Dia 24 de fevereiro de 2022. O mundo acorda com a notícia de que Vladimir Putin deu início a um conflito que pode ter desdobramentos dramáticos e ser o ponto de virada para uma nova ordem global.
Muito sangue ucraniano e russo poderá ser derramado. As consequências econômicas e financeiras podem ir muito além da Ucrânia. Além do impacto humanitário de uma guerra.
Quão longe Putin está disposto a ir? Quais lições ele aprendeu na vida, com a história e com guerras passadas?
Durante meses, ele ficou quieto enquanto aglomerava 190.000 soldados russos nas fronteiras com a Ucrânia. A pergunta que pairava era: ele irá invadir? A pergunta agora é outra: onde ele quer chegar?
Às vésperas da invasão, Putin quis fazer o mundo acreditar que não iria parar por nada. Exaltando seu arsenal nuclear, ameaçou incisivamente “esmagar” qualquer país que atravessasse seu caminho.
Qual a escala de sua ambição?
Aparentemente, Putin cobiça toda a Ucrânia, movido pela crença de que tem um papel a cumprir na história. A cientista política Valerie Sperling, disse em 2017, que ele queria “fazer a Rússia great again“, ou grande novamente.
É por isso que, se parte da Ucrânia for tomada, o “reconquistador de terras” tende a não parar. Ele não poderá invadir os países da Otan que já fizeram parte do império soviético, pelo menos não agora. Mas poderá submeter esses países a ataques cibernéticos e a uma guerra de desinformação. Ele ameaçará a Otan porque acredita que essa organização ameaça à Rússia e seu povo.
Essa convicção nos remete ao livro “The Dragon” (1944) de Evgeny Shvarts, escritor que escapou das garras de Stalin, refugiando-se na literatura infantil: “O livro é uma das desconstruções mais perspicazes já escritas do regime autoritário – e amargamente relevante agora que os autocratas estão voltando”, escreve a The Economist, fazendo um paralelo da obra com o atual conflito.
No livro, Lancelot, o herói, chega a uma terra tiranizada durante séculos por um dragão de três cabeças. O dragão exige ter, todos os anos, uma donzela, gado e iguarias, em quantidade colossais. Lancelot logo deixa claro sua intenção de matá-lo. No entanto, os moradores imploram para que não faça isso, pois o dragão não seria tão mal assim; afinal os protegia de outros dragões; cuidava dos súditos; até já ferveu o lago para acabar com uma praga anos atrás; e tem mais: os outros cavaleiros que tentaram matá-lo foram incinerados…, dentre outras desculpas.
Quando Lancelot sugere a possibilidade de não existir outros dragões, os aldeões se recusam a acreditar e, obedientemente, declaram lealdade ao monstro. Destemido, ele segue em frente, a despeito da conspiração do prefeito e da maioria dos moradores. Munido de armas e de um tapete voador, Lancelot corta as duas primeiras cabeças do lagarto gigante. Quando a última cabeça cai no chão, as pessoas vibram.
Um ano depois, Lancelot retorna e descobre que o prefeito fez os aldeões acreditar que foi ele, e não Lancelot, quem matou o dragão. E é o prefeito agora quem tiraniza a população com ameaças de prisões e com espiões à espreita. O cavaleiro, desapontado, conclui que a decapitação não foi suficiente: o verme entrou nas almas de seus súditos e agora “somente matando o dragão dentro de cada um deles”.
Shvarts, astutamente, para não correr o risco de ser mandado para o gulag – campos de trabalho forçado da ex-União Soviética criados para punir indivíduos com trabalho pesado, frio intenso, alimentação mínima e condições sanitárias quase inexistentes – disse que o dragão do seu livro representava Hitler; mas obviamente, também representava Stalin. Os futuros leitores de “The Dragon”, durante a glasnost, vendo o totalitarismo se esvaindo, curtiram essa comparação. No final da década de 1980, cidadãos das nações do bloco soviético estavam nas ruas, derrubando seus dragões.
Agora, em 2022, quando o mundo parecia ter superado a fase das hostilidades bélicas explícitas, os dragões estão de volta, contando histórias e “estórias” para seus povos enquanto alegam protegê-los de ameaças. Alguns acreditam e aplaudem; outros os toleram e outros os reprovam.
Putin se enfureceu com a possibilidade da Ucrânia entrar para a Otan; alegou um “genocídio” que, segundo ele, o Ocidente estaria alimentando na Ucrânia. Putin não pode dizer ao seu povo que seu exército está lutando contra vizinhos que conquistaram sua liberdade – 83% dos russos relatam opiniões positivas sobre os ucranianos. Então ele diz que a Rússia está em guerra contra a América, Otan e seus representantes.
Segundo alguns analistas políticos, os Estados Unidos têm parcela de responsabilidade nesse conflito. Andrew Korybko, analista político norte-americano, diz que as ações dos EUA, por meio das chamadas “guerras híbridas” – para fortalecer a hegemonia unipolar norte-americana –, e a expansão da Otan no Leste Europeu catalisaram o conflito Rússia-Ucrânia.
Dragões e águias estão de volta. Essa foi a capa da revista The New Yorker, em 1 de julho de 1944, ilustrada por Rea Irvin.
Autor do livro “Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes”, Korybko observa que manobras dos EUA na Ucrânia levaram “essas forças de extrema-direita ao poder, as quais ameaçaram a minoria russa indígena [povos originários que habitam a região de Donbass] devido à ideologia fascista das novas autoridades, que glorificam aqueles que colaboraram com a Alemanha nazista”.
Putin então segue firme na retórica de “desnazificar” e “desmilitarizar” o país vizinho, e de enfrentar “a ameaça existencial” que possíveis planos dos EUA e da Otan na Ucrânia representam para a Rússia.
Mas, voltando à pergunta inicial, “qual a escala da ambição de Putin?” ou “onde ele quer chegar”, precisaríamos entender não somente os motivadores óbvios acima, mas compreender um pouco mais o que se passa na sua mente.
“Para entender Putin é preciso ler Fiódor Dostoiévski”, diz Dante Gallian, doutor em História pela USP. “O seu modus operandi e os valores que norteiam suas ações e decisões, cada vez mais explícitas e desconcertantes para nós, mostram que há mais coisas entre o céu e a terra do que a nossa vã filosofia desconhece”, complementa.
Para Gallian é surpreendente encontrar nos artigos da imprensa internacional, referentes aos mentores intelectuais e espirituais de Putin e seu círculo mais próximo, ideias, conceitos e até palavras idênticas às que podem ser encontradas em romances como “O Idiota” e “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski. Em “Os Irmãos Karamázov”, Dostoiévski ensina que o ser humano é demasiadamente vasto. “Para entender o humano em sua vastidão, para além das crenças, dogmas e ilusões racionalista-burguesa-ocidentais, é preciso, com urgência, ler e entender (na medida do possível) os russos. Antes que seja tarde demais”, alerta.
Shvarts, em “The Dragon”, mostrou que autocráticos e tiranos podem espalhar mentiras para mascarar suas depredações, revestidas de patriotismo. Também mostrou como os cidadãos são corrompidos em sua própria opressão.
Putin tem desfrutado de índices de aprovação relativamente altos desde que se tornou presidente em maio de 2000. Mas a maioria dos russos não quer guerra; 51% acreditam que a Rússia e a Ucrânia devem ser países independentes e amigáveis.
Sim, a autodeterminação dos povos deve ser defendida. E acreditar que Putin irá parar é uma ilusão. Quanto mais conquistas ele acumular, mais determinado estará para continuar sua escalada.
Independentemente do ambiente cultural e educacional que ele cresceu e se desenvolveu, e que pode até “justificar” sua mentalidade e suas ações, uma questão crucial que emerge é:
O século 21 terá espaço para líderes que atropelam os princípios que sustentam a paz?
Depois de 2 anos de pandemia, perdas, sofrimento,… o que o ser humano aprendeu?