Desde dezembro de 2019, a COVID-19 entrou como pauta dos noticiários e da vida das pessoas. Primeiro na China e depois se alastrando para o resto do mundo, tornando-se uma pandemia. Além da rápida disseminação, o que surpreende é o imenso potencial que existe para que, pela primeira vez, todos nós, operemos em uma frequência de abundância e não de escassez, de compromisso não apenas com o individual mas com o coletivo.

Me faço entender. Alguns meses atrás, me deparei com a notícia, no mínimo curiosa, de que uma das mídias globais mais conceituadas e influentes, o jornal Financial Times, lançava uma nova campanha cuja manchete era: “Capitalism: Time for a Reset” (Capitalismo. Momento de Revisão/Reset).

Desde 2008, o jornal não introduzia uma campanha tão impactante, marcando, em um momento de mundo de grandes transformações, uma abertura de perspectiva não só sobre os modelos econômicos, mas também sobre os modelos sociais e humanos. Abriu-se uma discussão sobre a busca insana por lucro e o desafio de promover um senso mais amplo de propósito corporativo. “O modelo capitalista liberal proporcionou paz, prosperidade e progresso tecnológico nos últimos 50 anos, reduzindo drasticamente a pobreza e elevando os padrões de vida em todo o mundo. Mas, desde a crise financeira global, o modelo ficou sob pressão, particularmente o foco em maximizar lucros e o valor para os acionistas. Esses princípios de bons negócios são necessários, mas não suficientes. Está na hora de uma redefinição do capitalismo”, afirmou o editor do jornal, Lionel Barber.

Comecei a refletir como esse sinal não se tratava de um fato isolado, mas de um indício importante no sentido de uma reflexão que já vêm tomando corpo sobre desafiar líderes e empresas, ou a sociedade como um todo, a salvaguardar o futuro não apenas com o foco no lucro e no resultado, mas na busca de um sentido maior e de um modelo mais justo e colaborativo. A Covid-19 só veio acelerar esse processo trazendo uma maior consciência sobre nossa auto responsabilidade e sobre o desequilíbrio das relações profissionais e pessoais.

O modelo vigente veio para trazer o desenvolvimento e a prosperidade. Porém, o paradoxo do capitalismo moderno é justamente a constatação de que, na prática, há um aumento gradual da disparidade nas camadas sociais, ou seja, o enriquecimento cada vez mais acentuado de pequenos grupos no mundo, detentores do poder e do capital das grandes corporações. Do outro lado, a crise se generalizando e afetando outras classes e o planeta. É chegada a hora, com a pandemia, de equilibrar a urdidura do planeta e desfazer o estado de descaso, cobiça, avareza, egoísmo e efemeridade com o qual o homem veio atuando.

Sobre esse paradoxo, o sociólogo Gilles Lipovetsky retrata um conceito bem interessante em seu livro Felicidade Paradoxal. Segundo ele, vivemos em uma sociedade efêmera, oriunda de sensações rápidas de pequenos prazeres transitórios de passageira felicidade. O capitalismo como um sistema que rege nossa atual sociedade cria um espelho. Nesse espelho, estaríamos a todo momento sendo empurrados para objetos que automaticamente são escolhas que se refletem em desejos introduzidos ou inconscientes, porém, ao mesmo tempo, não são prazerosos o suficiente. Esse olhar nos coloca em questão a incessante busca pelo consumo hedonista como fonte de prazer e felicidade, uma corrida pelo bem-estar individual.

A expressão “sociedade de consumo” nasceu nos anos 1920 e popularizou-se entre 1950 e 1960. Refere-se a um tipo de consumo puramente materialista que põe o dinheiro em um plano superior na vida. Para Lipovetsky, esse momento da história deve ser visto como ultrapassado. Não que o consumo tenha sido superado, longe disso, “A dinâmica de expansão das necessidades se prolonga, mas carregada de novos significados coletivos e individuais”, ou seja, haveria agora um tipo de “hiper materialismo”. Os homens continuam sedentos de consumo, entretanto agora, a qualidade de vida, a expressão de si, preocupações referentes ao sentido da vida estão em voga e se sobrepõem ao consumo desenfreado e isento de reflexão.

Essas considerações parecem um tanto quanto filosóficas. No entanto, o Coronavírus trouxe para o contexto dos negócios e para o contexto pessoal, a necessidade de revisitar as prioridades. O que antes em uma organização gerava resultados financeiros, persuadindo, incentivando o consumo, aumentando a produção e as vendas, hoje, não funciona mais. Hoje, faz-se necessário pensar no valor concedido as pessoas, no impacto ambiental, na geração de um impacto positivo na sociedade ou no engajamento com uma causa. Faz-se necessário olhar definitivamente com confiança para os colaboradores já que o home office deixou de ser uma alternativa para ser uma necessidade. Faz-se necessário repensar a sociedade do consumo e refletir o que é essencial.

Consumir por consumir saiu de “moda”. Agora definitivamente!!! Sobre esse assunto, o australiano Jeremy Heimans, explica brilhantemente em seu TED Talk “What New Power Looks Like”, o conceito de novo poder. Segundo ele, devemos ser capazes de mobilizar multidões não apenas para consumir, mas para participar ativamente de assuntos importantes. Em seu livro homônimo, o autor contrasta um modelo de poder do século XX – “zelosamente guardado, fechado, inacessível e dirigido por líderes”, com um novo modelo do século XXI – “aberto, participativo e dirigido por pares”. Nenhuma organização política ou comercial sobreviverá, argumenta Heimans, a menos que abandone os “antigos valores do poder” de especialização, confidencialidade, governança formal e gerencialismo e adote “novos valores do poder”, de crowdsourcing, transparência radical, estruturas horizontais e entusiasmo amador.

É aqui que entra a ideia de economia colaborativa, uma resposta ao compartilhamento não somente de bens, mas de valores, ideias e soluções para um futuro mais sustentável. Os negócios nascidos na economia compartilhada são criados, portanto, não apenas como oportunidade de negócio, mas com um propósito profundamente significativo. É aí que o capitalismo selvagem começa a ser revisitado: agora o valor compartilhado e o valor social passam a ser linguagens comuns no mundo dos negócios e também fora dele. Não é de se estranhar, que agora, diante de um inimigo comum global, estejamos todos oferecendo massivamente nossa empatia, nosso amor, nossa humanidade através de movimentos de solidariedade através de iniciativas sociais de todos os tipos, desde o entretenimento e cursos gratuitos, a doações de empresas.

Sobre esse tema, me lembro bem quando, em 2015, me deparei com o livro El Alma del Dinero, de Lynne Twist, responsável pela ‘Organização Mundial para Erradicar a Fome’, ‘The World Hunger Foundation’. A obra é fruto das jornadas de Twist liderando a organização e obtendo fundos dos mais ‘ricos’ e ajudando situações e pessoas com menos recursos. Nesse mesmo ano, assisti a uma palestra de Twist na qual compartilhava sua visão sobre o que ela chamou de paradigma da escassez e paradigma da abundância. Na ocasião, Lynne nos contou que, em determinado momento foi arrecadar fundos de uma grande organização cujo presidente havia lhe concedido uma grande quantia para a causa humanitária. Porém, ao se deparar com o recurso, se questionou se deveria ficar com o dinheiro uma vez que a empresa passava naquele momento por uma questão com sua imagem e certamente o recurso vinha para “apagar” esses danos. Lynne relatou que, após muito pensar, devolveu a imensa quantia com uma carta que convidava o presidente a refletir sobre a motivação da doação e que estaria pronta para receber o recurso uma vez que o gesto não viesse de um lugar de escassez. Anos depois, já fora desta organização, o então presidente da empresa, mandou a Twist uma carta e um cheque com um valor ainda mais alto. A mensagem da carta dizia a ela: “Agora estou pronto a doar de um lugar de abundância. Obrigado por me ensinar esse lugar”.

A história é uma metáfora do que acontece em nossa sociedade. Alimentamos um “modus operandi” consumista que nos diz que não há o suficiente para todos e que alguém, em algum lugar, sempre será deixado de fora do sistema. Isso nos obriga a pensar que precisamos garantir que aqueles que ficam sem dinheiro, prosperidade e trabalho não sejam nós. Acreditamos que mais seja melhor e que nada é suficiente, e por isso acumulamos.

Essa crença nos obriga a viver muitas vezes uma vida de competição em uma corrida sem vencedores que nos desconecta do que realmente importa. E assim, Lynne nos pergunta: “Preferimos o conforto desconfortável de ficar no mesmo lugar sem descobrir o que mais existe para nós?”. Segundo a autora, a chave da mudança está na palavra suficiente e não em abundância. “A abundância é o oposto da escassez. A abundância é mais do que precisamos e a escassez é menos do que precisamos. Entre esses dois conceitos existe o suficiente – exatamente o que precisamos e nada mais”. Nesse momento de pandemia, começamos a refletir: O que é suficiente? O vírus nos coloca diante de nossa própria escassez e nos faz rever atitudes. Faço ou não um estoque de comida? Compro ou não uma quantidade maior do que aquela que posso consumir de álcool gel? Continuo ou não pagando meus funcionários? Respeito ou não a quarentena entendendo que minha saúde e a saúde de todos estão interconectadas?

A grande questão no paradigma da escassez é que acreditamos que não conseguiremos alcançar nossos objetivos, que irão faltar oportunidades, recursos e competências. A competitividade excessiva e a negatividade surgem disso. Portanto, esse mindset nos faz pensar que devemos “derrotar” o outro, porque não existe o suficiente para todos. Conflitos, falta de união, hipercompetitividade, pressa e negatividade, são provenientes dessa mentalidade.

É fato que ainda nossa sociedade vive a herança de uma mentalidade escassa, porém vemos o surgimento de uma nova economia, uma nova maneira de pensar, de fazer e de ter: a economia do compartilhamento. O acesso e o consumo colaborativo em todos os setores desde o transporte, os bens de consumo, os serviços ou ainda os setores mais tradicionais, surgem para que possamos aprender que os recursos são suficientes e que todos nós podemos usufruir de uma vida plena e próspera, sem qualquer privação. Como nos diz uma das leis da abundância: “A verdadeira fonte de abundância do ser humano é a sua criatividade ilimitada capaz de construir uma sociedade rica e sustentável em pleno deserto”.

Então, meu apelo para esse momento desafiador da humanidade, é que possamos ter consciência que nossos recursos internos ou externos são ilimitados desde que saibamos mobilizá-los com sabedoria e respeito. E, que todo e qualquer negócio, vise o resultado desde que todos os envolvidos ganhem. Meu apelo é que estejamos abertos e receptivos a ideias que criem abundância e prosperidade, para si, para o outro e para o mundo. A Covid-19 é definitivamente um basta a antigas crenças, valores, modelos e mentalidades. Por favor, vamos viralizar a abundância! O planeta agradece.

Crédito da imagem da capa: Lee Kyutae, aka Kokooma.

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Sabina Deweik

Sabina é caçadora de tendências, futurista, pesquisadora, consultora e educadora. Atualmente atua rastreando, digerindo e interpretando sinais de futuro, com palestras, cursos, mentorias e conteúdos para marcas, organizações e empreendedores. Formada em jornalismo pela PUC-SP, tem mestrado em Comunicação e Semiótica também pela PUC e Mestrado em Comunicação de Moda pela Domus Academy, de Milão. É também coach ontológica certificada pela Newfield Network do Chile, atuando em processos de desenvolvimento humano.

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