Resetar. Verbo transitivo direto e intransitivo. Desligar e religar um computador ou equipamento, por falha ou incorreção no seu funcionamento, fazendo-o funcionar corretamente; restaurar; mudar ou alterar o conteúdo de algo, modificando-o completamente; apagar completamente; começar tudo outra vez.

O termo reset, comumente usado na tecnologia, para mim, é uma grande metáfora do “espírito do nosso tempo”: o hardware global está literalmente dando sinais de mal funcionamento e os sintomas desta “falha” se manifestam nas desigualdades sociais e econômicas, na exaustão ambiental, no aumento das doenças mentais, nos modelos econômicos predatórios, na crise de confiança nas instituições e líderes e no preconceito estrutural no qual vivemos. Estamos precisando mesmo desligar e religar o sistema! Ouso dizer que os desdobramentos deste reset será mote para os anos vindouros. Prova disso é o plano intitulado “O Grande Reinício” (The Great Reset) proposto em 2020 pelo Fórum Econômico Mundial (WEF – World Economic Forum), no qual grandes líderes estão abertamente propondo discussões para reiniciar toda humanidade, incluindo a economia mundial. O tema continuará na pauta em 2021, na 51ª reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos, quando, em janeiro, líderes se reunirão digitalmente no “Diálogos de Davos”, para compartilhar suas visões sobre a situação global. Como tema emergente, está o compromisso de direcionar a economia mundial para “um futuro mais justo, mais sustentável e mais resiliente”. É uma espécie de um novo contrato social para a humanidade, centrado na igualdade racial, na justiça social e na proteção da natureza. “O mundo deve agir conjuntamente e rapidamente para renovar todos os aspectos de nossas sociedades e economias, desde a educação até os contratos sociais e as condições de trabalho”, afirma o fundador e presidente executivo do Forum Econômico Mundial, Klaus Schwab.

Klaus Schwab, fundador e chairman do Fórum Econômico Mundial. (Crédito: Khalil Masraawi—AFP/Getty Images)

Definitivamente estamos na era do RE: Re-set, Re-começar, Re-imaginar, Re-definir, Re-inventar, Re-Significar, Re-generar, … sobretudo Re-Inicializar todo o sistema econômico, social e político que nos trouxe até aqui. Para termos uma ideia do que é necessário resetar, gostaria de trazer alguns dados sobre os sintomas de nossa sociedade: estima-se que existem 14 milhões de toneladas métricas de microplásticos no fundo dos oceanos, isso é 35 vezes mais plástico do que se acredita estar flutuando na superfície, os 2.153 bilionários do mundo detêm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas, que correspondem a cerca de 60% da população mundial e segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 322 milhões de pessoas sofrem de depressão no mundo, ou seja, o equivalente a 5,8% da população. Para completar esse quadro, o ano de 2020 foi marcado pela grande crise na saúde desencadeada pela COVID-19, crise essa que explora as lacunas deixadas por nós no que toca a saúde, a economia, a política e as sociedades. E a pergunta que me vêm automaticamente ao me deparar com esses números, é: o que estamos produzindo como humanidade?

A pandemia proporcionou uma oportunidade única de pensar sobre o tipo de futuro que desejamos construir. Continuaremos a rota do individualismo, das polarizações, da xenofobia, do egocentrismo, da destruição do planeta? Ou escolheremos rotas colaborativas, empáticas, equânimes e justas? O prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, avaliando o grau do impacto destruidor das atividades humanas sobre a natureza, afirmou que o mundo está em uma nova era geológica chamada antropoceno, que significa “época da dominação humana”. Essa era representa um novo período da história do Planeta, em que o ser humano se tornou a força impulsionadora da degradação ambiental e o vetor de ações que são catalisadoras de uma provável catástrofe ecológica. Em 250 anos, a economia global cresceu 135 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita cresceu 15 vezes. Este crescimento econômico foi maior do que o de todo o período dos 200 mil anos anteriores, desde o surgimento do Homo sapiens. Porém, todo crescimento e enriquecimento humano ocorreu às custas do encolhimento e empobrecimento do meio ambiente. Já ultrapassamos a capacidade de carga da Terra e extrapolamos a biocapacidade do Planeta. A dívida do ser humano com a natureza cresce a cada dia e a degradação ambiental pode, no limite, destruir a base ecológica que sustenta a economia e a sobrevivência humana.

Foi pensando nesses temas urgentes da humanidade e na necessidade de rever as premissas e os sistemas antigos que não são mais adequados ao século XXI, que nasceu a iniciativa do Great Reset, proposta pelo Fórum Econômico Mundial. Afinal não queremos voltar ao normal, não é mesmo? Voltar ao normal, em minha opinião, é voltar à grande fragmentação do ser humano com ele mesmo, com o outro e com a natureza. Foi sobre resetar essas fragmentações que foram pensados os eixos principais do Grande Reinício: o primeiro visa direcionar o mercado para resultados mais justos, o segundo discute sobre a garantia de que os investimentos promovam objetivos compartilhados, como igualdade e sustentabilidade e o terceiro tem como objetivo aproveitar as inovações da Quarta Revolução Industrial para apoiar o bem público, especialmente no que toca os desafios sociais e de saúde. Seguindo essas reflexões, a edição de outubro de 2020 da Revista TIME, em parceria com o Fórum Econômico Mundial, publicou uma série de textos com reflexões de alguns pensadores que compartilharam ideias sobre como transformar a maneira como vivemos e trabalhamos. São temas centrais, que hoje, nos parecem apenas utopias, porém, nosso “tópos” (em grego lugar) do futuro depende de nossas decisões hoje.

Um dos temas centrais é reimaginar o capitalismo e criar um novo tipo de economia. No texto de Klaus Schwab para a revista, o presidente do FEM, reflete sobre como os avanços tecnológicos costumam ocorrer em uma economia monopolizada e são usados ​​apenas para priorizar os lucros de uma empresa sobre o progresso social. Segundo ele, o mesmo sistema econômico que criou tanta prosperidade na era de ouro do capitalismo americano nas décadas de 1950 e 1960, está agora criando desigualdade e mudanças climáticas. E o mesmo sistema político que permitiu nosso progresso global e democracia após a Segunda Guerra Mundial, agora contribui para a discórdia e o descontentamento da sociedade. Mas, a pandemia abriu uma nova janela e jogou luz sobre esse tema com colaborações multinacionais envolvendo os setores público e privado, como pé o caso da AstraZeneca com a Universidade de Oxford, no Reino Unido ou de empresas como a Unilever que abordaram a plataforma de ação COVID do Fórum Econômico Mundial com ofertas para fornecer produtos de higiene, ventiladores ou simplesmente ajuda logística. Houve também uma forte cooperação entre governos e empresas, para garantir os fundos necessários para o desenvolvimento e distribuição de vacinas. De acordo com Schwab, um novo sistema não é utopia, mas demanda que líderes se façam perguntas como: Qual é a disparidade salarial entre homens e mulheres na empresa X? Quantas pessoas de origens diversas foram contratadas e promovidas? Qual o progresso que a empresa X fez para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa? Quanto a empresa X pagou em impostos globalmente e por jurisdição? E o que a empresa X fez para contratar e treinar funcionários?

Darren Walker, presidente da Fundação Ford. (Crédito: Guerin Blask para The New York Times)

Outra pauta importante, foi tocada pelo presidente da Fundação Ford, Darren Walker, com a questão da desigualdade racial. O episódio de George Floyd, nos EUA, acordou CEOs e organizações para a insustentabilidade da injustiça e da discriminação racial. Para começar a mudança, ele propõe um reconhecimento de que “a equidade exige que priorizemos as necessidades e aspirações daquelas comunidades que historicamente foram deixadas de fora”. De forma bem prática, Walker lista 9 atitudes que podem fazer a diferença. Entre elas, um chamado para a liderança, já que mudanças estruturais começam no topo, como também certificar-se que as empresas tenham membros negros no conselho, que existam executivos negros na equipe de liderança e que eles tenham real poder para recomendar mudanças que tornariam uma empresa mais equitativa racialmente. É um começo. Outra recomendação é com relação as contratações. Novamente aqui, os líderes de grandes corporações, são os grandes agentes de mudança e teriam o poder de transformar vidas imediatamente, simplesmente contratando e promovendo mais negros. Segundo Walker, testes cegos mostram que quando currículos idênticos são enviados para o mesmo trabalho – um com um nome que parece branco, o outro com um nome que parece negro – o candidato branco recebe um retorno de chamada 50% mais vezes. Outra proposta em tom provocação é uma chamada para que os “CEOs se olhem no espelho”. De acordo com o Economic Policy Institute, a remuneração dos CEOs cresceu 940% desde 1978, enquanto o salário do trabalhador médio aumentou apenas 12%. “A economia sofreria dano zero se os CEOs recebessem menos em vez de realizar doações que beneficiem causas raciais, seria melhor para a economia e para a igualdade racial se mais dessa generosidade fosse direcionada aos trabalhadores”, provoca Walker.

A fragmentação do ser humano com a natureza, na qual não nos enxergamos como parte da natureza, retirando recursos da mãe terra em uma dinâmica nociva de “pego mas não reponho”, é talvez um dos grandes entraves de nosso futuro como espécie. A transição energética para uma economia de baixo carbono também aparece como tema central da redefinição do futuro. “Temos apenas um planeta e sabemos que as mudanças climáticas podem ser o próximo desastre global, com consequências ainda mais dramáticas para a humanidade. Temos que descarbonizar a economia na curta janela que ainda resta e harmonizar nosso pensamento e comportamento com a natureza”, diz Schwab. Já a economista Kristalina Georgieva, economista ambiental, diretora do Fundo Monetário Internacional, aposta na equação de que o investimento em energia renovável, criaria mais empregos do que aqueles com energia baseada em combustíveis fósseis, portanto seria possível casar a missão de criar empregos e reduzir as emissões.

Kristalina Georgieva, economista ambiental e diretora do Fundo Monetário Internacional. (Crédito: Grant Ellis)

Sou uma grande otimista e gosto de pensar que seremos capazes de expandir nossas concepções do que é certo ou errado, rico ou pobre, escasso ou abundante, progresso e desenvolvimento. Como diria o autor da Teoria U, Otto Scharmer, com quem me identifico muito, a transição deve ser da conscientização egossistêmica para a conscientização ecossistêmica, que considera o bem-estar de todos. Afinal o prefixo eco, também presente em economia, vem do grego oikos, que quer dizer “a casa toda”. Somos 7 bilhões de pessoas, uma inteira humanidade afetada pela pandemia. É justamente nesse espaço de vulnerabilidade conjunta que, abre-se uma brecha para o futuro que desejamos viver. Em um recente encontro digital que participei, promovido pela School of Life, o filósofo e autor bestseller em mais de 20 países, Roman Krznaric, falava de seu mais novo livro The Good Ancestor: How to Think Long Term (O Bom Ancestral), que será publicado em março de 2021 no Brasil. Durante o papo no zoom, Roman nos interroga ”como podemos ser bons ancestrais e como gostaríamos de sermos lembrados por aqueles que ainda irão nascer no próximo século?”. Para mim, a pergunta está intimamente ligada ao grande reinício. Como uma das alternativas para re-ligarmos o sistema, o autor nos propõe sairmos da tirania do agora e criamos um mindset de legado e aprendermos o pensamento a longo o prazo, o chamado “pensamento catedral”. Ou seja, fazer planos para além da duração da vida humana. É só pensarmos em uma igreja que demora às vezes 400, 500 anos para ser construída ou na herança da vacina contra pólio que herdamos daqueles que vieram antes de nós.

Mariana Mazzucato é considerada uma das economistas mais influentes dos últimos anos. Professora de Economia da Inovação na University College London (UCL), e fundadora do Institute for Innovation and Public Purpose. (Crédito: Matt Holyoak)

E para terminar esse texto com um exercício futurista, cito Mariana Mazzucato, professora de Economia da Inovação na University College London, no Reino Unido, que em seu belíssimo artigo para a Time, imaginou o ano de 2023 e escreveu como se já estivéssemos lá. “E assim estaremos aqui, em 2023, as mesmas pessoas, mas em uma sociedade diferente. A COVID-19 nos convenceu de que não poderíamos voltar à normalidade. A COVID-19  tirou muito de nós, em vidas perdidas e meios de subsistência destruídos. Mas também nos deu a oportunidade de remodelar nossa economia global, e superamos nossa dor e trauma para nos unir e aproveitar o momento. Para garantir um futuro melhor para todos, era a única coisa a fazer”.

Portanto, convido você agora a fechar os olhos por alguns instantes, respirar profundamente e se conectar com o mundo daqui a 30 anos. O que você vê? Quais pegadas deixou? Qual legado? Agora, volte ao presente com essa sensação de ser ter sido um bom ou uma boa ancestral e responda a si mesmo: O que você pode fazer agora pelo futuro? Como você pode resetar o seu futuro e o futuro de seus ancestrais?

E então deixamos ir o passado e emergimos um futuro justo, equânime e sustentável…

Crédito da imagem da capa: TIME.

Sabina Deweik

Sabina é caçadora de tendências, futurista, pesquisadora, consultora e educadora. Atualmente atua rastreando, digerindo e interpretando sinais de futuro, com palestras, cursos, mentorias e conteúdos para marcas, organizações e empreendedores. Formada em jornalismo pela PUC-SP, tem mestrado em Comunicação e Semiótica também pela PUC e Mestrado em Comunicação de Moda pela Domus Academy, de Milão. É também coach ontológica certificada pela Newfield Network do Chile, atuando em processos de desenvolvimento humano.

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