Publicado no dia 18, o manifesto “Protopia Futures” oferece um modelo de pensamento para se construir o futuro de forma mais inclusiva, consciente e decolonial. Escrito por Monika Bielskyte e demais colaboradores, o documento segue a premissa do conceito de protopia proposto já em 2011 pelo futurista e editor da revista Wired, Kevin Kelly. O termo gira em torno da proposta de encontrarmos um meio caminho entre utopia e distopia, assim podendo vislumbrar visões de futuro mais realistas e conscientes de que, afinal, tudo é feito de coisas boas e também ruins.
Enquanto a utopia descreve um “não-lugar”, o conceito de distopia usa o prefixo do Latim “dys”, que significa “ruim”. Se, por um lado, utopia foi uma ideia proposta por Thomas More como um lugar inexistente em que tudo funciona perfeitamente bem, a distopia seria o completo oposto, o que, no fim das contas, faz com que utopia e distopia sejam apenas lados diferentes de uma mesma moeda e não dois caminhos completamente opostos como se costuma pensar. Foi isso que Kelly quis dizer com o termo “protopia” como uma forma de escapar dessa dicotomia que muito se adequa à forma como nossa cultura ocidental organiza as coisas (bem e mal, céu e inferno, preto e branco etc). Em suas palavras:
Eu acho que nosso destino não é nem a utopia ou a distopia, nem o status quo, mas a protopia. Protopia é um estado melhor do que o qual nos encontramos hoje e ontem, apesar de ele poder ser somente um pouco melhor. Protopia é muito mais difícil de visualizar, porque a protopia oferece tantos problemas novos como também novos benefícios. Essa complexa interação do funcional e do quebrado é muito difícil de prever.”
Kelly não acredita que utopias sejam possíveis, enquanto que distopias possam nos soar mais prováveis, apesar de também não serem exatamente plausíveis. Ele reforça o fato de que em termos de impacto dramático e engajamento cinematográfico, distopias são, realmente, muito mais atraentes do que as utopias. Há, praticamente, infinitas maneiras de se imaginar o fim do mundo, principalmente àqueles que têm um perfil que ele chama de “colapsitariano”.
De qualquer modo, Kelly acredita que conforme nos tornamos mais conscientes dos pontos negativos da inovação tecnológica e nos desapontamos com as promessas de futuros utópicos que nunca se concretizam, é difícil até mesmo acreditar que alcançar um estado de protopia seja possível, ou então, escolher um futuro de ficção científica que possa realmente soar plausível e desejável. Consequentemente, para algumas pessoas, imaginar o futuro acaba sendo algo bastante desagradável, já que estamos constantemente sendo alertados dos perigos e dos malefícios do mundo. No entanto, quando Monika Bielskyte sugere o conceito de protopia, ela pretende nos auxiliar a adquirir uma nova perspectiva sobre pensar o futuro ou os futuros, como já propõe o título do documento.
Afinal, o futuro é, na verdade, um conceito plural tanto em termos das variadas possibilidades que ele oferece, mas também no sentido de que é um verbo tensionado ao futuro e declinado no plural. O documento também endereça uma crise contemporânea em nossos imaginários, como também já notado por Kevin Kelly. O manifesto Protopia Futures, portanto, surge como uma criação coletiva que nos alerta sobre a urgência de tornar o conceito de protopia algo real.
As narrativas históricas dominantes entre o entretenimento e a educação nos levaram a uma crise de nosso imaginário coletivo sobre o futuro. Marcos industriais de ‘progresso’ nos levaram a becos sem saída. A velocidade e os aspectos quantitativos de nossas tecnologias mecânicas avançaram para os paradigmas do século 21. Culturalmente, socialmente e politicamente, no entanto, tantas facetas de nossas vidas continuam enformadas por uma multiplicidade de vieses e injustiças oriundas de séculos atrás.
Essas narrativas falhas sobre o progresso alinhadas ao colonialismo têm privilegiado teorias cientificamente incorretas e traiçoeiras, como é o caso do dualismo cartesiano, que distorce o verdadeiro entendimento de nossas comunidades e nossa presença no planeta. Elas nos limaram de fazer questionamentos científicos mais expansivos e descobertas inovadoras.”
Consequentemente, o manifesto reforça que essa dicotomia entre distopia e utopia são, na verdade, uma falsa dicotomia, já que a primeira é um “escapismo desesperado e um roteiro de produtos” e a última é um “projeto colonialista”. A protopia, portanto, é baseada nos seguintes princípios:
1. PLURALIDADE – PARA ALÉM DOS BINARISMOS: Nós consideramos mera “tolerância” uma falha e ativamente resistimos a violência do sexismo, misoginia, racismo, colorismo, xenofobia, homofobia, transfobia, capacitismo, idadismo, classicismo e qualquer outra forma de discriminação e exclusão. Nada incorpora melhor a nossa abordagem do que essas palavras de Alok Vaid-Menon: “A criatividade revela que todas as categorias são artificiais e nada ambiciosas.”
2. COMUNIDADE – PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS: Nossas narrativas são narrativas sobre comunidades que se unem em vez de glorificar as “jornadas do herói” individuais de salvadores mágicos. COMUNIDADE é o herói de nossos futuros.
3. CELEBRAÇÃO DA PRESENÇA: Nossos futuros são corporificados e interdependentes. Nós prosperamos através de experiências sensoriais expandidas e conscientemente criamos espaços vitais para expressões neurodiversas de intimidade, cuidado e ternura radical.
4. AÇÕES REGENERATIVAS E A VIDA COMO TECNOLOGIA: Ao reconhecer que um círculo vicioso destrutivo já está em curso, nós consideramos que soluções sustentáveis são inteiramente insuficientes e almejamos por práticas regenerativas em todos os aspectos de nosso constructo civilizacional. Nós priorizamos as tecnologias biológicas acima das mecânicas como sendo a única estratégia verdadeira e de longo prazo. Nós crescemos, não apenas construímos.
5. ESPIRITUALIDADE SIMBIÓTICA: Nós apreciamos a importância das práticas espirituais desde a origem da humanidade e seu papel na formação da cultura humana. Nós, portanto, buscamos práticas espirituais que considerem os saberes tradicionais ao mesmo tempo em que também os expandimos em vez de sufocá-los com questionamento científico.
6. CRIATIVIDADE E SUBCULTURAS EMERGENTES: Das jornadas entrecruzadas de nossos ancestrais até o tecido social futuro de nossas cidades, nós celebramos o papel da criatividade para além do elitismo das disciplinas outrora rotuladas como “artísticas”.
7. EVOLUÇÃO DE VALORES – CULTURA DA CONTRIBUIÇÃO: Nós devemos nos afastar das culturas individualistas coloniais/neocoloniais baseadas em exploração e avareza, assim nutrindo culturas de equidade, contribuição e mutualidade planetária. Nós visualizamos o valores de uma sociedade de decrescimento material.
O manifesto é concluído com um convite para o sonho, mas que este seja um sonho grande e que também se torna inspiração para a ação, de modo que isso se torne um “ativismo fundamentalmente orientado para frente e com ações focadas em processos regenerativos, que participe da elaboração de políticas locais e internacionais e igualmente engage entidades corporativas de larga escala”, de modo que, assim, possamos gerar “mudanças fundamentais e duradouras” que advenham e perpassem por essas estratégias complementares, entre outras.
O conceito de protopia, então, nos convida a superar o pensamento binário, o eurocentrismo e mesmo as perspectivas ocidentais para abraçar outros pontos de vista que não são aqueles considerados tradicionais e impostos em nossa formação de forma evolucionista. Do ponto de vista dos negócios e da maneira como estamos pensando o futuro, o manifesto Protopia Futures nos dá um alerta sobre os nosso vieses inconscientes e conscientes, mas também nos fornece ferramentas para desviarmos desses caminhos viciosos e nos questionar o quanto de nossas visões de futuro estão colonizadas por olhares estrangeiros e narrativas massivas.
Cortesia imagem: Mario Mimoso & Monika Bielskyte