Nova Zelândia, Christchurch, 15 de março de 2019:

Um dia, um australiano de 28 anos, militante de extrema-direita, invade a mesquita Al Noor e o Centro Islâmico Linwood, perpetrando um atentado terrorista contra muçulmanos que lá estavam. Um absurdo que deixou 51 pessoas mortas e 49 feridas, fato ainda mais agravado por ter sido transmitido ao vivo pelo Facebook.

Em menos de 24 horas, a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, vestida com um hijab preto, foi se encontrar com os membros da comunidade muçulmana para prestar solidariedade e manifestar também sua dor. Um gesto que teve um efeito profundo, ficando uma imagem de compaixão gravada na mente das pessoas.

Arden, não apenas tomou uma atitude rapidamente, como também enviou pro mundo uma mensagem mais que poderosa de que a Nova Zelândia irá sempre proteger a diversidade e a abertura de crenças e ideias.

Na época do atentado, o presidente Donald Trump telefonou para Ardern, demonstrando pesar pelo maior assassinato em massa da Nova Zelândia. Segundo relatos, ele perguntou o que os Estados Unidos poderiam fazer. A resposta que teve talvez nunca tivesse passado pela sua cabeça: “Compaixão e amor por todas as comunidades muçulmanas.”

Ardern foi mundialmente elogiada pela sua atitude empática, com uma mensagem de união em vez da fala de ódio e divisão que marcou líderes no passado.

Estados Unidos, estado de Nova Iorque, 28 de dezembro de 2019:

Por volta das 22h, um homem entrou na propriedade do rabino Chaim Rottenberg, em Monsey – área com uma grande população judaica -, esfaqueou cinco pessoas e fugiu. No local, dezenas de pessoas celebravam o Hanukkah judaico. As vítimas foram levadas para hospitais, duas em estado crítico. O suspeito foi preso.

O governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, imediatamente soltou um comunicado dizendo que estava “horrorizado com o ato desprezível e covarde”, e que tinha ordenado à Força Tarefa de crimes de ódio da Polícia Estadual que investigasse o caso. “Temos uma tolerância zero ao antissemitismo em Nova Iorque e responsabilizaremos o agressor dentro da lei.”

Sendo bem claro: antissemitismo e fanatismo de qualquer tipo são repugnantes aos nossos valores de inclusão e diversidade e temos tolerância absolutamente zero pra esses atos de ódio. Em Nova Iorque, a uma só voz, sempre dizemos a quem deseja nos dividir e espalhar o medo: você não representa Nova Iorque e suas ações não deixarão de ser punidas”. – Andrew Cuomo

Brasil, Rio de Janeiro, véspera do Natal de 2019:

A produtora do programa Porta dos Fundos é atacada com coquetéis-molotov, provavelmente uma resposta terrorista ao especial de Natal do Porta dos Fundos que foi criticado pela igreja universal por estar “atacando diretamente a fé de milhões de brasileiros”. Cláudio Ferraz, em um artigo na Nexo, lembra que “o atentado tem uma grande semelhança, em menor escala, ao ataque terrorista contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, em 2015, por retratar de forma satírica o profeta Maomé. Naquela ocasião, milhões de pessoas e diversos líderes mundiais prestaram homenagens às vítimas. A frase Je suis Charlie transformou-se num símbolo de defesa da liberdade de expressão nas mídias sociais ao redor do mundo.”

Embora haja pessoas que considerem a sátira uma falta de respeito, se pensarmos só um pouco, o que realmente aconteceu foi um ataque à liberdade de expressão e à democracia brasileira, já que numa democracia, toda pessoa tem direito a manifestar suas crenças e direito à liberdade de pensamento, de opinião e de expressão.

Vários estudos mostram que discursos de ódio de líderes em mídias sociais são responsáveis pelo aumento da violência contra minorias. Ferraz cita dois estudos: o primeiro, chamado “From Hashtag to Hate Crime: Twitter and Anti-Minority Sentiment”, que acabou de ser concluído pelos economistas Karsten Muller e Carlo Schwarz, traz uma análise estatística dos efeitos do discurso de ódio de Trump sobre crimes de ódio nos EUA. “Os crimes de ódio contra muçulmanos nos EUA dobraram desde que começou a campanha de Donald Trump. Para estabelecer a causalidade dessa relação, os autores usam uma estratégia de diferenças-em-diferenças, comparando locais com maior e menor uso do Twitter. Usando essa fonte de variação, os autores encontram que um aumento de um desvio padrão na exposição ao Twitter está associada a um aumento de 38% em crimes de ódio entre 2010 e 2017. Os autores encontram uma forte correlação serial entre os tuítes islamofóbicos do Trump e o número de crimes violentos contra muçulmanos.”, explica Ferraz.

O segundo estudo, foi realizado pelo economista Leonardo Burztyn para o caso da Rússia. No artigo “Social Media and Xenophobia: Evidence from Russia”, Burztyn e coautores exploram o crescimento da mídia social russa VKontakte (VK) – equivalente ao Facebook – e mostram que sua expansão está associada a um aumento de crimes de ódio, “principalmente em cidades onde o nível de sentimento nacionalista já era alto antes da entrada da mídia social. Eles mostram que o efeito está concentrado em crimes de ódio onde há vários agressores, consistente com a hipótese de a mídia social servir como fator de coordenação.”, sintetiza Ferraz.

Precisamos preservar a liberdade de expressão e o funcionamento de nossa democracia no contexto atual. Devemos cobrar diariamente a separação entre religião e Estado. Essa separação que está escrita na Constituição brasileira parece ter ficado turva. Diversas políticas públicas passaram a ser discutidas com valores religiosos como pano de fundo. Precisamos garantir o funcionamento ativo da imprensa independente, tanto dos jornais, de emissoras de televisão e de novos meios eletrônicos que cumprem hoje em dia um papel fundamental de investigação independente. Só assim conseguiremos manter a democracia brasileira funcionando com o devido respeito à diversidade e às regras do jogo.” – Claudio Ferraz, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e diretor científico do JPAL (Poverty Action Lab) para a América Latina.

Separar o Estado da religião não significa acabar com a igreja ou com outras religiões, ao contrário, é a forma de garantir a liberdade religiosa e a liberdade das religiões minoritárias existirem. A liberdade de culto e de pregação.

Foto de Jacinda Ardern tirada por Kirk Hargreaves através de uma janela. A sobrancelha da jovem líder está levemente franzida, uma expressão de empatia misturada com força.

Ardern, a mais jovem liderança feminina no mundo a assumir o poder, com apenas 37 anos, avançou uma série de políticas progressistas, com foco no meio ambiente. Sob sua gestão, o governo da Nova Zelândia proibiu sacos plásticos de uso único, plantou 140 milhões de árvores e aprovou uma lei para estabelecer uma meta de emissão líquida zero de CO2 até 2050 e também estendeu a licença parental. Ela própria tirou seis semanas de folga depois de dar à luz – exemplo raro de um chefe de estado que tirou licença parental. No entanto, foi na sua reação à tragédia que a fez emergir como um ícone.

O objetivo do terrorismo é assustar e dividir, mas a primeira-ministra imediatamente se colocou à disposição de seus concidadãos, particularmente dos mais vulneráveis e canalizou a dor e a raiva de seu país em mudanças significativas, promovendo, por exemplo, reformas nas leis sobre armas alguns dias após o ataque.  Ao declarar “eles somos nós”, estabeleceu o tom de como as pessoas deveriam reagir a essa tragédia e conviver com as diferenças.

Nessas circunstâncias, sua bondade é um ato radical.” – Jacinda Ardern.

Crédito da imagem da capa: TIME

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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