O período neolítico foi marcado por mudanças de comportamentos tão importantes que o arqueólogo australiano Gordon Childe (1892 – 1957) designou este momento de Revolução neolítica. Um dos pontos decisivos para a sobrevivência desse povo pré-histórico foi que aprenderam aos poucos como se organizar e trabalhar em sistemas cooperativos. Foi nesse contexto que uma profunda transformação passou a se desenvolver no cotidiano deles. A observância da natureza permitiu conquistas técnicas gradativas de cultivo agrícola, e com isso, a necessidade de deslocamento se tornou cada vez menor. Tendo capacidade de gerar e armazenar alimentos, foram beneficiados com melhor qualidade de vida.
Surge nessa época a atividade de pastoreio, pessoas que se dedicam até os dias atuais a domesticar, alimentar, guiar e vigiar animais como ovelhas, cabras, camelos e iaques. Incrivelmente, essa atividade ancestral muito tem a nos ensinar sobre como enfrentar um mundo cada vez mais interconectado, frágil, turbulento e repleto de incertezas.
Vamos fazer um paralelo: o que um operador do mercado financeiro, em Londres, tem de parecido com um pastor de animais na África Oriental? “Mais do que você imagina”, sugere Ian Scoones, professor do Institute of Development Studies da Universidade de Sussex, no Reino Unido. Em um ensaio para a Aeon, Scoones argumenta que tanto financistas (que operam com bolsas, banqueiros, dentre outros) quanto os pastores trabalham em ambientes de profundas incertezas e precisam frequentemente lidar com o desconhecido e com a ignorância de não saber o que não sabem. Tomar decisões importantes em meio a incertezas e lidar com o dia-a-dia, bem como estratégias para o futuro, exigem abordagens específicas. A simples gestão de riscos é insuficiente segundo Scoones.
Os pastores estão presentes em mais de 100 países, e essa atividade é um importante meio de vida para milhões de pessoas, envolvendo um bilhão de animais. O pastoreio ou pastoralismo é, em muitos aspectos, uma forma de produção intensiva e altamente especializada. Assim como os financistas, os pastores se especializaram no gerenciamento de variabilidades, justamente porque vivem em alguns dos lugares mais inóspitos do planeta, como as savanas da África, estepes da Ásia ou nas colinas e montanhas da Europa e da América do Sul, enfrentando ao longo de milênios eventos como secas, inundações ou nevascas, que podem destruir num piscar de olhos suas pastagens e fazê-los mudar para outras áreas. Em Isiolo, no norte do Quênia, por exemplo, no ano passado em plena pandemia da COVID-19, enfrentaram uma seca, enxames de gafanhotos e restrições de deslocamento.
Pastores vivem ciclo de incertezas e de medo, onde não sabem, por exemplo, como um período de seca pode afetar o gado. Há ainda a ameaça de roubos e invasões, além de ataques de outros animais, que os faz, muitas vezes, permanecer acordados à noite, em constante vigilância. A chave para a sobrevivência e prosperidade sempre foi gerenciar ativamente a incerteza – não apenas enfrentando-a de forma reativa – mas ter consciência dos perigos da ignorância e das surpresas.
Ecologistas mal compreendidos
No passado, o pastoralismo era visto como uma atividade exótica e selvagem. Viajantes europeus e antigos antropólogos não apreciavam as práticas dos pastores, os culpavam por manter desnecessariamente grandes quantidades de rebanhos, prejudicando o meio ambiente e causando degradação e desertificação. Por muitas décadas, os ocidentais viram o pastoreio como um modo de vida retrógrado, que deveria ser atualizado por conceitos mais modernos como pastagens rotativas e melhoramento genético.
No entanto, no final da década de 1970, ecologistas começaram a enfatizar a natureza dinâmica dos ecossistemas e as consequências da variabilidade para a resiliência e sustentabilidade. Inicialmente aplicado às pragas de insetos em florestas boreais e à vida selvagem nas savanas africanas, surge o conceito que ficou conhecido como ‘non-equilibrium’ ecology e que tem sido muito aplicado no estudo científico do pastoreio. Os pastores – embora não soubessem – sempre foram ecologistas em ‘não-equilíbrio’.
Inclusive, diversos projetos que tinham como objetivo modernizar e controlar a atividade de pastoreio, falharam ao longo dos anos, porque não consideraram adequadamente a forma como os sistemas dinâmicos funcionam, argumenta Scoones. “Impuseram soluções técnicas fixas, tentando controlar a variabilidade por meio de cercas, pontos d’água, raças exóticas e assim por diante. No entanto, a tentativa de estabilizar e controlar um sistema dinâmico não resultou em ganhos de produtividade como tinham imaginado. Os pastores, por outro lado, nunca tentaram eliminar a variabilidade; eles fazem uso disso. E fazer isso requer habilidade e prática, e muitas vezes práticas de pastoreio altamente sofisticadas”, escreve.
Quando esse sistema cuidadosamente sintonizado é mexido ou interrompido, a produção entra em colapso e os meios de subsistência são afetados. Segundo Scoones, frequentemente, o chamado “desenvolvimento” tem sido a causa. Por exemplo, nas montanhas de Amdo (Tibete), o governo chinês está investindo uma fortuna na ‘modernização’ de áreas pastoris. Novas estradas, aldeias assentadas, zonas turísticas e de conservação estão sendo ampliadas e áreas de pastagem cercadas e privatizadas. Embora isso possa trazer novas formas de renda e um mercado mais ampliado, pode, ao mesmo tempo, minar o cerne do sistema de produção pastoril, alerta.
Pastores exploram a variabilidade como um recurso produtivo e encaram a incerteza como parte da vida
Pastores fazem uso de ambientes de “desequilíbrio” – onde a estabilidade ou o equilíbrio nunca são alcançados, pois sempre surge algum desafio como uma seca, uma enchente, um surto de doença, uma praga, uma grande nevasca, ou às vezes uma combinação de tudo isso. Eles simplesmente não sabem quando um desastre acontecerá, ou qual será o seu alcance e impacto. As mudanças climáticas aumentam ainda mais estas variações e incertezas.
A surpresa e a adaptação responsiva às circunstâncias em rápida mudança são, portanto, características essenciais da vida pastoral. Isso inclui capacidade de adaptação, flexibilidade, aprendizado iterativo e gerenciamento coletivo. Os pastores sabem que os verdadeiros perigos residem na ignorância (não saber que não sabem). Para mitigar o impacto de choques externos, exploram a variabilidade como um recurso produtivo e abraçam a incerteza como parte da vida.
O que então os pastores podem nos ensinar enquanto lidamos com a incerteza e a ignorância? Alguns insights vêm do PASTRES (‘Pastoralism, Uncertainty, Resilience), programa conduzido por um grupo de antropólogos, economistas, agrônomos e ecologistas, que buscam entender como os pastores em Amdo (Tibete), Índia, Etiópia, Quênia, Tunísia e Sardenha (Itália) respondem à incertezas nas dimensões ambiental, de mercado, institucional e de governança. Esses cientistas estão convencidos de que os pastores têm muito a ensinar em um mundo que está mais interconectado, mutuamente dependente e, de certa forma, mais frágil do que nunca.
Em ambientes pastoris, as redes e as relações sociais desempenham um papel importantíssimo na gestão das incertezas. Se no passado, os pastores centravam-se nas relações de parentesco, hoje, embora associações de parentes e clãs permaneçam importantes, outras formas de solidariedade social surgiram – como igrejas, mesquitas, templos e mosteiros que se tornaram essenciais, assim como grupos de autoajuda coletiva e projetos e programas formais apoiados por governos e agências de apoio.
Afriscout é um aplicativo cocriado com pastores para ajudá-los a tomar decisões de migração, fornecendo informações sobre a disponibilidade de pasto e de água em tempo real. (Fonte: ITUNews)
A resposta imediata dos pastores à seca e outros desastres é o deslocamento. Mas hoje, há mais desafios envolvidos: a terra foi privatizada, cercas cruzam paisagens antes abertas e investimentos em enclaves ou novas áreas de conservação afastam as pessoas. O refúgio do pasto antes importante na seca não é mais possível, mas a mobilidade continua vital para a subsistência. É aí que surgem novas relações e redes, junto com a implantação de tecnologias.
Por exemplo, em Isiolo, no norte do Quênia, os pastores Boran usam o celular para conversar com outras pessoas e saber onde há grama e água. Em vez de caminhar por vários dias em busca de pasto, eles contratam jovens com motocicletas para fazer reconhecimento de áreas. No início de 2020, quando os gafanhotos começaram a devastar as pastagens, os Boran organizaram motociclistas para espantar os insetos das áreas mais valiosas de pastagem. Em Kachchh em Gujarat, Índia, os pastores Rabari estão construindo relações com fazendeiros para que permitam que certos grupos de pastores e seus animais entrem em seus campos. Mais uma vez, a comunicação e as redes são fundamentais, exigindo um envolvimento mais humano, muitas vezes entre idiomas, etnias e níveis sociais.
Na Sardenha, durante a pandemia da COVID-19, os pastores tiveram dificuldade para vender leite de ovelha. Restrições de deslocamento impediram viagens, e grandes depósitos foram fechados. O turismo entrou em colapso e as oportunidades de vender produtos artesanais simplesmente acabaram. Mercados alternativos eram essenciais ou o leite iria para o lixo. Os pastores então desenvolveram cadeias de mercado locais, especialmente para queijos, e uma plataforma de vendas pela Internet para que os produtos chegassem a um mercado mais amplo.
A fluidez da vida
Há fluxos mais complexos e contingenciais da vida cotidiana em ambientes pastorais. Os pastores administram recursos altamente variáveis em territórios longínquos com rebanhos e manadas móveis. Sua experiência de tempo – diária ou sazonal – pode ser bem diferente daquela dos financistas e executivos.
O ritmo acelerado da vida “moderna”, com os onipresentes smartphones se cruza com o tempo pastoral. Para eles, cada dia é um fluxo. As memórias das secas, nevascas ou surtos de doenças se acumulam, enquanto as expectativas do futuro também são moldadas por cosmologias mais profundas. A visão modernista de “controle” por meio da ordenação tecnocrática desmorona na vida real. Em vez disso, eles olham para a subsistência das pessoas, suas crenças espirituais, conexões com a natureza e estados emocionais.
Os pastores combinam um conhecimento profundo do sistema, valendo-se de conhecimento tácito e experimental, bem como de fontes mais formais. Enquanto esquadrinham o horizonte em busca de potenciais ameaças, correlacionando experiências que já passaram, lidam com desafios imediatos e práticos do momento. Ao gerenciar, por exemplo, áreas de pastagem e colheita do valioso ‘fungo lagarta‘ – medicamento tradicional oriundo das pastagens em Amdo (Tibete) – devem ter um bom conhecimento do mercado de fungos e regulações. Também aplicam seus conhecimentos para chegar a um acordo sobre os termos de controle da terra para evitar colheitas excessivas. No caso do povo Golok, em Amdo, o mosteiro local desempenha papel crucial na gestão de recursos e coordenação do conhecimento. Lá, os conselhos budistas combinam-se com avaliações de mercado e políticas de gestão de terras.
Para enfrentar incertezas, os pastores buscam confiabilidade, mesmo que a variabilidade seja aceita como norma. A confiabilidade surge por meio da união de diversos saberes e práticas, fazendo uso de tecnologias e testando alternativas, para reduzir os riscos da variabilidade. O objetivo é escapar da armadilha da ignorância. Isso requer habilidades humanas e relações sociais, para criar soluções alternativas.
O pastoralismo pode ser visto como uma “infraestrutura” – entrega de bens e serviços a diversas pessoas em um ambiente operacional complexo. Vê-lo como tal nos ajuda a pensar sobre como gerar confiabilidade – como por exemplo o fornecimento de eletricidade ou água para uma cidade. Em tais ambientes, a confiabilidade surge por meio das práticas em rede de diferentes indivíduos com diferentes fontes de conhecimento. Seja um monge em um monastério tibetano ou um comerciante em um mercado da África Oriental, pessoas com visão e conhecimento local são indispensáveis. Elas são consideradas confiáveis e têm boas redes dentro da comunidade, possibilitando respostas rápidas, eficazes e adaptáveis.
As qualidades-chave que permitem que o pastoralismo opere como um sistema resiliente oferecem algumas lições vitais para o mundo de hoje, inclusive para quem trabalha no mercado financeiro. Na crise financeira de 2007-08, banqueiros negligenciaram a instabilidade e a contingência. Os pastores sabem que essas são características inevitáveis de sistemas complexos.
Os sistemas regulatórios que governavam os bancos antes do crash pressupunham a capacidade de prever, gerenciar e controlar. A própria complexidade dos modelos que sustentavam o sistema bancário precipitou o colapso. Com a negociação de derivativos complexos com trocas globais ocorrendo em nanossegundos, ninguém sabia o que estava acontecendo em tempo real, e a volatilidade em uma parte da rede se espalhou rapidamente. Muitos banqueiros tinham “uma percepção exagerada de conhecimento e controle”, avalia Andrew Haldane, economista-chefe do Banco da Inglaterra. Os modelos regulatórios calculavam o risco, mas não abrangiam a incerteza, a ignorância (não saber o que não se sabe) e a surpresa. A confiança em soluções técnicas fez perder de vista a base humana e social das trocas de mercado.
A forma como os pastores respondem às incertezas – contando com diversas fontes de conhecimento, aprendendo de forma adaptativa por meio de redes e relações sociais, por exemplo – não estava contemplada nas abordagens para operar o sistema financeiro mundial. Modelos preditivos podem ser úteis, mas apenas se combinados com conhecimentos experienciais e tácitos. Redes complexas de troca mútua requerem experiência pessoal, inteligência emocional e aprendizado coletivo para funcionar. As tecnologias têm o seu papel, como meios de comunicação e facilitação dos processos, mas não podem substituir o elemento humano. A confiabilidade deve surgir por meio de interações sociais e negociações, uma vez que são diversas perspectivas, culturas e práticas humanas, informadas por experiências e memórias, que moldam decisões. Todas essas variáveis operam em um grande e complexo sistema financeiro e também em sociedades pastoris.
Essas características de como responder a desastres e desafios complexos, também poderiam ter salvo muitas vidas na pandemia da COVID-19. Ao longo dos séculos, os pastores aprenderam que uma abordagem cuidadosa, apoiando a aprendizagem adaptativa, valendo-se de múltiplos conhecimentos e levando a respostas harmonizadas e flexíveis, permitiu-lhes sobreviver.
Em vez de confiar exclusivamente em soluções tecnocráticas e gerenciais, é construir formas de responsabilidade, o que requer conexões e relacionamentos confiáveis e um senso de solidariedade e reciprocidade. Bancos que tinham redes de operadores que se conheciam – mesmo que apenas por telefone – se saíram melhor da crise, enquanto que cidades que melhor lidaram com a pandemia contaram com ações coletivas e apoio mútuo entre governo e cientistas, trabalhando em redes.
As incertezas dominam nosso mundo, seja a pandemia, as mudanças climáticas ou a volatilidade econômica, todas tendo grandes impactos em nossa vida cotidiana. E as incertezas devem ser aceitas como parte da vida cotidiana; Embora haja avanços em tecnologias de predição, gestão de riscos ou sistemas de alerta, Scoones lembra que não devemos esquecer a importância de diversos conhecimentos e emoções no processo de tomada de decisão e de ação. Temporalidades que se cruzam e que orientam o presente e o futuro por meio de diferentes lentes; processos de negociação e adaptação que resultam em respostas flexíveis para gerar confiabilidade; e as relações de confiança em redes que permitem iniciativas colaborativas, são algumas das principais lições que os pastores nos ensinam e que emergem da convivência humana e das incertezas.
Ilustração da capa: Muhammed Sajid