No intervalo entre uma consulta e outra você dá uma pausa para checar seu celular, e percebe que o grupo de whatsapp de seus amigos médicos tem dezenas de mensagens que acabaram de chegar.

Tem todo tipo de informação que invariavelmente termina com lamentações e frustrações a respeito de tudo que envolve o mundo médico: consultórios, hospitais, o próprio ato de exercer a medicina e a prática da cirurgia plástica. Impossível não ficar incomodado ou preocupado com tantas queixas.

Sinceramente, parece que o caos está instalado. Você então lembra que não faz um check-up completo de saúde há alguns anos, apesar de ter um histórico familiar de diabetes e hipertensão, de estar com alguns quilos a mais, e sequer lembrar a última vez que teve aquela noite de sono reparador.

No final das contas, o olhar da medicina – seja o do consultório, ou aquele que nós utilizamos diretamente para tratar nossos pacientes e principalmente cuidar de nós mesmos – está totalmente focado na doença e não na saúde. E, a maior parte dos modelos de negócio e de remuneração médica, continuam baseados nessa mesma mentalidade.

Hoje, todos nós sabemos o resultado disso. O SUS com rombos financeiros incalculáveis, os planos de saúde com filas de espera e fechando as portas, deixando os segurados na mão. A profissão médica desvalorizada e desrespeitada e o próprio médico com diabetes, hipertenso, obeso, inflamado, estressado, desestimulado e pensando em largar a profissão. Aliás a síndrome de Burnout cresce muito entre as profissões médicas. O simples fato de você escolher ser médico já lhe rouba alguns anos de vida. Segundo o relatório do Medscape mais de 40% dos médicos americanos sofrem dessa síndrome. No Brasil, 48,5% dos médicos já experimentaram a sensação de esgotamento – sintoma do Burnout – em algum momento de sua carreira.

A percepção de valor da nossa profissão é atacada dia após dia por alguns governos que transferem a sua incompetência na gestão da saúde e a culpa da ineficiência de todo uma sistema nas costas do médico. Enfim, estamos num momento que podemos, sim, chamar de crise. E precisamos entender todo o contexto que envolve esse momento para conseguirmos agir de forma efetiva.

Crise e Investimentos

Em contraste à este cenário, atualmente, as maiores empresas de tecnologia do planeta e os maiores fundos globais estão investindo seriamente na Cadeia de Valor da Saúde, utilizando os conceitos do “Quadruple AIM” (falo disso mais adiante) para fazerem suas escolhas. Em 2017, somente nos EUA, foram investidos 11,5 bilhões de dólares em startups focadas em saúde digital.

Investimentos realizados em startups da área de saúde entre os anos de 2010 a 2016.

Google, Facebook, Amazon e Apple, serão as grandes empresas de saúde do futuro assim como foram as Big Pharma no passado. Exemplo disso foi a contratação de Scott Thomas pela Scanadu. Scott foi a mente brilhante por trás da campanha de marketing de Barack Obama, quando concorreu a presidência dos EUA. A Google Ventures tem mais de 30 empresas em seu portfólio focadas em saúde,  incluindo o projeto chamado  Baseline e a Calico; a Amazon iniciou recentemente um projeto focado na distribuição de medicação; Mark Z. do Facebook  e sua esposa criaram uma empresa também focada em saúde. Hoje, existem mais de 30 empresas focadas na terapêutica digital, uma nova modalidade de tratamento que substitui o medicamento tradicional.

Mas, como tudo isso pode estar acontecendo nesse momento de crise que vivemos não somente no Brasil, mas no mundo todo? Um sistema degradado globalmente, e por vezes falido e corrompido, recebe investimentos absurdos pelo simples motivo de que chegamos ao fundo do poço e que algo precisa ser feito. E nisso gostaria de deixar bem claro que todos os países estão buscando reinventar seus modelos de assistência à saúde, pois é um problema global. E nós, médicos, também precisamos inovar e nos reinventarmos.

Como poderemos utilizar esses conceitos para melhorarmos a nossa prática como cirurgiões plásticos e como médicos de outras especialidades?

Um dos assuntos que mais me estimula dentro da medicina e da cirurgia plástica é a inovação. E essa paixão me levou a criar um projeto chamado de Cocriação de Saúde, reconhecido em 2012 pela Singularity University com potencial de impactar a vida de 1 bilhão de pessoas em 10 anos. Como prêmio, fui convidado para fazer uma especialização sobre Futurismo na Saúde, conhecido como Futuremed, e também participar de um treinamento em alta tecnologia focado na área da saúde. O treinamento ocorreu no NASA AMES Research Center, no  vale do silício, ao lado da sede do Google, sendo esse um dos motivos que a Singularity é conhecida como a Universidade do Google e da NASA. E, com a chancela de ser um médico futurista pela Singularity University, compartilho aqui minhas visão de futuro.

É preciso entrar em uma nova era de cuidados clínicos e pré clínicos e também inovar a forma de relacionamento médico-paciente. Justamente por já ter integrado a equipe de Ivo Pitanguy e hoje, estar  no comando de uma empresa focada em futurismo da saúde através da inovação e do empreendedorismo, estou focado em trazer o paciente para o centro dos cuidados novamente, pois a medicina do futuro resgata atitudes extremamente valiosas que ficaram esquecidas no passado.

“Os analfabetos do próximo século não são aqueles que não sabem ler ou escrever, mas aqueles que se recusam a desaprender, reaprender e aprender novamente.” – Alvin Toffler

É preciso, sim, incorporar as novas tecnologias na prática da profissão, no tratamento das doenças e na gestão de saúde, mas, acima de tudo, ouvir mais o paciente, olhar no olho e pegar na sua mão. A principal função da tecnologia na área médica é favorecer o verdadeiro contato humano.

Incentivar diálogos é algo primordial para pensar e realizar as mudanças necessárias. A pluralidade da cadeia de valor da saúde e a união com o ecossistema empreendedor nesse novo contexto, tem despertado o interesse dos governos (incluindo o Brasil com a aprovação do Decreto 9283/18), hospitais, instituições de ensino e “planos/seguradoras” de saúde, sendo este último grupo, os clientes que mais têm se interessado pelo assunto no último ano.

 Boa parte da inovação na área da saúde está se baseando em algo chamado de Quadruple Aim (algo como meta quádrupla”).

 A ideia do “Quadruple Aimnasceu de um artigo publicado em 2008, pelo pediatra da Universidade de Harvard e gestor da saúde, Donald Berwick.

De acordo com Berwick, para melhorar o sistema de saúde é necessário perseguir três objetivos:

1- Melhorar a experiência do cuidado;

2- Melhorar a saúde da população de uma forma geral, melhorando os resultados de todo o sistema;

3- Reduzir os custos. Mais recentemente, diante do reconhecimento das dificuldades enfrentadas pelos profissionais da área da saúde, foi incluído um quarto pilar: melhorar a experiência também dos médicos.

É aí que somos surpreendidos, pois os critérios utilizados para o aporte de grandes investimentos na área de saúde são exatamente os mesmos que os nossos pacientes utilizam quando escolhem seus médicos. Invariavelmente os pacientes analisam os quatro pilares do “quadruple aim”. Avaliam os resultados cirúrgicos e comparam com suas expectativas, levam em consideração o custo do procedimento  e também são avaliados como diferenciais importantíssimos na escolha final os demais fatores que se relacionam direta ou indiretamente com a experiência do paciente durante sua jornada antes, durante e depois do ato cirúrgico.

Momento de Disruptura

Bom, se pensarmos em toda a história da humanidade, a tecnologia é uma ferramenta de transformação social e de mudança de comportamento. A primeira tecnologia que mudou drasticamente o comportamento das pessoas, por exemplo, foi a descoberta de como lascar a pedra e dominar o fogo. Isso permitiu o preparo e o aquecimento dos alimentos e foi fundamental para que o ser humano passasse a se organizar em tribos e ocupasse novas regiões do planeta.

A segunda grande mudança de comportamento, possibilitada pela tecnologia, foi a era industrial.  Nos inícios dos anos 1800 “nasceu” a capacidade de replicar as coisas em escala. (Sapatos, eletrodomésticos e, claro, os remédios foram programados para serem produzidos em muita quantidade).

A terceira grande mudança proporcionada pela tecnologia é a que estamos presenciando neste exato momento e envolve a nossa recente amiga e já indispensável “dona internet”. Conhecida como transformadora do mundo analógico para o digital.

Ocorre que por inúmeros fatores, a área da saúde no mundo todo ainda permanece dois séculos atrás. Esta disruptura digital ainda não ocorreu de forma definitiva. Toda infraestrutura do setor saúde, seja ele público ou privado, ainda vive os processos e a mentalidade da era industrial. E quais seriam as principais causas do atraso dessa transição?

A medicina convive, infelizmente, com muitos intermediários e com extrema burocracia. Por ser uma área muito regulamentada pelos governos, superprotegida pelos conselhos de classe, e com muitos “interesses” envolvidos, a sua entrada neste novo mundo tem demorado um pouco mais.

Por isso, boa parte do que é apresentado como inovação em saúde ainda não tem potencial verdadeiramente transformador. E o que é apontado como “tecnologia de última ponta”, por sua vez, não tem conseguido mudar indicadores arcaicos, como mortalidade infantil e mortalidade materna.

Mortes totalmente evitáveis

Avançamos muito, é verdade. Mas há tempos estamos à deriva, convivendo com mortes facilmente evitáveis, como por pressão alta, por exemplo. Outro ponto a meu ver é que o hi-tech da saúde excluiu a prevenção genuína. Os avanços tecnológicos chegaram “com tudo” apenas aos aparelhos cirúrgicos, com as cirurgias robóticas, nos transplantes e nas microcâmeras que operam cérebros. Se você precisasse se submeter a uma dessas operações, certamente, desejaria receber estes cuidados ultramodernos, certo? E, se fosse possível evitar ser submetido a uma cirurgia, como a tecnologia te ajudaria?

Com um pouco de atraso, comparado com outros setores da sociedade, essas novas tecnologias estão chegando à área da saúde, causando uma verdadeira mudança de mentalidade e de comportamento, uma verdadeira quebra de paradigma, uma disruptura, pois a internet trouxe facilidade de acesso a todo o tipo de informação, facilitando a transformação do paciente  para que ele seja o principal agente de sua saúde e de sua jornada dentro da experiência pré, trans e pós operatória.

Nós, cirurgiões plásticos, provavelmente fomos os primeiros grupos de médicos a perceber o impacto dessa mudança de comportamento, em que o paciente (me refiro àquela minoria de brasileiros que possui plano de saúde ou tem como custear) escolhe o procedimento, escolhe o profissional, o hospital  e todos os demais pontos de contato que envolvem a experiência relacionada a sua cirurgia.

No passado a capacidade técnica foi o grande diferencial, pois o conhecimento era ainda muito restrito. Por esse motivo, poucos cirurgiões conseguiam obter bons resultados. Com o passar dos anos, e com a mentalidade da era industrial a competição ficou restrita à questão financeira, onde o preço era o grande diferencial na escolha do cirurgião. Porém, o momento em que vivemos hoje, conhecido como era da experiência, o grande diferencial competitivo e o principal desafio das equipes lideradas pelos cirurgiões plásticos é desenvolver a capacidade de oferecer uma melhor e mais completa experiência de saúde.

E a busca da inovação e de novos modelos de assistência à saúde, no intuito de proporcionar a melhor experiência para o paciente, deveria ser o foco de todas as especialidades médicas, pois:

O Uber, não matou o modelo de negócios dos taxis. O acesso limitado, o controle absurdo das tarifas e o péssimo serviço prestado foram os verdadeiros responsáveis.

A Apple, não matou a indústria fonográfica. Foi o fato de sermos forçados a comprar um disco inteiro, quando na verdade queríamos ouvir somente apenas uma música específica.

A Amazon, não matou as formas tradicionais de venda. O péssimo serviço prestado e a má experiência de consumo foram os responsáveis.

A tecnologia sozinha não é a real DISRUPTORA. Não ser verdadeiramente centrado nas reais necessidades de seus clientes é a grande ameaça a qualquer modelo de negócio.

Os médicos deixaram de cuidar da saúde do paciente, para focar apenas na doença e nos modelos de negócio relacionados aos procedimentos e ao volume de atendimentos. A disruptura desse modelo será resgatar a essência do cuidado e promoção da saúde, um novo modelo baseado na percepção e na entrega de valor.

Inovação na cirurgia plástica não precisa necessariamente estar relacionada à tecnologia, às novas técnicas e aos novos equipamentos. A inovação pode acontecer também na forma de relacionar-se com o paciente, estimulando hábitos saudáveis e mudanças de comportamento para promoção da sua saúde, como para si mesmo enquanto pessoa e profissional de saúde.

A cirurgia plástica vem passando nos últimos anos por profundos processos de mudança na percepção de valor causados pelo surgimento de novas tecnologias, porém o propósito maior relacionado à transformação da alma de nossos pacientes permaneceu como o pilar fundamental de nossa especialidade, que começou tratando deformidades. Com a evolução das técnicas passou a ser reconhecida como uma especialidade capaz de tratar as deformidades e também aprimorar a auto-estima.

Na transição disruptiva da cirurgia plástica, o verdadeiro diferencial competitivo do cirurgião plástico é a sua capacidade de ser humano e compreender sua importância na transformação na vida de seus pacientes.

A mudança de paradigma está justamente em manter as conquistas do passado, com a visão de promover o bem estar biológico, psicológico e social em escala global, através da busca constante pela inovação.

Cortesia da imagem da capa: Qrius

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Dr. Leonardo Aguiar

Médico e cirurgião plástico, Dr. Léo Aguiar é fundador da Laduo, sendo um defensor da união entre a saúde integrativa e seu uso potencializado pelas tecnologias exponenciais. Adora pesquisar como a tecnologia pode ser uma excelente aliada da saúde, capaz de transformar enredos e mudar destinos.

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