Um fenômeno global já vem acontecendo há alguns anos e no Brasil tende a acelerar: o crescimento das Fintechs, Financial Technology, que são startups voltadas para inovação no mercado financeiro; das Insurtechs, Insurance Technology, voltadas para inovação no mercado segurador; das Agtechs, ligando às empresas de tecnologia aplicada ao agronegócio; e das Healthtechs, ligando tecnologia à saúde, dentre outras.

Apesar da importância e dos vários detalhes relacionados a cada uma delas, vamos focar, neste artigo, especificamente nas Healthtechs.

Arrisco dizer que hoje em dia não é mais necessário ter algum tipo de formação nos cursos tradicionais ligados diretamente à saúde para empreender nessa área, trazendo inovações que impactem positivamente o setor.

Imagine o potencial de público alvo: o Brasil possui, segundo o IBGE, 208,8 milhões de brasileiros e, conforme a ANS, destes, apenas 47,28 milhões, ou seja, 22,64% possuem vínculo com planos de saúde médico-hospitalares. Sobra, então, aproximadamente, 162 milhões de pessoas. É tanta gente que, em termos de comparação, corresponde a quase 20 vezes a população total da Suíça.

Essas milhões de pessoas sem vínculo possuem acesso somente ao Sistema Único de Saúde (SUS), que, sabe-se, não consegue fornecer o subsídio necessário à promoção da saúde e à prevenção de doenças.

Contudo, sejamos francos, o mercado de saúde, seja ele público ou privado, é um dos mais imperfeitos e complexos, e boa parte disso pode ser explicado pelo fato de sua cadeia produtiva de bens e serviços ser amplamente desconectada, cheia de conflitos de interesses. Quando analisamos mais de perto este contexto, podemos enxergar um modelo muito próximo da teoria da “soma zero”, ou seja, enquanto alguns ganham, outros, necessariamente, perdem.

É preciso rever isto. A forma como está estruturada a cadeia de valor da saúde somente conseguirá chegar a um modelo de entrega ideal se todos os participantes estiverem envolvidos na melhoria do sistema como um todo, buscando sua sustentabilidade integral e deixando de lado os interesses particulares e de curto prazo.

Assim, o mais importante deste processo de transformação não está em apenas sairmos do modelo de pagamento, operadora para prestadores Fee for Service, onde a operadora paga aos prestadores (hospitais, clínicas, laboratórios etc.) tudo que produz para o DRG – Diagnosis Related Groups (Grupos de Diagnósticos Relacionados), ou seja, a operadora paga aos prestadores um valor médio por procedimento, por exemplo. A verdadeira transformação da saúde acontecerá quando todos os participantes desta cadeia voltarem sua atenção ao seu protagonista – o paciente – pois sem ele não existe prestação de serviço de saúde.

Estando o paciente no centro das atenções, os participantes devem se concentrar na promoção e prevenção da sua saúde, e não na gestão de sua doença.

Nesse contexto, a tecnologia auxilia o setor, permitindo conhecer detalhadamente as características clínicas dos pacientes. O salto está em cuidar para que o paciente preserve sua saúde sem que haja a necessidade de tratar doenças. A prevenção passa a ter um papel fundamental no valor gerado na cadeia, já que evitar enfermidades é a melhor forma de quebrar o modelo da “soma-zero” e contribuir para a verdadeira transformação da saúde.

Seria impossível esta mudança? Não! Mas, para entendermos o motivo disso tudo não estar acontecendo precisamos, antes de qualquer coisa, aceitar que a implantação deste novo conceito passa por um processo de mudança de cultura no nosso país e isso, todos sabemos, demanda  tempo. Então, no curto prazo, nada há muito o que fazer, ainda que, diante das necessidades, discussões e provocações atuais tendam a acelerar o processo.

Enquanto isso, o mercado está se movimentando e se inovando. Novos players estão surgindo a cada momento para tentar atender parte das necessidades daqueles 162 milhões de pessoas sem planos de saúde, citadas acima.

Algumas delas com interesses e tipos de comportamento inéditos, tais como: jovens que gostariam de ter um plano de saúde On Demand só no final de semana; pessoas que gostariam de ter cobertura apenas para certo tipo de procedimento, como por exemplo uma cirurgia plástica ou consultas oftalmológicas. É uma espécie de Self Service de serviços de saúde.

Ao tempo que esse grupo composto por 162 milhões de pessoas está evitando ou não pode adquirir um plano de saúde tradicional, que requer pagamentos mensais, também quer evitar as filas intermináveis do SUS.

Observando esse comportamento e interesse ao acesso a serviços de baixa complexidade e de preço mais reduzido, várias operadoras revisaram a estratégia de vendas de seus produtos e passaram a ofertar planos somente ambulatoriais, com o intuito de captar uma parcela dessas pessoas que estavam indo, principalmente, para as clínicas populares.

Entretanto, cumpre destacar que planos ambulatoriais não cobrem internações cirúrgicas, mas estão ligados ao Rol de Procedimentos (cobertura mínima determinada pela ANS) e, assim, incluem exames e terapias de alta complexidade (ressonância magnética, tomografia computadorizada, tratamentos oncológicos etc.), impossibilitando uma significativa  redução no preço, até porque, no geral, as internações representam entre 30% e 40% dos custos assistenciais totais, ficando, portanto, a grande parcela das despesas para o âmbito ambulatorial.

Além de tudo isso, também temos hoje, um cliente muito mais exigente, que deseja um atendimento mais ágil, resolutivo e transparente. A vasta oferta de informação e a crescente conectividade entre as pessoas, ambas impulsionadas pelas tecnologias de comunicação, estão moldando um novo tipo de consumidor, convencionalmente chamado de “empoderado”: aquele paciente que vai a uma consulta médica munido de autodiagnósticos feitos após uma busca no Google. Nesse sentido, ainda podemos destacar as reclamações virtuais contra atendimentos ruins, que inundam as redes sociais, todos os dias.

Resultado? Novas possibilidades para empreender na área da saúde no Brasil, e uma delas é a criação de startups que usam a tecnologia para fornecer serviços inovadores.

Se existe algo que os empreendedores adoram são problemas relevantes que atingem muitas pessoas. É o chamado Propósito Transformador Massivo (PTM), conceituado no livro “Organizações Exponenciais”. É neste tipo de ambiente que eles podem aplicar novas tecnologias e ideias inovadoras para criar empresas que geram impacto. O Brasil é um “parque de diversões” para eles. Basta olhar para um segmento de mercado que encontraremos problemas sérios para serem resolvidos e que afetam milhares de brasileiros.

A explosão das Healthtechs já começou. Em um recente estudo da Distrito, o Mining Report do 1º semestre de 2018, a contagem de startups focadas em saúde, no Brasil, já passa de 280. Elas começam a atacar, de forma específica, cada um dos problemas que os pacientes enfrentam. A tecnologia vem sendo usada, por exemplo, para garantir acesso a serviços de qualidade para a população de baixa renda; para melhorar a relação entre médico e pacientes através de canais digitais; para garantir que prescrições médicas não tenham erros; para reduzir custos de planos de saúde com auxílio de inteligência artificial; e para aumentar a adesão a tratamentos para doenças crônicas usando assistentes digitais. Todas são propostas promissoras.

Segundo este estudo, são 9 segmentos principais:

1- MARKETPLACE

– OFERTA PRÓPRIA – Plataformas que agregam profissionais e serviços de saúde com padronização de serviços e garantia da qualidade.

– OFERTA TERCEIROS – Plataformas que agregam profissionais e serviços de saúde, atuando somente como intermediário na transação.

– REDES DE CLÍNICAS – Redes de clínicas com preços acessíveis para consultas e realização de exames.

2- EDUCAÇÃO EM SAÚDE

– INFORMAÇÃO E ACESSO – Aplicativos e portais que fornecem conteúdos informativos sobre saúde pública, medicamentos, acesso a equipamentos públicos, prevenção de doenças crônicas.

– FITNESS E BEM ESTAR – Soluções que facilitam a adoção de um estilo de vida mais saudável através da oferta de produtos e serviços de alimentação saudável, exercício, bem-estar ou disponibilização de ferramentas de registro de atividades.

3- WEARABLES & IOT

– WEARABLES – Empresas que fabricam acessórios vestíveis para monitoramento de atividades dos pacientes com foco em bem-estar, como atividade física, alimentação, sono.

– SENSORES DE SAÚDE – Empresas que fabricam aparelhos conectados para monitoramento remoto de indicadores de saúde, especialmente para doentes crônicos. Exemplos: monitores de glicose, estresse, sinais vitais.

4- RELACIONAMENTO COM PACIENTES

– ENGAJAMENTO DE PACIENTES – Soluções que aumentam a aderência do tratamento através de aplicativos, SMS, chatbots, especialmente para doenças crônicas e cirurgias.

– TERAPIAS DIGITAIS – Soluções digitais para prevenção, monitoramento e tratamento de condições de saúde, sem envolvimento ou com envolvimento limitado de terceiros.

– COMUNICAÇÃO – Plataformas de comunicação para médicos, pacientes ou para comunicação médico-paciente.

5- GESTÃO E PRONTUÁRIO ELETRÔNICO

– PRONTUÁRIO ELETRÔNICO – Serviços que criam e gerenciam prontuários eletrônicos para aumentar a eficiência e eficácia dos atendimentos de saúde.

– GESTÃO HOSPITALAR – Serviços para aumento da eficiência e controle de procedimentos médicos fora do atendimento incluindo controle de escalas, reembolso de seguros, coordenação de fluxos, controle de remédios.

– GESTÃO DE CLÍNICAS – Serviços para clínicas e consultórios particulares que facilitam a gestão e atendimento de profissionais de saúde, tais como agendamento, controle de fluxo de caixa etc.

6- TELEMEDICINA

– TELEATENDIMENTO – Serviços de segunda opinião, educação em saúde e apoio na tomada de decisão utilizando tecnologias de telecomunicação.

– TELEDIAGNÓSTICO – Serviços de transmissão de imagens para realização de diagnóstico remoto.

– TELEMONITORAMENTO – Serviços que permitem a familiares e médicos acompanharem o atendimento de pacientes à distância.

7- MEDICAL DEVICES

– EQUIPAMENTOS – Desenvolvimento e fabricação de equipamentos para prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, traumas ou problemas de acessibilidade.

– 3D – Desenvolvimento de modelos e fabricação de peças utilizando impressoras 3D, tanto para realização de treinamento, quanto para fins cirúrgicos.

8- FARMACÊUTICA E DIAGNÓSTICO

– E-COMMERCE – Soluções para compra e entrega de remédios sem prescrição, vitaminas, suplementos e produtos de cuidado pessoal em domicílio, incluindo serviços de assinatura.

– PESQUISA FARMACÊUTICA – Ferramentas e técnicas de testes e descoberta de novos medicamentos.

– GENÔMICA – Empresas que produzem ou utilizam dados sobre o genoma humano para diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças. EXAMES Tecnologias para realização de exames de diagnóstico de doenças e medição de resultados clínicos (não inclui empresas utilizando Inteligência Artificial).

9- AI & BIG DATA

– AI & ROBÓTICA – Empresas com soluções de Inteligência Artificial para realização de diagnóstico, apoio na tomada de decisão e soluções robóticas para atendimento remoto e próteses.

– BIG DATA & ANALYTICS – Empresas que agregam e analisam altos volumes de dados para aplicações voltadas à área da saúde.

Em termos de quantidade, a maioria das startups em healthtech está concentrada no segmento Marketplace, isto devido à grande demanda e à carência na área de atenção básica de saúde. Na sequência, temos Gestão e PEP, Farmacêutica e Diagnostico, Educação em Saúde e AI & Big Data.

Este mesmo estudo traz a distribuição destas startups no Brasil: 64,40% delas estão na região Sudeste (destaque para o estado de São Paulo, com 42,1%); na região Sul, 21,80%; Nordeste, 9%; e Centro-Oeste, 4,8%. A região Norte, até então, não possui.

O setor é um dos mercados mais promissores no nosso país. Soluções de atendimento automatizado – como os chatbots – e até sistemas de auxílio a diagnóstico por inteligência artificial são os mais potenciais. Além disso, tecnologias como o “Big Data” permitem a análise preditiva da evolução do tratamento de pacientes individuais e até de possíveis epidemias, permitindo ações preventivas em ambos os casos que minimizem os efeitos e reduzam os custos de atendimento, aumentando a eficiência do sistema.

Assim como as empresas tradicionais no setor brasileiro de saúde, as Healthtechs também enfrentam alguns desafios, desde questões operacionais – por ser um setor ainda controlado pelo sistema público – até limitações e burocracia para a rápida adoção de tecnologias. A resistência cultural à inovação é outro fator que, em muitos casos, restringe a utilização de sistemas automatizados, como o prontuário eletrônico, ferramenta essencial para o ganho de produtividade e a obtenção de dados para análise.

Portanto, são necessários mais recursos para investimentos nessas startups, não apenas capital financeiro, já que  a inteligência agregada também é essencial às empresas. As aceleradoras devem agregar todo seu conhecimento e experiência a fim de estimular o desenvolvimento das startups no mercado em questão.

Sem dúvida, o setor brasileiro de saúde é o segmento com uma das maiores demandas do país. Para enfrentar seus desafios, é preciso romper as barreiras burocráticas e culturais.

Nesse movimento de mudança nos serviços, quem mais sai beneficiada é a população, que consegue um aumento na oferta e na qualidade, além da diminuição dos valores, possibilitando a adesão de maior número de pessoas. Assim, as Healthtechs, definitivamente, constituem um segmento que todas as empresas e instituições do setor devem estimular, colaborar e interagir, para transformar positivamente a saúde do nosso país.

Para finalizar, ficam alguns questionamentos sobre as Operadoras de Planos Saúde (OPS) neste ambiente futurista:

a) já que a baixa complexidade (consultas e exames simples) estão cada vez mais sendo atendidas pelos novos players, as OPS terão que se especializar cada vez mais na alta complexidade (internações, tratamentos oncológicos etc.)?

b) as OPS terão a que cada vez mais mergulhar na prevenção de seus beneficiários ao ponto de vestir a camisa dos cuidados até a morte deles, serão empresas com o PTM semelhante à frase do Abílio Diniz, “Longevidade é uma certeza, envelhecer bem é uma escolha”.

Crédito da imagem da capa: VideoBlocks

Nazareno Maciel Junior

Nazareno é atuário, perito, palestrante, escritor e mestre em Economia. Atua no segmento de Saúde Suplementar. É membro do Instituto Brasileiro de Atuária (IBA), do Comitê Nacional dos Atuários do Sistema Unimed e do Comitê Permanente de Solvência da ANS.

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