furiosos onde o personagem principal, interpretado pelo shakespeariano Vin Diesel profere, no momento em que várias pessoas, aparentemente em uma comunidade do Rio, levantam suas armas para a polícia: “This is Brazil”.

Um dos problemas de não controlarmos a nossa própria narrativa, ou pelo menos influenciá-la é que deixamos essa influência para terceiros, que então podem se apropriar como bem entender, de forma caricata ou não, real ou não. Isso não é empurrar a sujeira para baixo do tapete, e fazer de conta que nada disso existe, mas sim, entender que somos mais do que isso, ou não somos? Também podemos chegar à conclusão que não, mas essa também é uma forma de nos apropriarmos da nossa própria narrativa.

4. Das partes para o todo e vice-e-versa

Muitos perguntarão, com razão, como podemos pensar em algo tão abrangente quanto a ideia de identidade nacional em tempos líquidos? Não é nada simples, mas possível. A saída pode estar, não em uma abordagem nacional, mas em uma abordagem regional. Em um país diverso como o nosso um dos caminhos possíveis é o mapeamento de características identitárias regionais, uma forma de pensar as diversas regiões e micro-regiões como identidades próprias, com suas particularidades, culturas, linguagens, economia, etc…

O trabalho seguinte seria sobrepor esses “mapas” e buscar resultantes, pontos comuns às regiões. Nesses pontos comuns, nesses elementos resultantes, poderia estar a “cola” que une todos enquanto país.

Ao mesmo tempo é possível imaginarmos, dada à dimensão do Brasil, que as diferentes regiões possam se comportar de forma mais ou menos autônoma, onde, dessa forma, a imagem do país não seria a resultante da sobreposição de características identitárias, mas a sua simples soma. Para isso seria necessária uma imersão na identidade de cada uma dessas regiões e uma compreensão da potência estratégica dessa soma e diversidade enquanto país, algo não mais unificado, uno, coeso, mas plural, polifônico, dinâmico, onde a soma das partes é maior do que o todo.

5. Participação

É essencial entendermos a diferença entre as ideias de país e de nação.

Podemos dizer que país é um conceito genérico, e se refere a tudo que se encontra no território e apresenta características físicas, naturais, econômicas, sociais, culturais e outras. O conceito de nação significa uma união entre um mesmo povo com um sentimento de pertencimento e de união entre si, compartilhando, muitas vezes, um conjunto mais ou menos definido de culturas, práticas sociais, idiomas, entre outros. Assim sendo, nem sempre uma nação equivale a um Estado, ou a um país ou, até mesmo, a um território, havendo, dessa forma, muitas nações sem território e sem uma soberania territorial constituída. A identidade, o senso de pertencimento não está mais limitado à dimensão territorial.

Nesse sentido é possível concluir que tudo gira em torno das pessoas, das ideias, culturas, ritos, mitos, histórias que elas compartilham. E se a nação é feita por pessoas, nada mais óbvio que, elas mesmas façam parte dos processos decisórios. O tradicional processo “top-down” não faz mais sentido em tempos de “novo poder”.

O século XX foi construído de cima para baixo. A sociedade foi imaginada como uma grande máquina, movida de maneira intrincada por grandes burocracias e corporações. Para manter a máquina funcionando, pessoas comuns tinham papéis cruciais, embora pequenos e padronizados, a desempenhar. Faça seus exercícios. Reze suas preces. Aprenda sua tabuada. Cumpra seu expediente. Tire a foto do anuário escolar. Muitos de nós ficávamos relativamente satisfeitos por desempenharmos um papel menor num processo maior. Mas a ascensão do novo poder está mudando as normas e as crenças das pessoas a respeito de como o mundo deve funcionar e onde elas devem se encaixar. Quanto mais nos engajamos em modelos do novo poder, mais essas normas mudam. Na verdade, o que está surgindo — e isso é mais visível entre pessoas com menos de trinta anos (hoje mais da metade da população mundial) — é uma nova expectativa: um direito inalienável de participar. (Timms e Heimans, 2018)

Os processos “bottom-up”, onde as pessoas são protagonistas e não as instituições vem se tornando cada vez mais presentes no mundo atual. A transparência proporcionada pelas novas tecnologias e  certo grau de desconfiança na capacidade dos governos de lidar com as questões do dia-a-dia dos cidadãos nos leva a buscar formas mais ativas de engajamento, seja ocupando os espaços públicos ao melhor estilo “faça você mesmo”, organizando eventos coletivos ou criando mecanismos de gestão participativa. Nesse momento a tecnologia é presente, essencial, é meio e não fim. Ela agiliza e possibilita o compartilhamento de informações e a conexão entre pessoas com alinhamento de propósito de uma forma impensável 10 anos atrás.

A própria ideia de uma “marca-país” deveria nascer da comunidade e não do governo.

Quando falo em marca, esse termo batido e mal compreendido, não me refiro a logotipos, publicidade ou marketing, e sim ao termo marca como uma representação de uma ideia compartilhada, fruto de uma identidade compreendida, ou em processo de compreensão. Talvez, não seja mais possível falarmos em identidades “fixas” como sugere Stuart Hall, inclusive discutindo o próprio termo identidade com uma sugestão mais contemporânea, identificação.

Se imaginarmos que governos vem e vão e que projetos de poder mudam a cada cinco anos, fica ainda mais evidente a necessidade das pessoas se envolverem nas diferentes esferas de decisão, transformando projetos de poder em projetos de nação, compartilhados, pensados por quem permanecerá por muito mais do que cinco anos de governo com o “skin in the game”.

Conclusão

Evidente que existem outras centenas de assuntos a serem tratados para que alcancemos esse futuro de fato, questões emergenciais como educação, segurança, saúde, igualdade, mas ao mesmo tempo é preciso entender que, o pensamento estratégico também deve permear esses assuntos e outros, como sugeridos nesse artigo.

Pensar estrategicamente na nossa identidade, vocações e potências se faz essencial para que, num trabalho conjunto, consigamos melhorar nossa reputação, ativo essencial para a captação de novos recursos, atração e retenção de talentos e ao mesmo tempo tenhamos condições de criar um ambiente favorável não só internamente para o surgimento de novas empresas, marcas e empreendimentos, como para o fortalecimento das marcas que atingirem o estágio de maturidade necessário para a exportação ou internalização, entendendo que esse processo é justamente um dos vetores de desenvolvimento econômico necessários para enfrentarmos os problemas urgentes e estruturais que nos assolam.

Num mundo globalizado, de cadeias globais de valor, tão importante quanto a nossa identidade é a imagem que o mundo tem de nós, e, na mesma medida essa imagem é consequência da forma como nós mesmos nos vemos. Afinal, só existe cidade boa para o turista se for boa para o morador… e nesse caso, turista é figura de linguagem… ou não.

Imagem da capa: quadro Pátria, de 1918, de Pedro Bruno que retrata a bandeira do Brasil sendo bordada no seio de uma família. Esta tela é a máxima representação de uma expressão, de um sentimento de uma nação, mas também da construção do imaginário coletivo.

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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