Faz parte do percurso da vida. A maioria de nós chegará à meia-idade. Alguns irão encarar essa transição com uma autoconfiança inabalável, outros com espírito juvenil, uns irão agarrar-se às glórias do passado e talvez à maioria entre em crise existencial.

Os titãs da tecnologia começam a sofrer essa crise da meia-idade, depois de anos de glórias e crescimento. O novo relatório do Pew Research Center divulgado na semana passada, sobre a influência da tecnologia digital na democracia, revela como estão sombrias as opiniões dos tech experts. A maioria deles está muito pessimista.

A fase de total entusiasmo com a internet foi seguida por uma fase de techlash, em que os internautas passam a se preocupam com a velocidade, o alcance e a complexidade da internet para fins nocivos. Nos últimos quatro anos – época da decisão do Brexit no Reino Unido, da eleição presidencial americana e de várias outras eleições – a disruptura digital da democracia tem sido uma das principais preocupações.

A resistência às grandes empresas norte-americanas de tecnologia é cada vez mais evidente, e alguns pioneiros estão aderindo a esse coro. Os governos estão investigando ativamente algumas dessas empresas. Além disso, organizações e fundações sem fins lucrativos estão direcionando recursos para encontrar estratégias para lidar com os efeitos nocivos dessas disrupções. A Knight Foundation, por exemplo, anunciou em 2019 que está doando US$ 50 milhões para incentivar o desenvolvimento de um novo campo de pesquisa centrado no impacto da tecnologia na democracia.

À luz desse furor, em 2019, a Pew Research Center e o Imagining the Internet Center da Universidade Elon questionaram especialistas em tecnologia para entender a mentalidade deles sobre possíveis impactos futuros do uso de tecnologia pelas pessoas na democracia.  O relatório é baseado nas respostas [comentários escritos] de 979 pessoas da indústria de tecnologia ou próximas à ela (englobando líderes de negócios, empreendedores, inovadores, desenvolvedores, acadêmicos, pesquisadores e ativistas) à essa pergunta:

 Entre hoje até 2030, como o uso da tecnologia por cidadãos, grupos da sociedade civil e governos podem afetar [enfraquecer ou fortalecer] aspectos essenciais da democracia e da representação democrática?

Cerca de 49% dos respondentes espera que a tecnologia “enfraqueça a democracia até 2030”, devido à velocidade e à extensão de distorções da realidade, ao declínio do jornalismo e ao impacto do capitalismo. 33% espera que a tecnologia fortaleça a democracia, à medida que surjam formas de combater o caos de informações e as fake news e 18% afirmam que não haverá mudança significativa na próxima década.

A Pew Research deixa claro que essa pesquisa trata-se de uma avaliação não científica baseada em uma amostra não aleatória. Os resultados representam apenas as opiniões de pessoas que responderam à consulta e não são projetáveis ​​para nenhuma outra população. A maior parte deste relatório cobre as respostas escritas desses especialistas, explicando suas respostas.

Além da pluralidade de opiniões entre esses especialistas, a grande maioria – incluindo os pessimistas e os otimistas – manifestou preocupações sobre a interseção entre confiança, verdade e democracia. A lógica de algumas respostas desses especialistas é a seguinte: o uso indevido da tecnologia digital para manipular e “armar” fatos perturba a confiança das pessoas nas instituições e umas nas outras. A diminuição da confiança afeta a percepção das pessoas sobre se os processos e instituições democráticos projetados para capacitar os cidadãos estão de fato funcionando ou não.

Alguns respondentes acham que o ambiente de informações e de confiança piorará até 2030, devido ao aumento das deepfakes de vídeo, das cheapfakes e de outras táticas de desinformação. Eles temem que essa espiral que leva à descrença e ao desespero também esteja ligada às lutas de longa data que o jornalismo honesto e independente enfrenta. Além disso, muitos desses especialistas dizem que se preocupam com o poder das grandes empresas de tecnologia e seu papel no discurso democrático, bem como da maneira como essas empresas exploram os dados que coletam sobre seus usuários.

Jonathan Morgan, pesquisador sênior de design da Wikimedia Foundation, ao explicar porque ele acha que o uso da tecnologia enfraquecerá os aspectos centrais da democracia e da representação democrática, descreveu o problema da seguinte maneira:

“Estou preocupado principalmente com três coisas. 1) O uso da mídia social por grupos interessados ​​em disseminar desinformação de maneira estratégica e coordenada, com a intenção de minar a confiança das pessoas nas instituições e / ou convencê-las a acreditar em coisas que não são verdadeiras. 2) O papel de plataformas fechadas proprietárias, administradas por empresas com fins lucrativos, na disseminação de informações para os cidadãos, na coleta de informações de (e sobre) cidadãos e no engajamento de grupos políticos. Essas plataformas não foram projetadas para serem ‘bens comuns digitais’, não são igualmente acessíveis a todos e não são geridas com o objetivo de promover o bem-estar social ou a ampla participação cívica. A motivação pelo lucro por essas empresas, modelos de negócios, práticas de coleta de dados, falta de transparência no processo de poder (e, portanto, resiliência contra a regulamentação adotada para fins pró-sociais) as tornam pouco adequadas para promover a democracia. 3) O crescente papel de vigilância pelos proprietários de plataformas digitais (e outros atores econômicos que coletam e transacionam dados de rastreamento digital), bem como pelos atores de estatais, e o crescente poder das tecnologias de vigilância com aprendizado de máquina para capturar e analisar dados, ameaçam a capacidade do público de se envolver de maneira segura e equitativa em discussões cívicas.”

Aqueles que são mais otimistas esperam que as soluções efetivas para esses problemas evoluam, justificando que as pessoas sempre se adaptam e podem usar a tecnologia para combater os problemas que a democracia enfrenta. A maioria daqueles que não espera muita mudança, afirmou que acredita que o uso da tecnologia continuará sendo uma mistura estável de resultados positivos e negativos para a sociedade.

Algumas das respostas que merecem destaque:

Danah Boyd, principal pesquisadora da Microsoft Research e fundadora da Data & Society, escreveu: “A democracia exige que as pessoas se juntem e trabalhem com as diferenças para se autogovernar. Essa é uma tarefa difícil na melhor das hipóteses, mas quando as pessoas estão ansiosas, amedrontadas, confusas ou inseguras, é mais provável que se afastem do coletivo e se concentrem no interesse próprio. A tecnologia é desestabilizadora. Isso pode ajudar a desencadear mudanças positivas, mas também pode desencadear uma tremenda ansiedade. A tecnologia também pode beneficiar os movimentos sociais, mas também os atores adversários. Com demasiada frequência, a tecnologia é concebida de forma ingênua, imaginando tudo de bom, mas não criando salvaguardas para impedir o mal. O problema é que a tecnologia reflete e amplia o bem e o mal na vida cotidiana. E, no momento, não temos salvaguardas ou políticas para impedir que os manipuladores causem danos significativos às tecnologias que foram projetadas para conectar pessoas e ajudar a disseminar informações.”

Susan Etlinger, analista de indústria do Altimeter Group, respondeu: “Hoje temos a capacidade de reunir grande quantidade de dados, criar novos tipos de dados, transformá-los, criar e movimentar mercados sem termos estruturas de governança suficientes para proteger consumidores, pacientes, investidores e clientes – para não mencionar governos – de danos. Se pretendemos proteger a democracia, precisamos agir deliberadamente, mas também precisamos agir rapidamente. Se inverter o dano na era das ‘fake news’ já era bastante difícil, ficará exponencialmente ainda mais à medida que as notícias deepfake se tornarem a norma. Estou menos preocupada com robôs sencientes do que estou quanto à distorção da realidade e à violação dos direitos humanos de pessoas reais em grande escala. Portanto, cabe às instituições públicas e privadas implementar regulamentações apropriadas”.

Marc Rotenberg, diretor executivo do Electronic Privacy Information Center, disse: “Foi ingênuo acreditar que a tecnologia fortaleceria instituições democráticas. Isso ficou óbvio, pois as empresas de tecnologia quase imediatamente procuraram se isentar de leis e regras democráticas que governavam outros negócios em áreas como publicidade política, proteção da privacidade, responsabilidade do produto e transparência. A retórica dos “processos de múltiplas partes interessadas” substituiu a exigência de tomada democrática de decisão. O impacto foi imediato e abrangente: o rápido acúmulo de poder e riqueza. Técnicas que isolaram e silenciaram oponentes políticos, diminuíram a ação coletiva e colocaram funcionários importantes ao lado de líderes políticos, incluindo o presidente. E tudo com o apoio de um sistema político enfraquecido que foi hipnotizado pela tecnologia, mesmo quando este falhou em compreender as rápidas mudanças que estavam em andamento.”

Um respondente que não revelou o nome, mas escreveu que era pioneiro da Internet, na América do Norte: “Estou profundamente preocupado que a democracia esteja sitiada pelo abuso de serviços online e por alguns cidadãos seriamente ingênuos que têm dificuldade em distinguir fatos da ficção ou que estão envolvidos em teorias da conspiração ou que são incapazes ou não querem exercitar o pensamento crítico. … Estamos vendo uma erosão da confiança em nossas instituições, alimentada em parte por campanhas de desinformação, projetadas para atingir esse objetivo e despertar discordâncias. Estamos vendo sistemas de redes sociais que provocam ciclos de feedback que levam ao extremismo. Métricas como “curtidas” ou “visualizações” ou “seguidores” são maximizadas através da expressão de conteúdo. Os trolls usam mídias que convidam comentários para colocar veneno na discussão. Os ciberataques constantes expõem informações pessoais ou permitem o roubo de propriedade intelectual. As ferramentas para facilitar os ataques cibernéticos estão amplamente disponíveis e são usadas para criar redes de bots, gerar ataques, espalhar malware, realizar demandas de resgate e uma série de outras coisas prejudiciais. A aplicação da lei é contestada em parte pela natureza transnacional da Internet / web e pela falta de acordos cooperativos eficazes de aplicação da lei através das fronteiras nacionais. A privacidade é abusada para cometer crimes ou outros atos prejudiciais. Ao mesmo tempo, é extremamente difícil conseguir privacidade, dada a facilidade com que as informações podem ser espalhadas e encontradas na rede. Estados-nação e crime organizado estão explorando ativamente as fraquezas em ambientes online. Ironicamente, enormes quantidades de informações valiosas são encontradas e usadas com bons resultados o tempo todo, apesar dos males listados acima. O desafio que enfrentamos é encontrar maneiras de preservar todos os aspectos úteis da Internet e ao mesmo tempo proteger contra seus abusos. Se falharmos, a Internet potencialmente se transformará em um sistema fragmentado, oferecendo somente uma fração de sua promessa. Enquanto isso, a democracia sofre.”

Gina Neff, pesquisadora sênior do Oxford Internet Institute, respondeu de forma clara. “Simplesmente não há razão para acreditar que a tecnologia possa fortalecer a democracia. As democracias ocidentais estão enfrentando o aumento da concentração de capital financeiro, impactando na ascensão do populismo”.

Mas, há quem espere que sistemas e ferramentas evoluam para resolver alguns dos novos desafios da democracia.

Paul Saffo, futurista de longa data e atualmente coordenador de estudos e previsões futuras na Singularity University da Singularity University, disse: “Há uma longa história de novas formas de mídia que criaram inicialmente um caos, mas que foram assimiladas pela sociedade como uma força positiva. Foi exatamente isso que aconteceu com a imprensa no início dos anos 1500 e com os jornais mais de um século atrás. As novas tecnologias são como animais selvagens – leva tempo para as culturas domesticarem-nas. Não estou de forma alguma subestimando a turbulência ainda à frente (os próximos cinco a sete anos não serão divertidos), mas há um planalto digital mais ensolarado do outro lado do que o caos atual.”

Brad Templeton, pioneiro da Internet, futurista e ativista, ex-presidente da Electronic Frontier Foundation, escreveu: “Haverá muitas ameaças ao processo democrático que surgem em nossas novas mídias. Haverá contramedidas para essas ameaças e haverá coisas que melhorarão o processo. É muito difícil para qualquer um avaliar como será o equilíbrio dessas coisas sem saber quais serão as novas ameaças e benefícios, a maioria ainda será inventada. Certamente é verdade que análises anteriores subestimaram as ameaças. Espero que isso pelo menos não aconteça.”

Uma das respostas mais extensas e ponderadas para a pergunta veio de Judith Donath, fundadora do Sociable Media Group no MIT Media Lab, pesquisadora do Berkman Klein Center de Harvard e atualmente escrevendo um livro sobre tecnologia, confiança e decepção. Ela optou por não selecionar nenhuma das três opções oferecidas no questionamento, e apresentou dois cenários possíveis para 2030 em diante. Em um cenário, ela disse, “a democracia está em frangalhos”. Desastres criados ou incentivados pela tecnologia desencadeiam uma “antiga reação” – o medo do público em direção ao autoritarismo. No segundo cenário, especialmente esperançoso diz: “a democracia pós-capitalista prevalece. Justiça e igualdade de oportunidades são reconhecidas para beneficiar a todos. A riqueza da automação é compartilhada entre toda a população. Os investimentos em educação promovem o pensamento crítico e a criatividade artística, científica e tecnológica. Novos métodos de votação apresentam cada vez mais democracia direta – a IA [inteligência artificial] traduz as preferências dos eleitores em políticas.”

Para alguns respondentes, os prazeres intrínsecos da tecnologia ou da riqueza são suficientes. Mas para centenas de participantes da pesquisa Pew, o cenário é absolutamente deprimente.

Nesse cenário, a crise da meia-idade vem à tona, onde ideais e confiança são abalados: aqueles que acreditam que estão fazendo algo mais significativo do que criar tecnologias e de é preciso impedir potenciais danos causados por elas.

Veja mais respostas aqui.

Crédito da imagem da capa: Data&Society

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