No começo de dezembro, me mudei para Berlim na esperança de continuar trabalhando como freelancer. Apesar de muita gente fazer isso, eu descobri que seria mais fácil procurar um emprego fixo devido à forma como a burocracia funciona por aqui. E, pode ter certeza, a burocracia aqui é bizarra – a maioria das coisas é feita presencialmente ou, no máximo, por correio.
Para além de toda a dificuldade para se alugar um apartamento na capital, há também uma série de documentações que você precisa tirar para poder trabalhar, mas precisa de trabalho para poder tirar. Um clássico kafkiano. Mas, resumidamente, todas essas questões me fizeram pensar: será que vale a pena ser freela e nômade digital? Será que o futuro é mesmo remoto e flexível como promete a gig economy? Talvez sim, mas, pelo jeito, não na Europa.
Com exceção da Estônia, que tem absolutamente todos seus serviços governamentais e burocráticos acessíveis através de uma plataforma digital, o resto do continente parece dificultar bastante a vida de quem quer ter empresa e/ou ser freelancer. Por um lado, isso tem a ver com todo um sistema de garantias ao cidadão: acesso ao sistema de saúde, seguro desemprego, ajuda governamental para achar outro emprego etc.
Comecei a procurar empregos fixos, iniciei vários processos e até passei em um, mas tive que recusar porque precisarei mudar de país mais uma vez. O motivo? Por mais que haja o modelo de trabalho remoto, ainda assim, por aqui é importante estar presencialmente no escritório para ter o “espírito de equipe”. E isso não é só para empregos na área das humanas. Mesmo desenvolvedores estão sendo cobrados de retornar ao trabalho presencial.
Segundo a pesquisa State of the Octoverse lançada pelo GitHub em 2021, antes da pandemia, 41% dos desenvolvedores pesquisados (mais de 12 mil) trabalhavam presencialmente em tempo integral ou parcial. No entanto, depois da digitalização impulsionada pela covid-19, apenas 10,7% dos entrevistados estão querendo voltar ao escritório quando a pandemia acabar.
E no que diz respeito às ofertas de emprego, como fica? Na área de tecnologia, é fácil encontrar ofertas de emprego como desenvolvedor, engenheiro, analista – o que significa que você precisará conhecer diferentes ferramentas e linguagens, ou seja, é bastante técnico.
Na área da comunicação, é bem provável que você veja vagas como “redator”, mas descubrir que também precisará gravar vídeos, fazer infográficos, dançar tango e correr de ponta-cabeça. E prepare-se para fazer muitos estudos de caso, isto é, uma tarefa designada pelos empregadores, de modo que eles possam claramente ver suas capacidades (vulgo, trabalhar de graça).
Ou seja, é muito mais técnico por aqui. Não dá para enrolar, não tem conversa. Não importa que você seja um ótimo pesquisador de tendências se você não souber usar ferramentas de mensuração de redes sociais. Não importa se você escreve super bem, mas não sabe configurar metadata, usar técnicas de SEO e acompanhar as estatísticas da plataforma.
Isso é bastante curioso quando a gente vê nos relatórios de tendências sobre o futuro do trabalho e da educação – ou melhor, da aprendizagem. Já não se fala mais em sistema de ensino STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática), mas sim STEAM, isto é, adicionando artes e filosofia.
Já se questiona hoje se a profissão do futuro é mesmo programador, se a tendência não seria optar por plataformas low-code ou no-code. Então… será que faz sentido continuar investindo em conhecimento técnico?
A analogia que sempre fazem é sobre quem fez curso de datilografia. Hoje em dia, ninguém mais faz isso, porque, o importante (na gigantesca maioria dos casos) não é a velocidade e precisão da sua datilografia ou digitação, mas sim a sua adaptabilidade em usar diferentes ferramentas que, invariavelmente, irão requerer digitação. Em outras palavras, estamos falando aqui daquela famosa frase de Alvin Toffler que diz que os analfabetos do futuro serão aqueles que não sabem aprender, desaprender e reaprender.
Já é senso comum que precisamos estar o tempo todo nos atualizando e aprimorando nossas capacidades profissionais, mas o que isso significa, na prática? Todo mundo é obrigado a aprender a programar?
Em um recente relatório que fiz para uma escola de programação, descobri justamente o oposto: no momento, precisa-se muito de desenvolvedores para que, no futuro, tudo já esteja “pronto” e automatizado o suficiente para que ninguém mais precise fazer esse trabalho “braçal”. Com tecnologias como o processamento de linguagem natural, estamos conseguindo fazer as máquinas conversarem na nossa língua – isto é, através da semântica dos nossos idiomas e não das suas linhas de código.
Recentemente, também comecei a escrever um material didático para uma nova empresa que irá oferecer cursos no estilo MBA, mas que não está interessada em ensinar seus alunos a programar e sim a entender o que são APIs, microsserviços e plataformas baseadas em cloud, entre outras ferramentas que parecem reservadas ao “menino de TI”. Só que, na verdade, eu não preciso saber escrever em Java, mas preciso entender que determinado aplicativo usa esse tipo de formato e que ele serve para determinadas funções.
Ou seja, estamos falando sobre um cenário definitivamente STEAM: é o conhecimento científico, tecnológico e de engenharia, mas é sobre conseguir trabalhar com essas ferramentas para talhar uma escultura, não para moldar tijolos. Portanto, eu ainda acredito e defendo que o futuro do trabalho seja esse, mas dependendo do sistema em que se está inserido ou das ferramentas disponíveis para assegurar o trabalhador freelancer, é arriscado demais fazer parte dessa onda de mudança.
Afinal, a ideia de uma facilidade de contratação e flexibilidade de horários nos levou à exploração dos trabalhadores de aplicativo. Então, faz sentido estar inserido em um sistema burocrático mas que, no fim das contas, consiga te dar seguranças e garantias de bem estar social. Agora com o fim da pandemia, acredito que estamos nesse momento derradeiro: será que continuaremos nessa encruzilhada de extremos ou será que conseguiremos achar um caminho do meio?
Por ora, vemos serviços como o aplicativo Nomad oferecendo soluções de câmbio mais amigáveis para quem está sempre viajando. Mas e no que diz respeito ao acesso à saúde, seguro desemprego, direito à moradia, acesso ao sistema educacional? Provavelmente já tem algum projeto usando blockchain que vislumbra isso.
Independentemente dos meios, me parece que ainda estamos a muitos passos de distância de um futuro globalmente flexível e nômade que ofereça garantias de segurança ao trabalhador. Mesmo porque, depois de dois anos de pandemia e desemprego, muitos brasileiros estão retornando ao mercado de trabalho com ofertas de salário precarizadas – aliás, um tema que já explorei por aqui, em texto anterior.
Ilustração da capa: Danlin Zhang
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Fugiu demais do tema central. Vale a pena ou não vale? Quais as perspectivas? Ser nômade empreendedor é diferente de ser nômade funcionário. Funcionário nômade nunca funcionou, na minha opinião, porque os gestores precisam apresentar dados de controle e gestão e não apenas resultados.