Existe pouco consenso a respeito da origem das cidades. Os palpites vão de 10.000 anos a 4.000 A.C, de Jericó, na Palestina, até cidades na revolução neolítica. O que parece unânime é a origem da cidade como centro de comércio e fortificação contra inimigos.

O começo das cidades, para muitos, coincide com a domesticação das plantas e animais, e com isso, uma maior permanência nos lugares.

A cidade, local de estabelecimento aparelhado, diferenciado e ao mesmo tempo privilegiado, sede da autoridade, nasce da aldeia, mas não é apenas uma aldeia que cresceu. Ela se forma como pudemos ver. quando as indústrias e os serviços já não são executados pelas pessoas que cultivam a terra, mas por outras que não têm obrigação, e que são mantidas pelas primeiras com excedente do produto total…

A cidade, centro motor desta revolução, não só é maior que a aldeia, mas se transforma com uma velocidade muito superior. Ela assinala o tempo da nova história civil: as lentas transformações do campo (onde e produzido o excedente) documentam as mudanças mais raras da estrutura econômica; as rápidas transformações da cidade ( onde é distribuído o excedente) mostram, ao contrário, as mudanças muito mais profundas da composição e das atividades da classe dominante, que influem sobre toda a sociedade. Tem início a aventura da “civilização”, que corrige continuamente suas formas provisórias.”
(BENEVOLO, Leonardo. 2015)

Mais recentemente a revolução industrial e a Segunda Guerra Mundial foram responsáveis pela intensificação dos processos de urbanização.

Se imaginarmos que o homem dominou o fogo há 500.00 anos  e o sapiens tem uma história de 150.000 anos e uma história cultural de mais ou menos 30.000 anos podemos dizer que a formação das cidades é um fato recente, ainda mais quando levamos em conta a urbanização brasileira, surgida após a década de 40.

Hoje, estima-se que mais da metade da população mundial se concentre em cidades.

As cidades já foram a solução, o problema e hoje, ao que parece, as cidades são a oportunidade. A oportunidade de conexão, de troca, de apoio, de prosperidade, de felicidade. 

Mas qual será o próximo passo?

Quando pensávamos na cidade do futuro, 30 anos atrás, pensávamos nos Jetsons, carros voadores, automatização de tudo, afinal, quem não queria a Rosie?

As cidades se modificaram, muita coisa mudou, é fato. Mas, estamos ainda longe do clássico da Hanna Barbera.

Hoje, quando pensamos em futuro, um termo que comumente vem às nossas cabeças é o “smart city”, afinal, parece óbvio que, diante dos avanços das learning machines e A.Is da vida, as cidades também devam ser “inteligentes”. Mas, o que é uma cidade inteligente? ou melhor, o que faz uma cidade inteligente?

O termo “smart city” é usado de forma bastante abrangente, ou seja, sua definição ainda é inconsistente. Para cada 10 vezes que ouvimos o termo, em 9 delas a palavra “smart” pode ser substituída por “technologic”. Essa prática aliás, foi tão exaustivamente usada que, quando pensamos em “smart city” já imaginamos uma empresa de ICT querendo vender alguma solução, o que de fato acontece.

Não à toa o termo foi usado pela primeira vez em 1990, quando o foco era a importância do ICT na infraestrutura das cidades. O Instituto da California para Smart Cities foi o primeiro a focar em como as comunidades poderiam se tornar inteligentes e como as cidades poderiam ser projetadas para implementar tecnologia de informação. (ALBINO,BERARDI e DANGELICO, 2015)

Muitos criticaram o fato do conceito estar muito alinhado ao pensamento tecnológico, uma orientação muito técnica.

A discussão sobre o termo “smart” ao invés de “intelligent” também é digno de nota. Para Nam e Pardo ( 2011) a palavra “smart”, na linguagem do marketing, é mais “user-friendly” e menos elitista que “intelligent”. Outra possibilidade de interpretação, segundo os mesmos autores, é a que supõe que “smart” contém o termo “intelligente” embarcado, uma vez que a “smartness” só é alcançada quando um sistema inteligente se adapta ao usuário.

No campo do planejamento urbano, a inteligência é tratada como uma reivindicação normativa e uma dimensão ideológica, ser mais inteligente implica direções estratégicas. Governos e agentes públicos, em todos os níveis, estão abraçando a noção de inteligência para distinguir suas políticas e programas para objetivar o  desenvolvimento sustentável, o crescimento econômico sólido e uma melhor qualidade de vida para os seus cidadãos”. (CENTER OF GOVERNANCE, apud Albino, Berardi e Dangelico).

Mais importante do que o foco exclusivo na tecnologia é entender o sistema que envolve uma abordagem de cidade inteligente. No gráfico abaixo, baseado em Anthopoulos, 2017, podemos ver as dimensões que compõem uma cidade inteligente.

Smart Infrastructure: serviços da cidade como água e energia, com tecnologia inteligente embarcada.

Smart Transportation: Sistema de transporte potencializado com sistemas de controle e monitoramento em tempo real.

Smart Environment: Inovação e ICT para proteção e gestão de recursos naturais.

Smart Services: Tecnologia e ICT para saúde, educação, turismo, segurança

Smart Governance: Governo inteligente acompanhado por participação e engajamento

Smart People: medidas que potencializem a criatividade e inovação aberta

Smart Living: inovação que potencialize qualidade de vida no espaço urbano

Smart Economy: tecnologia e inovação para fortalecer o desenvolvimento de negócios, empregos e crescimento urbano.

Inteligência X felicidade

Não é exatamente novidade o que a tecnologia pode fazer para melhorar a vida dos seres humanos, das bugigangas que usamos no dia-a-dia, da “wearable technology”, que nos fazem sentir mais modernos, jovens e conectados, até sistemas de prevenção de terremotos e demais desastres naturais que podem salvar milhares de vidas. Enquanto o senso comum acha que a tecnologia afastou as pessoas do contato (com base no contato pessoal como parâmetro ) outra vertente de pensamento acredita que a tecnologia aproxima as pessoas.

“A sociedade da informação  deve ser um lugar onde a tecnologia é usada para melhorar a satisfação com a vida e apoiar os nossos objetivos individuais e coletivos, e não para desgastá-los ou prejudicá-los”. Elizabeth Sparrow

Pode parecer, muitas vezes, que o assunto “smart cities” começa e termina na própria tecnologia, diferente do que sugere Sparrow na citação acima.

A pergunta que fica é, do que adianta toda a tecnologia se isso não nos fizer mais felizes?

Mas o que uma cidade precisa fazer para ser feliz?

Primeiro de tudo, deve suprir as necessidades básicas como comida, abrigo, segurança, e depois, Montgomery (2013) elenca uma série de possibilidades:

“A cidade deve maximizar a alegria e minimizar dificuldades

Deve levar-nos para a saúde, em vez de doença

Deve criar resiliência contra choques econômicos ou ambientais

Deve ser justa na forma como distribui espaços, serviços, mobilidade, alegrias, dificuldades e custos.

Acima de tudo, deve nos permitir construir e fortalecer os vínculos entre amigos, famílias e estranhos que dão sentido à vida. Vínculos que representam as maiores realizações e oportunidades da cidade.

A cidade que reconhece e celebra o nosso destino comum, que abre as portas à empatia e cooperação, irá nos ajudar a enfrentar os grandes desafios deste século.”

O termo “serendipty” que significa felizes descobertas ao acaso, tão usado no universo das startups, hubs e coworkings, na verdade está na própria natureza da cidade. O que é uma cidade senão o palco de encontros, ou como disse Shakespeare em Coriolanus:

 “O que é uma cidade senão as pessoas? ”

John Helliwell (appud Montgomery, 2013) mostrou que a rede que conecta confiança e satisfação de vida se estende também ao senso de pertencimento.

O autor compara ao triângulo perfeito:

– As pessoas que dizem que sentem que “pertencem” a sua comunidade são mais felizes do que aqueles que não o fazem.

– As pessoas que confiam em seus vizinhos sentem um maior senso de pertencimento.

– O senso de pertencimento é influenciada pelo contato social.

Na linha de pensamento de Helliwel, podemos dizer que, se a tecnologia pode ser responsável pelo contato social, então, ela pode realmente ser um agente promotor da felicidade.

Mas como usamos a tecnologia nas cidades até agora?

Songdo, Masdar, Fujisawa, são exemplos constantes quando falamos em smart cities, mas o que elas tem em comum? Fácil, tecnologia.

Songdo, na Coréia do Sul, com planejamento baseado na eficiência energética é um exemplo de novas cidades sustentáveis, com vários aparatos tecnológicos que vão de lixeiras com sensor de wifi a sensores colocados na pista que calculam a velocidade dos semáforos com base no tráfego de veículos. Porém, como é comum onde a tecnologia é protagonista, falta  engajamento comunitário.

“Algumas pessoas querem ajustar uma cidade como se faz com um carro de corrida, mas estão deixando os cidadãos fora do processo”, diz Anthony Townsend, diretor do Instituto do Futuro e autor do livro “Cidades inteligentes: grandes dados, hackers cívicos e a busca por uma nova utopia”, em entrevista para a BBC Brasil.

É preciso saber como inserir o conceito de sustentabilidade no cotidiano da população coreana e fazê-las entender a importância de todos estes programas de preservação de recursos naturais e criar na sociedade a responsabilidade ambiental sem depender da tecnologia.” – Anthony Townsend

Songdo também é conhecida como “cidade ubíqua”, uma das classificações das cidades inteligentes, e pretende integrar todo o seu sistema urbano à rede, conectados a um grande centro de controle.

O exemplo japonês

Fujisawa, ou Fujisawa Sustainable Smart Town está localizada a 50KM de Tóquio. Como o próprio sobrenome já indica, é uma cidade inteligente, com o foco no uso eficiente dos recursos naturais. Construída no terreno de uma antiga fábrica da Panasonic, marca que, junto a outras 8 empresas, viabilizaram o projeto de aproximadamente R$1.3 bilhão. A cidade conta com todo o tipo de soluções tecnológicas, desde mostrar ao morador qual eletrodoméstico está consumindo mais energia, a conexão da iluminação pública a central de segurança, que opera de acordo com a quantidade de pessoas que passam na região.

Ainda que conte com um projeto comunitário, Fujisawa parece ter esquecido um pequeno detalhe: o planejamento urbano. Até mesmo o desenho da cidade é orientado pela tecnologia, onde o desenho das ruas prioriza a iluminação natural nas unidades, para com isso, gastar menos energia, num exemplo claro de “Tech- oriented city”, ou, como o próprio nome “comercial” sugere: “ A cidade inteligente da Panasonic”.

Os Emirados Árabes não poderiam ficar de fora

O exemplo árabe da lista é a festejada Masdar City.

Originalmente projetada para ser a primeira cidade “zero-carbono” no deserto dos EAU, com previsão de conclusão para o ano passado, hoje conta somente com 300 moradores, todos estudantes do Instituo de Ciência e Tecnologia.

Concebida há mais de uma década, como um novo exemplo de cidade a ser seguido. Quando a cidade começou, em 2006, o projeto foi promovido como modelo para uma paisagem urbana verde de uso misto: um centro global para a indústria de tecnologias limpas, com 50 mil habitantes e 40 mil trabalhadores.

A Foster + Partners criou uma cidade sem carros, com carros elétricos autônomos, ao estilo Jetsons levando passageiros entre edifícios que incorporam tecnologias inteligentes para resistir ao calor abrasador do deserto e manter os custos de refrigeração baixos.

Tão longe e tão perto

Por mais que os exemplos tecnológicos de Japão, Coréia do Sul e Emirados Árabes sejam sedutores e pareçam saídos de contos de ficção científica, aparentemente o exemplo mais bem sucedido, está muito mais próximo da nossa realidade. Muito longe de sua fama anterior, relacionada à violência e ao tráfico de drogas, a colombiana Medellin, parece ser a bola da vez, não pela tecnologia em si, mas pela forma como ela é usada.

Medellin tornou-se famosa pelo seu design inovador de espaços públicos para combater a desigualdade e promover a paz. Uma estratégia importante adotada pelo governo foi transformar espaços de segregação e crime em espaços para desenvolvimento social e comunitário.

Ao longo da borda rural-urbana, um cinturão verde foi construído para envolver a comunidade na agricultura, para pôr fim à expansão descontrolada das favelas e reduzir o risco de deslizamentos de terra. Os residentes locais foram equipados com habilidades agrícolas e de construção, dando-lhes um senso de propriedade. Em outro projeto conhecido como Unidades de Vida Articulada, os antigos tanques de armazenamento de água foram transformados em espaços comunais que acolhem atividades esportivas, recreativas e culturais determinadas pelos cidadãos.

A cidade também foi pioneira no design de “parques biblioteca”, uma combinação de estruturas de biblioteca e espaços verdes. Estrategicamente localizados em bairros de baixa renda, os 10 parques biblioteca fornecem educação e recursos de ICT para 1000-2000 pessoas por dia e tornaram-se centros culturais para comunidades marginalizadas para se juntarem em atividades educacionais, culturais e recreativas.

O exemplo de Medellin comprova que não basta tecnologia, é preciso mais do que isso, é preciso inteligência para usá-la, uma compreensão sistêmica dos problemas locais e uma visão do que se quer alcançar. Essa visão, objetiva e sistêmica, é capaz de transformações mais efetivas e de maior impacto social, econômico e ambiental.

Antes uma das cidades mais violentas do mundo, a Medellín é agora um centro de tecnologia e inovação em toda a América Latina, reduzindo sua taxa de homicídios em 80% em 10 anos, enquanto criou infra-estrutura de transporte, aumentando a sustentabilidade ambiental e estabelecendo orçamentos participativos para o cidadão. Em 2013, foi nomeado “Cidade Inovadora do Ano” pelo Urban Land Institute – em parceria com o Citi e o departamento de Serviços de Marketing do Wall Street Journal – ganhando o título entre mais de 200 outras cidades, incluindo potências globais como New York City e Tel Aviv.

O outro lado

Enquanto a ideia de smart cities se alastra e aparece como a solução de todos os problemas urbanos, há quem diga que ela poderá acabar com a democracia. É inevitável a lembrança de filmes como Minority Report, onde o aparato do estado ubíquo, sabe o que vai acontecer antes mesmo de acontecer, identificando criminosos antes que os crimes ocorram. 

No entanto, há críticas distópicas, sobre o que essa visão inteligente da cidade pode significar para o cidadão comum. A própria frase desencadeou uma batalha retórica entre tecto-utopistas e flaneurs pós-modernos: a cidade deve ser um panóptico otimizado ou um caldeirão de culturas e idéias?

E qual o papel do cidadão? A do vendedor de dados não remunerado, contribuindo voluntariamente com informações para uma base de dados urbana que é monetizada por empresas privadas? O morador da cidade é melhor visualizado como um pixel em movimento, viajando para o trabalho, lojas e casa novamente, em uma colorida tela gráfica 3D? Ou o cidadão é uma fonte imprevisível de exigências obstinadas e asserções de direitos? “Por que as cidades inteligentes oferecem apenas melhorias?”, questiona o arquiteto Rem Koolhaas. “Onde está a possibilidade de transgressão?”

A impressão que se tem é que com o aumento da tecnologia, a onipresença de soluções digitais, a cidade deve se comportar como um robô vasto e eficiente, visão originada, não por acaso, pelas gigantes da tecnologia como IBM, Cisco e AG, objetivando os grandes contratos com a municipalidade.

Conclusão

Embora a tecnologia tenha inúmeras contribuições possíveis para as cidades, ela só fará sentido se promover a qualidade de vida das pessoas. Uma sociedade “Tecnocêntrica”, por definição não trará melhorias sensíveis para uma sociedade onde a orientação deveria ser necessariamente “humanocêntrica”. Como em toda a evolução, é preciso avaliar os diferentes pontos de vista e os diferentes aspectos dos impactos causados, e o quanto eles são de fato relevantes.

A tecnologia parece ser o novo diferencial buscado pelos lugares, de bairros a cidades, numa clara tentativa de colocar a própria tecnologia como singularidade.

Nas discussões de place branding, a ideia de cidades inteligentes, por exemplo, surge como a solução definitiva para a diferenciação, como se o simples fato da cidade adotar um sistema interligado, por si só, fosse capaz de mudar algo ou promover alguma melhoria, ou pelo menos, percepção de valor. Todas as cidades podem ser inteligentes? Definitivamente, e, por isso mesmo, a tecnologia não é uma expressão de singularidade.

Enquanto a inteligência for o fim e não o meio, teremos várias cidades com semáforos inteligentes e wifi em espaços públicos, mas que, na essência, não promoverão nenhuma transformação social, a não ser que saibamos porque estamos implantando os sistemas, e mais do que isso, qual o resultado que essa implantação trará e como se alinha com a nossa vocação e identidade enquanto lugar. 

Referências

ALNINO,Vito, BERARDI, Umberto e DANGELICO, Rosa Maria. Smart Cities: Definitions, Dimensions, Performance, and Initiatives. Journal of Urban Technology. Vol.22. 2015

ANTHOPOULOS,L.G. Understanding Smart Cities: A Tool for Smart Government or an Industrial Trick? 2017

BENVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo. Perspectiva.2015

MONTGOMERY, Charles. Happy city: transforming our lives through urban design.New York: Farrar, Straus and Giroux, 2013.

NAM,T., PARDO,T.A. Conceptualizing Smart City with Dimensions of Technology, People and Institutions. Proc.12th Annual International COnference on Digital Government Research. 2011

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Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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