Quando o mundo era menos complexo, alguém um pouco mais inteligente do que a média provavelmente seria bem-sucedido. Ainda é assim hoje, a diferença é que, lá atrás, qualidades e habilidades não analíticas, como experiência e vontade de trabalhar duro, facilitavam as coisas.

Hoje, a pessoa que é “mais brilhante” supera a “que trabalha duro”. Se antes você tinha lugar ao sol se tivesse uma capacidade cognitiva mediana – em empregos na indústria, na agricultura ou nas forças armadas – agora, na economia do conhecimento, aqueles altamente inteligentes são os mais favorecidos.

Essa mudança vem gerando um incômodo nas sociedades ocidentais, segundo David Goodhar, autor de Head Hand Heart: Why Intelligence Is Over-Rewarded, Manual Workers Matter, and Caregivers Deserve More Respect (Cabeça Mãos Coração: por que a inteligência é supervalorizada, trabalhadores manuais são importantes e trabalhos de cuidado merecem mais respeito, em tradução livre).

No livro, ele explica que a maior demanda por habilidades analíticas e numéricas na era computacional e digital, colocou a capacidade cognitiva acima das habilidades e aptidões mais tradicionais, e como sendo uma medida de sucesso econômico e social. “Para ser mais direto: pessoas cognitivamente inteligentes se tornaram muito poderosas”, resume.

Para David, uma boa sociedade seria aquela que encontra equilíbrio entre aptidões manuais, cognitivas e de cuidados. “Hoje, a capacidade cognitiva é um critério seletivo para empregos de alto nível e de status. Mas não necessariamente isso seria mais justo ou mais humano”.

Assim, segundo ele, um dos grandes desafios da sociedade moderna será evitar que, trabalhos cognitivos tenham muito mais respeito e prestígio e maior remuneração do que trabalhos manuais e de cuidados que são tão vitais – ao mesmo tempo, sem desestimular e desprestigiar aquelas pessoas mais cognitivas em nossa sociedade.

É claro que tarefas complexas, como desenvolver um novo medicamento, tenham maior prestígio e maiores ganhos do que um trabalho braçal. Mas David argumenta que uma sociedade bem-sucedida deve buscar o ethos de igualdade de apreço e de estima. Ele defende que, uma sociedade que deseja evitar um descontentamento generalizado deve respeitar e recompensar adequadamente aqueles que realizam trabalhos manuais e de cuidados.

“Muitas vezes, quase sem querer, confundimos capacidade cognitiva com valor humano”. Para David, não há razão para considerar mais admiráveis aqueles que realizam trabalhos mentais melhor do que outros. E esse foi um dos temas de outro livro seu, The Road to Somewhere, em que descreve as divisões de valores na sociedade britânica, reveladas de maneira marcante pela votação do Brexit:

De um lado, tem o grupo que ele chama de ‘Anywhere’ (qualquer lugar), formado por pessoas que tiveram boa educação, têm alta capacidade cognitiva, e que se sentem confortáveis socialmente e com as novidades;

O outro grupo, com maior número de pessoas, e que ele chama de ‘Somewhere’ (alguns lugares), tiveram pouco acesso à educação, e tendem a valorizar mais a segurança, o tradicional, e os vínculos (locais e nacionais).

O primeiro grupo se sente confortável com mudanças sociais porque são pessoas que têm as chamadas “identidades alcançadas” – senso de si mesmo derivado de conquistas educacionais e profissionais, o que lhes permite se encaixar bem em qualquer lugar. O segundo grupo são pessoas que têm “identidades atribuídas” com base no lugar ou no grupo, e que tendem a se sentir desconfortáveis com mudanças rápidas e quando mudam de lugar.

A divisão Anywhere / Somewhere nem sempre reflete a divisão alta capacidade cognitiva / capacidade cognitiva mediana. Como ele explica, existem Anywheres com média cognição e Somewheres com alta cognição. Mas há uma sobreposição considerável em trabalhos cognitivos/analíticos que Anywheres tendem a absorver, e trabalhos manuais e de cuidados que Somewheres tendem a realizar.

Nossa sociedade precisa tanto das habilidades cognitivas da economia do conhecimento, quanto das manuais e artesanais, e da inteligência emocional daqueles que ocupam funções de cuidado. “Mas estas funções tornaram-se cronicamente subestimadas no mundo moderno, desequilibrando nossa sociedade e alienando milhões de pessoas. […] Trabalhos de cuidados e de assistência social, educação infantil e creche continuam a ser subestimados (e mal pagos) porque costumavam ser desempenhados gratuitamente na esfera privada da família, principalmente por mulheres”, ele alerta.

David observa que estamos sendo levados a desenvolver o lado cognitivo, mais ainda com os avanços tecnológicos que reduzem a necessidade de contato humano. Porém, são as habilidades manuais e de cuidado que promovem a pertença e o acolhimento. Ele supõe que a atração hoje pela culinária e por preparar receitas, pode refletir o nosso desejo perene por trabalhos manuais, já que muitos não estão mais usando as mãos no trabalho (afora teclar no computador).

Outro ponto importante que ele levanta é o declínio da saúde mental no mundo todo e como nosso bem-estar emocional depende de termos algum senso de significado e propósito. “Através da transcendência – o caminho mais poderoso para a busca de significado é: dar aos outros. Não há nada mais espiritualmente recompensador do que cuidar dos outros ou fazer coisas com as mãos. É o prazer de pertencer, o prazer de estar incorporado, neste lugar e tempo, o prazer de ser muito mais do que um intelecto, mas ainda assim, a abstração e o desapego dominam nossa cultura. O mundo do trabalho apenas cognitivo pode nos desligar de nossas raízes.”

“Metade da população estará sempre na metade inferior do espectro das habilidades cognitivas. No entanto, todos nós precisamos sentir que temos um lugar valioso na sociedade, mesmo que não sejamos grandes empreendedores.” – David Goodhart

Então, como alcançar um melhor equilíbrio entre “mãos, cabeça e coração”?

A nossa “cabeça” irá enfrentar uma competição com nossas “mãos e o coração”? Nicholas Carr, em The Shallows, sugere que ficaremos “mais burros” com a internet. Ele entende que a exposição continuada à ela acaba reordenando nossas sinapses e tornando-as dependentes de novidades o tempo todo. Isso pode melhorar nossa capacidade de tomada de decisão e de resolução de problemas, mas no geral significará perdas importantes na capacidade de linguagem, memória e concentração.

Também espera-se que a inteligência artificial tenha um impacto ainda maior em trabalhos cognitivos nas áreas da contabilidade, arquitetura, engenharia, direito, medicina e outras.

Essa disrupção, que será sentida por profissionais que exercem trabalhos cognitivos, pode levar a uma maior empatia por pessoas que realizam trabalhos manuais e de cuidados, em parte porque contadores, advogados, arquitetos e outros podem acabar fazendo eles próprios esse tipo de trabalho.

Outra tendência positiva que pode elevar o status dos empregos do “coração” está ligada a duas outras grandes tendências: aumento do número de idosos que, consequentemente, vão precisar de cuidados e a ascensão das mulheres.

David chama a atenção para um ponto importante: será que o poder crescente das mulheres na sociedade irá impactar em aumentos salariais e no prestígio dos empregos que envolvem cuidados (que ainda são desempenhados principalmente por elas) ou o impacto ficará apenas na igualdade de condições em empregos de alta capacidade cognitiva?

Sim, a capacidade cognitiva continuará fundamental para o avanço da nossa civilização, e todas as sociedades desejarão cultivá-la. Mas há sinais de que mãos e coração voltarão a ocupar posições de maior respeito e prestígio.

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Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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