“Eu estava usando o Instagram e comecei a me sentir meio mal com tantas pessoas bonitas, perfeitas. Na internet, todo mundo parece feliz, mesmo quando você que está olhando aquilo tudo se sente um lixo. Depois, ao ouvir aquela música Barbie Girl, do Aqua, ‘I’m a Barbie girl in a Barbie world. Life in plastic it’s fantastic’, tudo fez sentido pra mim. Era uma alegoria do que estamos vivendo: um mundo de plástico. A ideia me veio na forma de uma Barbie trash, meio decadente, vivendo suas relações de plástico, tudo baseado nas nossas vivências reais. Manequins. Até morrer de tédio. De plástico”, conta o fotógrafo Gabriel Marques sobre como surgiu o ensaio LIFE IN PLASTIC.
Ao terminar de editar as fotos, Gabriel percebeu que seria “no mínimo irônico” se elas ficassem restritas às curtidas do Instagram e do Facebook:
Comecei a me informar sobre exposições e descobri que tudo era burocrático e dependente de editais. Então decidi colar as fotos na rua, como lambes. Tive medo de que as pessoas não entendessem a proposta e, mesmo com um pouco de receio, resolvi fazer intervenções de canetinha nas imagens, mais como uma forma de abrir questões que talvez nem todo mundo entenderia só pela foto”.
Várias pessoas disseram se identificar com as provocações levantadas pelas fotografias dele, e, nas redes sociais, muita gente acabou compartilhando o ensaio.
O tema da superexposição de uma vida “perfeita” – ou “de plástico”, pegando emprestado o termo usado pelo Gabriel para falar de algo “artificial” ou “não autêntico” – tem sido recorrente depois da nossa onipresença em redes como Facebook, Instagram ou Snapchat (esse caindo no limbo depois da avalanche de stories nas redes sociais do Zuckerberg).
De repente, se expor ficou a apenas alguns cliques de distância, e a extimidade (o oposto da intimidade), que consiste em oferecer ao público algo da nossa privacidade, virou uma promessa sedutora.
Aparentemente, queremos nos mostrar – de formas diferentes e em graus diferentes, claro – porque, intuímos, ser visto pelo outro é uma forma de confirmar a nossa existência. E, mostrando-nos em nossos melhores ângulos – sejam eles físicos ou emocionais – e em nossos melhores momentos, damos a entender que valemos a pena, na esperança de que o mundo nos aprove e nos acolha.
O projeto do fotógrafo Gabriel Marques, “Life in Plastic”, propõe uma série de reflexões sobre a superficialidade das relações atuais. As fotos são protagonizadas por uma modelo, que interage com manequins de diversas maneiras, expressando uma tentativa de suprir carências humanas, mesmo que estas sejam supridas por coisas artificiais.
Para o psiquiatra e psicanalista francês Serge Tisseron, a extimidade é “o processo pelo qual os fragmentos do ser íntimo são propostos ao olhar de outrem a fim de serem validados”.
Serge explica que o desejo de se mostrar é fundamental, sendo algo instintivo nos seres humanos que aparece antes mesmo da noção de intimidade (= aquilo que é mostrado somente aos íntimos ou mesmo aquilo que desconhecemos sobre nós mesmos).
“Esse desejo se revela desde os primeiros meses de vida e contribui para a sensação de existir. Essa particularidade aparece e se origina no fato da criança se descobrir no rosto de sua mãe. A apresentação de si mesma é, por toda a vida, uma maneira de se ver aos olhos dos outros. E é pela reação dos outros que se dá a confirmação de si mesma”, explica Mairê de Miranda, mestre em comunicação.
Portanto, se é verdade que as redes sociais aumentaram as possibilidades desse “espetáculo de si”, seria ingênuo pensar que o nosso desejo de ser visto é algo recente: para a psicanálise, ele faz parte da nossa própria constituição como indivíduos.
Claro que nem todo mundo dá vazão a esse desejo de ser visto ou reconhecido da mesma forma. Uma pessoa tímida, que não goste de falar em público, por exemplo, terá outras formas de buscar reconhecimento.
O fato é que, como o ser humano é um ser social e inclusive depende dessa sociabilidade para sobreviver, não ser visto ou reconhecido, de alguma forma, significaria uma espécie de apagamento – senão físico, pelo menos emocional. Imagine alguém que, onde quer que chegasse, não fosse notado, ouvido, ou seja, não fosse reconhecido por seus pares? Uma espécie de fantasma seria essa pessoa.
E é praticamente impossível falar do desejo de ser visto sem falar sobre narcisismo. Em psicanálise, esse termo não tem uma conotação moral ou denunciativa, explica o psicanalista Alexandre Simões: “O narcisismo faz parte de todos nós, é algo constitutivo. Ele passa por uma relação com a imagem: é como eu me apresento diante do outro. O narcisismo é uma extrema dependência do olhar e do reconhecimento do outro”.
Ainda a respeito do narcisismo, o psicanalista e professor da USP, Christian Dunker, toca em algo que parece ter muito a ver com o mal-estar que deu origem ao ensaio fotográfico do Gabriel. Ele fala sobre o fato do sujeito se ocupar em se julgar, observar-se e se medir, coisas que são experiências muito fortes da nossa cultura:
Um polo muito frequente nas depressões é o narcisismo. Nós estamos permanentemente sendo sujeitos de avaliações de desempenho, de produtividade e muito facilmente incorporamos essa racionalidade do sucesso, essa racionalidade da imagem bem acabada de nós mesmos, essa retórica do amor incondicional, do amor infinito que o mundo de certa forma nos deve. Essa conformação narcísica da cultura, esse horror à experiência da angústia, que é uma forma do desejo, e essa renúncia, essa troca do reconhecimento do próprio desejo pelo afã infinito de reconhecer o próprio eu, de ter o seu eu, de ter a sua imagem reconhecida pelo outro, isso é a fórmula mágica para a epidemia em ascensão da depressão na nossa época”.
É interessante que Dunker relacione depressão, narcisismo e avaliações de desempenho, porque isso nos remete de uma forma quase literal ao episódio “Queda Livre”, de Black Mirror, que abriu a 3a temporada da série em 2016.
Nesse episódio, num futuro não tão distante assim, as pessoas avaliam absolutamente tudo o que as cerca, como pessoas, comidas, experiências, lugares etc. Tudo é classificável com notas de zero a cinco estrelas, e aqueles “mais populares” têm prioridade em tudo: os melhores carros, casas e serviços são reservados a quem tem média acima de 4.2.
Lacie, a protagonista dessa história, é completamente obcecada pela quantidade de estrelinhas que recebe, e é curioso notar, ao longo do episódio, a erosão da sua pontuação, enquanto ela mesma decai como ser humano.
Um olhar um tanto atento vai perceber que a ficção construída por Black Mirror parece mais uma caricatura daquilo que já vivemos hoje do que propriamente uma profecia sobre um futuro distópico. Afinal, quem nunca ouviu que “a fama abre portas” ou desconhece a célebre frase “você sabe com quem está falando”, que nada mais é do que uma tentativa de informar sobre o seu prestígio (= sua quantidade de estrelas) a quem ainda não sabe dele?
Tanto na série da Netflix quanto na vida real, angariar “likes” e “ficar bem na foto” de repente parecem ter se tornado mais importantes do que tudo o mais. Ainda que, no fundo, para algumas pessoas, os sorrisos “de plástico” sejam apenas disfarces pra um mal-estar do qual não poderemos fugir eternamente.
Mas, para além das críticas que costuma suscitar, a extimidade no ambiente virtual tem um outro lado que algumas vezes é esquecido: um estudo da Universidade do Norte da Flórida encontrou padrões que sugerem que “ao facilitar uma maior conexão social, o Facebook pode incentivar alguns aspectos da empatia”. Ou seja, determinados tipos de interações nessa rede social podem ajudar uma pessoa a se colocar no lugar da outra.
“Para contatos cara a cara, você tende a preferir pessoas com quem está mais familiarizado ou com quem tem algo em comum”, diz Tracy Alloway, professora de psicologia e autora principal do estudo citado acima. Ela diz ainda que o Facebook pode romper algumas fronteiras:
Por meio dele, nós podemos ser expostos a diferentes formas de pensar e a situações emocionais diversas. Em um nível um pouco superficial, os indivíduos revelam coisas sobre si mesmos, e isso talvez não crie um profundo senso de proximidade, mas, da próxima vez que você encontrá-los, poderá sentir como se já os conhecesse um pouco melhor”.
E nem precisava de uma pesquisa para descobrir isso, porque é provável que você também já tenha vivido a situação: inúmeras vezes, encontrei presencialmente pessoas que até então eu só conhecia no ambiente virtual, e a sensação de familiaridade foi algo incrível. Costumo comparar essa experiência à de encontrar com uma celebridade: você já [acha que] sabe tanto da vida da pessoa, que se sente íntimo dela de algum modo.
Portanto, aquela ideia do senso comum de que “a internet afasta quem está perto e aproxima quem está distante” parece encontrar algum embasamento científico. E, independentemente das tecnologias que já estão aí e que deverão se tornar ainda mais onipresentes nos próximos anos – como a realidade aumentada e a realidade virtual – exercitar a empatia ou apenas se fechar na sua bolha narcísica vai continuar sendo uma escolha de cada indivíduo, aliás, como já acontece com qualquer outra ferramenta já criada pelo ser humano.
Crédito da imagem da capa: fotógrafo Frauke Fischer. A modelo é Hanne Brüning.
Observações muito bem colocadas sobre nossas vida virtual.