O cenário que se descortina a nossa frente em meio à posse do novo presidente norte americano e sua visão particular sobre nacionalismo, como também o possível crescimento da extrema-direita na França na figura de Marie Le Pen – e a retomada da xenofobia a níveis alarmantes, deflagrada como justificativa após a crise dos refugiados – além de nossos próprios problemas internos aqui no Brasil, nos obrigam a repensar o significado de um conceito arraigado, muito falado mas pouco explicado: a identidade nacional.
A necessidade de uma “identidade nacional” é um assunto debatido pela intelectualidade brasileira desde o século 19, e teve uma especial importância durante o “Estado Novo”.
Naquele momento, buscava-se a identidade nacional como um arcabouço legal para uma construção nacional, o estado então, personifica a identidade nacional e edifica uma nação a imagem dessa identidade. (SOUZA, 2004).
Esse processo buscava um povo que se encaixasse a uma identidade, e nesse processo caberia ao estado tutorá-lo e protegê-lo.
Após esse episódio, o próprio termo “identidade nacional” mereceu uma reflexão maior, apresentando um desgaste inevitável após a sua associação aos ideais de estados totalitários, que viam não uma recusa às diferenças, mas uma tentativa de integrar essas diferenças a um padrão dominante, buscando um consenso.
O mais recente episódio de “soberania nacional” talvez seja o muro que dividirá o México e os Estados Unidos.
Além dos diversos muros invisíveis que separam os povos, imigrantes, nacionalizados, ilegais, agora teremos também um muro físico, concreto, separando “nós” e “eles”, ou aqueles que são como eu daqueles diferentes de mim, justamente em um momento histórico onde as fronteiras se reforçam e a globalização parece cambalear, com movimentos como Brexit e um mundo cada vez mais isolado, olhando pra dentro.
No Brasil, o fato é que a nossa percepção, interna e externa, ainda é bastante difusa. Achamos que entendemos a nossa “essência”, mas logo que somos questionados por alguém um pouco mais insistente, fica óbvio que nossas certezas não sobrevivem a mortal segunda pergunta, que inevitavelmente é: Por que?
No exterior temos uma imagem percebida carregada de estereótipos, do país do futebol, das mulatas, do carnaval. Até o inocente Zé Carioca, personagem da Disney do século passado, contribuiu para uma percepção daquilo que supostamente somos.
Mas o que é identidade nacional?
Podemos dizer que uma nação é constituída por um legado de lembranças compartilhadas por todos (RENAN, 1947), ou seja, uma nação é o compartilhamento de histórias, lembranças, cultos e ritos. E quando não temos o que compartilhar? Nós inventamos.
A nação nasce, pois, de um ´postulado e de uma invenção’. Ela condensa-se numa alma nacional, que deve ser elaborada. Uma nação deve apresentar um conjunto de elementos simbólicos e materiais: uma história, que estabelece uma continuidade com os ancestrais mais antigos; uma série de heróis, modelos das virtudes nacionais; uma língua; monumentos culturais; um folclore; lugares importantes e uma paisagem típica; representações oficiais, como hino, bandeira, escudo; identificações pitorescas, como costumes, especialidades culinárias, animais e árvores-símbolo” (THIESSE,1999, p. 14).
A identidade nacional é um discurso. No caso do Brasil, era preciso ser ao mesmo tempo diferente do povo português e manter traços de sua herança cultural (FIORI, 2009).
Parece amplamente aceito o fato de nossa cultura se basear na mistura. Desde O guarani, de José de Alencar, essa ideia é difundida, à medida que o casal Peri e Cecília, um índio e uma portuguesa, representariam esse “casal inicial”. Nesse momento o país seria a síntese do velho (legado português) e o novo (o índio que se convertera ao cristianismo) (FIORI, 2009)
Se a identidade é algo que nos torna únicos e não idênticos, como então a tal mistura pode ser o elemento determinante de nossa identidade? No Brasil nada é tão simples.
…Os mitos como se veio a saber, são mais influentes do que qualquer um poderia ter imaginado. Quando a revolução agrícola criou oportunidade para criação de cidades populosas e impérios poderosos, as pessoas inventaram histórias sobre grandes deuses, pátrias-mães e empresas de capital aberto para fornecer os elos sociais necessários. Enquanto a evolução humana estava rastejando no seu usual ritmo de tartaruga, a imaginação humana estava construindo redes impressionantes de cooperação em massa, diferentes de qualquer outra já vista. (HARARI , 2015)
Como vemos, o próprio Homo Sapiens é dado a relações fantasiosas, muitas vezes disfarçadas de “natural”, buscando relacionar essas associações com elementos da biologia. As redes de cooperação que se formaram desde as cidades da Mesopotâmia até o Império Romano eram ordens imaginadas. “As normas sociais que as sustentavam não se baseavam em instintos arraigados nem em relações pessoais e sim na crença em mitos partilhados.” (HARARI,2015)
Simon Anholt, criador do termo Nation Branding em 1996, propunha levar as ferramentas e metodologias do branding corporativo para o seu uso nas nações. Podemos afirmar com grande chance de êxito que os países já se “viravam” muito antes disso na tentativa de contar suas histórias e criar uma identidade nacional (ESTEVES,2016)
O Nation Branding é definido como a mistura única, multidimensional de elementos que fornece a nação com diferenciação culturalmente fundada e relevante para todos os seus públicos- alvo.” (DINNI E, 2008, p. 15)
Outra reflexão se faz necessária: a diferença entre país e nação.
Podemos dizer que país é um conceito genérico, e se refere a tudo que se encontra no território e apresenta características físicas, naturais, econômicas, sociais, culturais e outras. O conceito de nação significa uma união entre um mesmo povo com um sentimento de pertencimento e de união entre si, compartilhando, muitas vezes, um conjunto mais ou menos definido de culturas, práticas sociais, idiomas, entre outros. Assim sendo, nem sempre uma nação equivale a um Estado, ou a um país ou, até mesmo, a um território, havendo, dessa forma, muitas nações sem território e sem uma soberania territorial constituída.
A diferença de como nos vemos e como somos vistos
A miscigenação faz parte da nossa identidade, senda e própria miscigenação, muito provavelmente a nossa maior característica de identidade.
Diferente dos países europeus, por exemplo, a nossa formação envolve pelo menos 3 etnias diferentes, o índio, o europeu e o negro, e mesmo com as previsões dos intelectuais das primeiras décadas do século 20, o brasileiro não se “embranqueceu” eliminando os traços da tal mistura, mas sim a fortaleceu, a legitimou.
Diante da perspectiva do nation branding, é de extrema importância a caracterização de elementos distintivos, ou como disse Govers e Go ( 2009), sua identidade como vantagem competitiva.
Se concordarmos que os países estão sujeitos a concorrência, quais os elementos que nos diferem dos demais países? Temos isso claro?
Ou ainda, serão esses elementos comuns a todo o país, algo que nos caracterizaria como um único povo?
Minha suspeita é que não. Não só não sabemos que elementos são esses, como somos bem mais do que um povo.
Se não sabemos quem somos, seria muito difícil comunicarmos nossas características de forma satisfatória, afinal, alinhamento é um dos princípios do branding e por extensão, do nation branding. Para uma boa “country image” seria necessária uma identidade que a argumentasse.
Por isso caímos na armadilha dos diferenciais genéricos. Falamos de paixão, hospitalidade, calor, alegria… Podemos afirmar isso de todo o país? De norte a sul, leste a oeste? Se pudermos, como qualificamos esses adjetivos? Complicou não é mesmo?
Identidade nacional ou identidades nacionais?
Vimos que historicamente, inventamos nossas próprias histórias e origens, muitas vezes defendendo os interesses do estado outras de uma classe dominante, ou como disse Harari, enquanto uns faziam a história, a grande maioria se ocupava em arar os campos.
Talvez uma identidade nacional forte nos leve, como sugerem alguns, a um caminho xenofóbico, intransigente, onde olhamos só para nossos próprios umbigos, ou pior, para o nosso próprio umbigo, já que seriamos um só, um grande e uníssono ideal, estandarizado, singular, único.
Paremos um instante, esquecendo Trump e Le Pen, e olhemos para o “outro lado”. Países com identidades nacionais fortes não são necessariamente xenófobos, nesse caminho podemos lembrar do Reino unido, por exemplo, que mesmo com seu passado colonialista e com uma monarquia ainda forte, recebe diferentes culturas oferecendo uma democracia bastante estável para povos vindos de diversas regiões do mundo.
Em Londres é possível ver uma atendente da GAP, uma marca americana em um país europeu, mantendo seus costumes muçulmanos e usando véu, isso em um mesmo país que promove a campanha GREAT com o apoio de várias marcas e personalidades britânicas para promover a imagem do Reino Unido internacionalmente.
Será que é ansiedade demais esperar que tenhamos as nossas características definidas, sendo um país tão jovem?
Acredito que não, e explico de forma muito simples esse pensamento. Tradição, um ativo de marca-lugar poderoso é só uma das possibilidades e no caso do Brasil, pouco aplicável. Não é preciso ser “velho” para ser reconhecido, muito pelo contrário.
É preciso entender que ainda estamos, e continuaremos escrevendo a nossa história, por muito tempo, e justamente por isso é preciso olharmos com atenção para as nossas questões de identidade, nossas características culturais, distintivas e singulares.
Nossa cultura nasce da miscigenação, o que deveria ser suficiente para lidarmos com questões totalitárias, reducionistas, uma vez que somos resultado da pluralidade.
Esse nosso DNA nos diferencia na mesma medida que nos define, e mesmo sendo negado, continuará sendo presente. Mas, será que é só isso?
Como resolver essa questão?
Dessa forma resta entender quem escreverá a nossa história, quais serão as nossas características notáveis. Muito além disso, a questão mais relevante é:
Será que temos a necessidade/obrigatoriedade, de termos somente uma única identidade nacional. Se precisarmos dessa unidade, com chegaremos nela?
A única resposta é através do engajamento de toda a população, algo extremamente difícil dado um país do tamanho do nosso e com toda a desigualdade o que torna o acesso a informação e a tecnologia raros em varias regiões do país.
Será que a solução pertence à esfera do marketing, e basta desenvolvermos nosso símbolo nacional para que sejamos reconhecidos? Pouco provável. Vivemos num mundo onde não basta só falar, é preciso ser; não basta parecer é preciso vivenciar.
Muito mais importante do que entender o que nos une enquanto nação é entender o que nos diferencia.
A unidade pode estar na própria formação do povo brasileiro, composta pelas três etnias, mas como isso se deu em cada canto do país é um exercício ao mesmo tempo rico e hercúleo, que muito dirá sobre a nossa capacidade de “competir” por um lugar de diferenciação diante do imaginário coletivo internacional.
Longe de um conceito autoritário de identidade nacional ou regional, onde os cidadãos se encaixam em uma ideia, é hora dos próprios cidadãos escreverem a sua história e quem sabe, procurar um governo que a defenda e a legitime.
Referências Bibliográficas