O estresse afeta o discernimento, prejudica a coordenação e altera o comportamento – e não é exagero comparar isso à sensação de embriaguez. O ritmo implacável de um mundo em constante transformação também nos embriaga. A sobriedade, definida como moderação e equilíbrio, é cada vez mais difícil de alcançar. Vivemos um estado coletivo de embriaguez, causado pela velocidade e pela profundidade das transformações tecnológicas, sociais e culturais.
Esse estado de desequilíbrio, no entanto, não é totalmente novo. Também na Segunda Revolução Industrial, o impacto das máquinas na vida urbana gerou crises sociais, além de soluções que moldaram o mundo moderno. O que diferencia nossa época é a velocidade: mudanças que antes levavam séculos agora acontecem em anos – ou até meses.
Se você é um “geriatric millennial” ou de alguma geração anterior, vai se lembrar que em meados de 2010 a moda era falar sobre a Revolução Industrial 4.0, termo que foi formalmente definido por Klaus Schwab em 2016. Tudo que pretendia parecer inovador e moderno levava o selo “4.0”, símbolo de progresso tecnológico. Dissecavam-se os avanços das revoluções industriais até chegar à 4.0, que dizia como o mundo ficaria com o advento das novas tecnologias: robôs, big data, nanotecnologias, neurotecnologias e inteligência artificial, dentre outras. Cenários de um futuro mais eficiente, interconectado e, por vezes, quase utópico.
Já em 2018, o artigo “A revolução 4.0 e o tesarac: é para se preocupar?”, da escritora e especialista em Futures Thinking, Lígia Fascioni, me marcou profundamente. Ela traçou um paralelo interessante entre essa revolução e o conceito de “tesarac”, um termo que iluminou muitas das minhas lacunas que precisavam de significados.
O Tesarac e a Zona das Transformações
E o que é “tesarac”? A palavra é um neologismo criado pelo escritor americano Sheldon Allan “Shel” Silverstein (1930-1999), representando períodos da história em que ocorrem mudanças sociais e culturais tão significativas que os velhos conceitos já estão desaparecendo, mas os novos ainda não estão prontos para substituí-los. É um limbo entre o velho e o novo, onde o modelo atual já não funciona, mas o que virá ainda é incerto, deixando tudo em aberto. Fascioni exemplifica isso comparando as revoluções tecnológicas do passado com a velocidade das mudanças atuais. Enquanto no passado uma mesma revolução poderia durar séculos, hoje vivemos múltiplas transformações dentro de uma única geração.
Por exemplo, pense em como sua vida mudou nos últimos 15 anos. Smartphones, redes sociais, inteligência artificial – tecnologias que antes eram ficção agora moldam nosso cotidiano. Se o “tesarac” é esse estado de incerteza e instabilidade, vivemos nele constantemente.
Impacto nas Gerações: Do “Geriatric Millennial” à Geração T
Para lidar com tantas mudanças, estamos continuamente criando termos, na tentativa de categorizar períodos e gerações. Se lembram quando mais acima perguntei se também era um “geriatric millennals”? Pois este termo foi citado por Clara Cecchini no artigo “Deskilling: uma ameaça da IA à sua saúde profissional”. Shel descreve pessoas nascidas entre 1980 e 1985, que cresceram na transição para a era digital e agora se aproximam da maturidade. A ironia do termo reside na combinação de “geriátrico”, que remete ao envelhecimento, com “millennial”, associado à modernidade. Essa contradição expressa a sensação de estar dividido entre o antigo e o contemporâneo – um reflexo direto do tesarac.
Outro conceito relevante é o da “Geração T”, proposto pela futurista Amy Webb, que enfatiza o impacto da tecnologia não apenas sobre o indivíduo, mas sobre a cultura e a sociedade. Aqui, a letra “T” representa “transição”, o que significa que todos que estamos vivos hoje construiremos essa transição para o futuro, diante das possibilidades da revolução tecnológica. Webb destacou esse conceito no SXSW 2024, ressaltando que estamos em um momento histórico único, no qual múltiplas tecnologias convergem para criar o que ela chama de um “superciclo tecnológico”. Esse ciclo está transformando a sociedade e a economia de maneira tão profunda quanto revoluções passadas, como a introdução da eletricidade ou da internet. O fim dessa geração permanece indefinido, já que está intrinsecamente ligado à velocidade e à natureza das transformações futuras.
Gerações diversas compartilham de mesmas mudanças profundas de mundo, mas existem variações significativas nas vivências e desafios, até mesmo daqueles dentro de uma mesma geração.
Efeitos Psicológicos: Uma Crise de Identidade Geracional
À medida que os “tesaracs” se intensificam e encurtam em intervalos, pesquisadores observam que essas rápidas mudanças têm um impacto psicológico significativo. Cada vez mais pessoas se veem navegando entre valores e modos de vida diferentes e contraditórios em questão de poucos anos, criando uma sensação de “crise de identidade geracional”. A socióloga Alda Britto da Motta, professora e pesquisadora da UFBA, descreve essas características como a “geração pivô”, em que identidades são constantemente ajustadas para acompanhar contextos culturais e tecnológicos diversos. Essa necessidade de adaptação contínua cria um estresse psicológico latente, exacerbado pela sensação de que valores e modos de vida se tornam obsoletos em poucos anos.
Da mesma forma, o termo “geriatric millennial” brinca com a contradição de sentimentos e gerações. Ambos evocam a sensação de navegar por uma realidade que escapa das definições tradicionais, onde as noções de novo e antigo coexistem e se confundem numa trama em evolução.
É como se estivéssemos todos embriagados, tentando nos equilibrar entre o passado e o futuro, entre tradições que ainda valorizamos e inovações que transformam nossas vidas.
O que conecta conceitos como “tesarac”, “geriatric millennial”, “geração T” e “geração pivô” — além de outros que surgem diariamente para descrever essas mudanças intensas — é uma sensação de viver em um estado de embriaguez coletivo. Assim como a embriaguez prejudica nosso equilíbrio físico, essas mudanças rápidas alteram nossa percepção do mundo e desafiam nossa estabilidade emocional. O ontem já parece ultrapassado, enquanto o amanhã é uma constante reinvenção.
Rumo à Sobriedade em um Mundo de Vertigem
Neste estado de embriaguez coletiva, somos todos náufragos de um oceano em constante mutação, tentando nos agarrar a conceitos que se dissolvem tão rápido quanto surgem. A resposta para essa vertigem não está em resistir às mudanças, mas em aprender a dançar com elas. Assim como um bêbado que encontra equilíbrio na oscilação, podemos buscar uma sobriedade que não seja estagnação, mas um equilíbrio dinâmico — no qual tradição e inovação se entrelaçam.
Afinal, viver no “tesarac” significa habitar o limbo do que ainda não é e do que já não é mais. É um convite a moldarmos o futuro enquanto o vivemos, criando narrativas mais humanas e significativas em meio à imprevisibilidade. Se o ontem é uma memória e o amanhã uma reinvenção, o que nos resta é a embriaguez consciente do agora — onde, mesmo entre tropeços, ainda encontramos a força para seguir em frente.
Que sejamos mais do que passageiros desta revolução: sejamos os arquitetos da próxima onda de transformações, cultivando um equilíbrio capaz de transformar a vertigem em visão.
Foto da capa: Andy Norman