Nossas preferências por livros, filmes, séries, comida e até amigos são facilmente disponibilizados pelas já não tão novas tecnologias. A Amazon nos diz o que ler, o Facebook com quem falar, o Netflix o que assistir, o iFood o que comer, o Tinder, bom… deixa o Tinder pra lá…

Esse aparente conforto – afinal agora temos uma enorme quantidade de opções na ponta dos dedos – traz embarcadas duas questões:

1) Será que só devemos nos relacionar com quem pensa da mesma forma que a gente, ou dentro de padrões de comportamento pré-definidos, ainda que por nós mesmos?

2) Será que estamos consumindo apenas conteúdo e informações que tenham sintonia com nossos pontos de vista?

A impressão crescente é que tudo se tornará “personalizado” em um futuro próximo. Não devido às nossas próprias escolhas, mas a compreensão “artificial” (a.i ) das nossas escolhas.

As aspas nunca significaram tanto: personalizado X artificial, embora ambos, no limite, sejam artificiais. Ao que parece perderemos um pouco a nossa capacidade de escolha, imersos em um perímetro cada vez mais estreito daqueles que se comportam como nós.  Numa perspectiva Naisbittiana, o mundo será cada vez mais touch, à medida que for mais tech. De tech não entendo muito, me interessa o touch.

Discutindo exatamente sobre esse assunto e como me incomodava a ideia de não controlar o espectro das minhas interações imaginei um cenário um tanto assustador. E se esse mesmo efeito/fenômeno guiasse nossas ações na cidade em que vivemos ou naquela que estamos visitando? Na verdade ele já nos guia de alguma forma. Aplicativos como o Waze nos dizem por onde dirigir e Maps da vida nos dizem por onde andar, aparentemente visando a facilidade e a otimização do percurso.

Pensar na otimização dos percursos é pensar que nos movemos pela cidade como mero cenário, como uma espécie de obstáculo que nos separa de onde queremos chegar. 

Impossível não comparar esse aspecto extremamente racional com conceitos mais orgânicos como a psicogeografia ou a teoria da deriva, ou de forma ainda mais ampla com o flâneur Benjaminiano (Baudelariano, na verdade, embora tenha sido imortalizado por Walter Benjamin).

O mais curioso é que provavelmente o antídoto para o racionalismo dos algoritmos, que tratam a cidade, como uma espécie de máquina de viver, no melhor estilo da Carta de Atenas (manifesto-guia da arquitetura e urbanismo modernistas criado em 1933, que gerou, entre outras distorções a cidade de Brasília) também se encontre no modernismo, de Baudelaire, Allan Poe e do próprio Benjamin.

O termo psicogeografia foi definido por Guy Debord, ainda nos anos 50 e está ligado ao comportamento lúdico- construtivo que se opõe às noções clássicas de viagem e passeio (Debord, 1958).

Uma ou várias pessoas que se lançam à deriva renunciam, durante um tempo mais ou menos longo, os motivos para deslocar-se ou atuar normalmente em suas relações, trabalhos e  entretenimentos próprios de si, para deixar-se levar pelas solicitações do terreno e os encontros que a ele corresponde.”

Claro que existem necessidades diferentes para momentos diferentes, nem sempre você quer “experimentar” o caminho. Às vezes a eficiência é o seu objetivo, ou como chegar mais rápido do ponto A ao ponto B e nem sempre, você terá o espírito observador, descobridor. O flâneur por sua vez é o errante, o observador, e o flanar, a “Gastronomia do Olho” como disse Balzac.

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugido e no infinito. Estar fora de casa, e contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais que a linguagem não pode definir senão toscamente.” – Baudelaire, 1863

É importante compreendermos que a experiência na cidade vai, ou poderia ir, muito além do pragmático, do racional e do otimizado. É claro que para isso é preciso que a cidade também ajude. Já foi dito que uma cidade vibrante deve oferecer uma surpresa a todo o instante durante o percurso, o que nos aponta para a necessidade de uso misto, fachada ativa, lotes menores, vida em comunidade, com mais oportunidades de interação e descoberta.

Sobre a humanização dos espaços, o arquiteto Martín Marcos, referencia Jane Jacobs ao dizer que se quisermos cidades projetadas para o futuro, devemos voltar a olhar o espaço público como o coração da vida moderna, “repensar a rua, a praça, o parque, a arborização e a paisagem urbana, aquela que nos permita humanizar o espaço público e experimentar o encontro, o intercâmbio e a diferença.”

Para Jane Jacobs a rua é uma autêntica e complexa instituição social onde aprendemos a socializar e construir comunidade. Um projeto que foi inspirado nela, é o Jane Walk´s em que caminhadas são organizadas de forma colaborativa, por qualquer pessoa interessada em guiar o passeio. Esse projeto começou no Canadá em 2007, e desde então acontece em várias cidades ao redor do mundo. (Crédito: Fred W. McDarrah/Getty Images)

O andar pela cidade pode ser um exercício estético, poético, literário, meditativo. Nesse sentido, é preciso se desconectar, ainda que por alguns instantes da tecnologia, do tech, e se reconectar ao entorno, ao touch, para então seguirmos adiante.

Crédito da foto da capa: Caio Esteves.

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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