Minha relação com a música não é nova: fora ter crescido durante os anos de ouro do Planeta Xuxa e do Disk MTV, há nove anos sou DJ na noite porto-alegrense, tocando todos os finais de semana para um público que vai dos 18 aos 30 anos. Vivi a revolução quando os canais das controladoras permitiram usar pen-drive ao invés do CD, o que me fez como DJs abandonar os pesados estojos de CDs por uma niqueleira que cabe no bolso. Como pesquisador acadêmico há cinco anos, meu interesse na música e na produção musical deu uma guinada no último ano, principalmente por conta da pandemia. Sem poder tocar em festas presenciais, reuni essas duas paixões e mergulhei no assunto do mercado fonográfico e a revolução do streaming, que compartilho agora um pouco dessa visão. Nessa primeira viagem, convido vocês a perceberem como as playlists são, de fato, um dos grandes vetores das transformações nesse setor, e como elas já moldam desde a forma que nos relacionamos com a música e com nossos artistas favoritos, até mesmo a produção criativa e artística.

Quando o Spotify chegou ao mercado global há mais de quinze anos, e sete no Brasil, a promessa era oferecer um serviço que combatesse a pirataria e garantisse acesso a um catálogo praticamente infinito a um preço mensal menor do que um CD em promoção. Deu certo. Hoje, além de contar com 345 milhões de usuários inscritos nos 170 países em que está presente, a gigante do streaming cumpre outra promessa que, na época, passou despercebida, mas que de aposta virou o jeito de jogar no mercado fonográfico de streaming: as playlists.

Selecionar músicas em uma lista de reprodução não é nada novo. Isso se chama álbum. Mas foi com a chegada da fita cassete que tudo ficou simplificado: quem viveu os anos 80 e parte dos 90, gravava sua lista direto da programação da estação de rádio favorita, muitas vezes com o comercial ou a voz do radialista incluída. Essa personalização foi aperfeiçoada com a chegada do download – poder baixar ou descarregar uma música –, que também marcou o início da dor de cabeça dos bam-bam-bans da indústria fonográfica: principalmente por causa da pirataria descontrolada que os serviços como Kazaa, Limewire e Napster ofereciam. Um jeito de coibir a prática, e que ajudou por um bom tempo essa lógica de remuneração dos direitos autorais a se sustentar, foi a chegada do iTunes e do próprio iPod.

Porém, a grande revolução veio com o streaming. Segundo dados mais recentes (2019) da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), o formato já é responsável por 62,1% das receitas globais de música gravada por segmento, enquanto a de vendas físicas não chega aos 20%. O download e outros formatos digitais, então, representam nem 6%. Com o pagamento mensal, qualquer usuário pode ter acesso a um catálogo diverso de conteúdos de áudio, personalizar suas listas de reprodução e ainda ouvir em qualquer lugar com o uso do seu celular sem ser interrompido por nenhum tipo de anúncio.

E as playlists? Elas não são uma exclusividade das plataformas de streaming, mas sempre foram tratadas como um grande diferencial. Para o Tidal, por exemplo, o atrativo eram as listas de reprodução com curadorias de artistas e experts da música. Com mais de 4 bilhões de playlists, o Spotify permite ao usuário um nível de personalização praticamente infinito: só lembrar como era gravar um CD com limite de megabytes nos anos 2000 ou ter que deletar uma música dos aparelhos de MP3 para poder incluir uma nova faixa.

Sem poder conter o avanço do streaming usando as mesmas regras do jogo, as gigantes da música precisaram repensar sua lógica de negócio muito por causa do formato de distribuição das playlists. Só pensar na nossa relação com os discos antes da chegada das plataformas: o CD já foi algo tão importante que era considerado artigo de presente. Porém, além de caro, ele escondia outros problemas, já que nem todas as faixas poderiam justificar a compra, fora o modelo engessado da sua organização. Eu lembro quando eu ganhei o Camino Palmero do The Calling por causa de “Wherever You Will Go”. Ou quando pedi a trilha sonora de Malhação porque tinha “Tô Nem Aí” da Luka. A gente só comprava um CD quando gostava muito de uma música – ou com muita sorte, de algumas – e o resto era esperar que tocasse na rádio ou aguentasse esperar algumas horas ou até dias para baixar via torrent. As playlists permitiram agrupar as músicas favoritas sem necessariamente ter que trocar o disco no aparelho ou ter que comprar um álbum de cada artista, ajudando, inclusive, a estimular conhecermos novos artistas sem necessariamente ter que comprar o CD ou pedir emprestado. Contudo, a vasta gama do streaming também pode atrapalhar a escolha e aumentar nossa ansiedade em relação ao que ouvir, tornando um caminho mais seguro escolher uma playlist conforme nosso estilo musical ou artista e deixar rolar.

Essa lógica teve um impacto gigantesco na forma de pagamento que, até então, era por unidade e com a chegada do streaming a remuneração passou a ser por reprodução, ou seja, quanto mais uma faixa tocar, mais ela rentabiliza. Você conhece outra estratégia digital parecida? Isso mesmo, o streaming transformou o setor musical num enorme campo de estratégias de otimização de busca (SEO): tanto que cresce o número de artistas e profissionais de marketing que já escolhem palavras-chave para títulos de música – vale uso de hashtags – e também já encurtam as composições. Com músicas mais curtas, sobra mais tempo para elas serem reproduzidas e remunerar mais: November Rain, com seus oito minutos e cinquenta e seis segundos, remunera menos no streaming do que uma faixa de dois minutos e meio, por exemplo.

As playlists também fizeram surgir uma figura importante na cena: os curadores. O seu papel pode ser comparável ao dos radialistas, já que não só montam as seleções musicais, mas filtram materiais enviados diretamente para eles. Outra semelhança é que eles já vêm sendo requisitados pelas marcas e atraindo gigantes do setor: Kondzilla, o famoso produtor de funk no Brasil, fechou no último novembro uma parceria exclusiva com o próprio Spotify para cocriarem playlists dedicadas ao gênero. No lo-fi, gênero musical bastante usado pelos usuários de streaming para foco no trabalho ou descanso, criação e curadoria de playlist é questão de sobrevivência. Com a pandemia, a procura por listas do gênero teve uma demanda crescente que me levou, como pesquisador, a entender um pouco mais sobre a sua produção artística. Conversando com vinte produtores brasileiros, não só confirmei a tendência de mais artistas solos dominando todo o processo produtivo – da criação até a divulgação – como a importância das playlists para os produtores quase anônimos manterem seus rendimentos sem depender de gravadoras ou outros profissionais de marketing.

Mas toda essa revolução também pode ter uma concorrência desleal promovida pelas próprias plataformas: os artistas fantasmas, ou seja, perfis criados pelos próprios serviços de streaming sem existir um artista, de fato. Há alguns anos o próprio Spotify foi acusado de manter em suas playlists autorais materiais de artistas fantasmas, com o propósito de se auto remunerar. E podemos responsabilizar esse fenômeno também por conta das playlists: tem crescido o interesse do público em playlists com foco no trabalho. Jorrit DeVries, Tech & Telco Leader do Spotify, revelou em recente webinar que já são quase 10 mil playlists com esta finalidade, sendo que apenas uma das cinco mais ouvidas de autoria da plataforma que contam com músicas de artistas conhecidos que também aparecem nas principais paradas musicais do mundo. Ou seja: estamos ouvindo muita música, que nem sabemos quem canta.

O que estamos vivendo é um grande momento no mercado fonográfico, com as plataformas de música e, sem dúvida, com o formato de entrega musical em playlists. Porém, elas não são um indicativo de que os álbuns irão desaparecer: artistas como Beyoncé conseguiram, inclusive, reinventar o conceito e lançar coletâneas extremamente visuais, sem falar no poder político e cultural que carregam. Outros, como Taylor Swift, seguem atingindo cifras em vendas – físicas e digitais – que só existiam em um passado sem o streaming. Mas, precisamos entender que novos formatos irão coexistir e moldar nossa forma de ouvir e também de produzir música.

Assim como as paradas musicais se tornaram um termômetro de vendas, emplacar em playlists de streaming será um dos objetivos para artistas e gravadoras, principalmente entre aqueles que não desejam exposição midiática ou que tem restrição orçamentaria. Dessa forma, a procura por curadores de playlists bem estabelecidas nas plataformas também poderá abrir um novo padrão de influência dentro do mercado, tornando a função tão estratégica quanto apresentações públicas e presenças em eventos. O que também pode afetar a maneira como entendemos o que é um criador musical.

Práticas como a dos artistas fantasmas podem se tornar ainda mais corriqueiras: na medida em que suas músicas possam ganhar destaque nas plataformas e, consequentemente, remunerarem não apenas eles como também as empresas de streaming, sendo assim, será que haverá meios legais que tentarão coibir ou regular suas presenças? Ou como nós, como audiência, iremos reagir ao perceber que não existe esta figura artística por trás da produção? São respostas que nós deveremos dar, uma vez que as playlists são resultado não só da proliferação das plataformas de streaming, mas das preferências e das influências que nós, como ouvintes, temos quando damos o play em uma lista de reprodução, seja para dançar ou relaxar no sofá.

Crédito da imagem da capa: Rawpixel

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Matheus Trucolo Conci

DJ há nove anos, é apaixonado por pesquisa acadêmica e pelos estudos de marketing e marcas. Mestre em marketing pela UFRGS e estrategista de marcas na Cordão.

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