A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz diz que “a pandemia marca o fim do século 20 e o início do século 21”.
Já o publicitário que vos escreve acrescenta outra importante referência: o show do Travis Scott no Fortnite, em abril de 2020, com certeza, marca o início do século 21 para a indústria do entretenimento ao vivo. Pra quem não conhece o artista ou ainda não entendeu sua relevância para o momento que estamos vivendo, recomendo fortemente que assistam o documentário “Travis Scott: voando alto” na Netflix. Ou que procurem refletir porque seu festival, recém-lançado, esgotou 100 mil ingressos vendidos em uma hora.
Pra começar esse artigo, vamos observar esse grande acontecimento que transformou nossas vidas: a pandemia da COVID-19. Mais especificamente, como essa situação afetou o entretenimento. Temos a sensação de que tudo está um pouco parado, né? Mas se fizermos uma retrospectiva, é impressionante como o setor que foi um dos primeiros a ser interrompido, também foi um dos que mais rápido se adaptou!
Em março de 2020, vimos os primeiros eventos cancelados: SXSW, Coachella, Ultra Music Festival, Mobile World Congress e Lollapalooza foram alguns dos gigantes que tiveram suas edições presenciais adiadas ou suspensas.
Como forma de levar a música pra dentro da casa das pessoas, começou o “boom” das lives. Inicialmente, artistas se apresentaram de uma maneira bem amadora e intimista, com grande parte de suas performances feitas direto de suas casas. Mesmo sem muita produção, conseguiram conquistar a atenção de um grande público. Um exemplo foi o festival organizado pela Lady Gaga em parceria com a OMS, o “One World: Together At home”, que teve a participação de diversos nomes potentes, em um clima bem festa no apê. Charlie Puth não teve nem a preocupação de arrumar a cama, gente como a gente!
“A perspectiva que considero mais empolgante é que, os shows de Travis Scott e Marshmello no Fortnite, estão redefinindo completamente o que uma experiência ao vivo hoje pode ser e o que será em um mundo pós Covid-19”, vislumbra Christophe Brumby, diretor de estratégia da Amplify. (Foto: Divulgação)
Passado esse momento de susto e de adaptação, as lives amadoras deram lugar às super produções, com patrocínio (alto!) das marcas. Aqui no Brasil, o “Boteco em Casa”, do cantor sertanejo Gusttavo Lima, bateu recorde de visualizações no Youtube, abrindo espaço para outras super lives como as da Marília Mendonça e Alok. O Coala Festival, a Campus Party e o festival Sarará também lançaram edições virtuais, já com uma estratégia e estética desenvolvidas especialmente para essa linguagem interativa, ao vivo e audiovisual.
O público “comprou” essa nova forma de consumir conteúdo. Comprou entre aspas porque só faltava mesmo para essas produções o grito de independência das marcas, que bancaram praticamente todas essas produções. Assim, organizadores de eventos e artistas começaram a repensar seus modelos de negócios. Saindo de uma lógica em que tudo é gratuito e está disponível “pra todes”, passando a enxergar e experimentar novas fontes de receita.
O canadense Collision From Home foi um dos primeiros eventos corporativos a cobrar ingressos em 2020 para uma edição virtual. No final do ano passado, no Brasil, a CCXP Worlds 2020, apesar de ter tido acesso gratuito, conseguiu monetizar-se de outras maneiras: oferecendo sessões especiais como meet&greet (encontros exclusivos) com quadrinistas, autores, artistas e cartunistas, brindes e outras opções por valores que variavam de R$35 a R$450.
Na indústria da música, Erykah Badu foi uma das precursoras das lives pagas. Com valores simbólicos, de 1 a 5 dólares, a cantora faturou uma boa grana (ao ponto de criar a sua própria companhia de streaming). Mas os pontos altos das turnês virtuais pagas foram mesmo da Dua Lipa, BTS e Billie Eilish. Esses artistas realizaram shows icônicos no 2º semestre de 2020, faturaram milhões de dólares e surfaram na onda da monetização das lives.
Reparem que todo esse processo, do caseiro às superproduções, passando pelos novos modelos de negócios, tem pouco mais de um ano! E a tendência é que continue evoluindo de forma exponencial. O recado é claro: o gênio não vai voltar pra lâmpada.
Enquanto tem uma galera que anseia e tenta a todo custo voltar para o presencial, numa cansativa luta pelo “antigo normal”, uma nova turma está saindo pela tangente, experimentando novos formatos, e crescendo 50 anos em 5.
O SXSW 21 deu tão certo na edição digital, que mesmo que a conjuntura possibilite a volta do evento físico em breve, já faz parte do planejamento da empresa ter a versão online também, apostando nesse modelo híbrido que tá tão em alta. O Tomorrowland, no espaço de um ano, também já realizou dois festivais digitais (pagos), e anunciou sua edição de Julho de 2021 também nesse formato (podendo caminhar para um modelo híbrido, caso a Bélgica libere seus festivais de verão).
Para quem quer fazer parte da indústria do entretenimento ao vivo do século XXI, listei abaixo 3 tendências pra ficar de olhos e ouvidos bem abertos:
1- Realidades paralelas
A futurista Amy Webb, em palestra no SXSW 2021, disse que estamos caminhando para uma realidade cada vez mais misturada, entre o físico e o virtual. E a verdade é que já estamos inseridos nessa lógica, né? Quando falamos sobre metaverso, logo vem à cabeça algo muito tecnológico e distante. Mas a verdade é que realidade virtual não é só a 3D, 4D e por aí vai… O próprio Whatsapp, Zoom, Instagram e ClubHouse já permitem que as pessoas vivam através das telas em muitos momentos do dia.
Até que ponto essa realidade é real, virtual ou híbrida? Não estamos, então, criando “avatares” de nós mesmos para cada lugar que acessamos?
Pesquisas apontam que a geração Z já sente menos falta de sair de casa para viver experiências sociais. Ou seja, enquanto muita gente diz que o virtual não garante experiências “reais”, tem toda uma galerinha que consegue suprir suas necessidades, de afeto, de entretenimento, de sociabilidade, através da tecnologia (pelo menos em parte, pelo menos mais que as gerações anteriores).
O que precisa ficar entendido aqui é que a forma de se relacionar hoje está muito diferente. Nem pior nem melhor. Apenas diferente.
Uma outra pesquisa, da Comscore, mostra que 70% da população digital no Brasil já é gamer, e ocupamos o 4º lugar no ranking mundial. Também somos o 2º país mais presente na Twitch, plataforma de streaming que nasceu no universo dos games.
Todo esse sucesso da indústria dos games reflete-se em novas estratégias de comunicação. O Fortnite, por exemplo, já tem planos de ser parada obrigatória nas turnês dos artistas.
Alguns outros exemplos que mostram porque os games já são os palcos do futuro: Jojo Todinho no Call of Duty, a parceria da Malía com a GameXP, o Alok no Free Fire, a estética gamer do clipe da Anitta, Luiza Sonsa e Pablo Vittar… etc.
A tendência agora é olhar para esses games e entender como eles estão se comunicando com os jovens, discutindo assuntos pertinentes, como identidade de gênero, e sendo esse lugar de afeto. E olha quantas oportunidades para as marcas também, né?
2 – Festivais digitais
Partiu pistinha no metaverso? Como você já sabe, se no primeiro momento a galera ainda não sabia muito como fazer, hoje já vemos altas produções. Alguns outros exemplos pra você entender que é de fato uma tendência:
O hibridismo apareceu de forma sensacional na proposta de muitos eventos. O Tomorrowland, além de desenvolver uma grande ilha virtual com 8 palcos pro público percorrer, ofereceu a opção de “Kit Festa em casa”, com comida, brindes e bebidas para acompanharem o festival.
Já o Burning Man usou uma tecnologia que simulava um deserto, e a caminhada que o usuário fazia pela areia foi calculada para ter um tempo aproximado ao real. Também deram dicas de como construir seu próprio boneco de madeira em casa, para que o público pudesse participar do tradicional momento da queima em conjunto desse boneco.
No Brasil, eventos como o Festival Amazônia Maping, Festival No Ar Coquetel Molotov, Feira da Música do Ceará, Festival Rec-Beat e Festival Feira Preta deram show de adaptabilidade, resiliência e criatividade com belíssimas edições virtuais.
O ponto que poucos se tocaram é o seguinte: está todo mundo experimentando! Alguns já estão lá na frente, outros ainda tentando se adaptar aos novos formatos. Mas uma coisa é certa, agora é a hora de se jogar e arriscar. Com essa curva de desenvolvimento acelerada, daqui a pouco os festivais online vão estar em um outro nível, e aí vai ficar difícil competir pra quem ainda nem começou.
3- Experiências nativas digitais
Entendendo a potência do digital, algumas iniciativas surgem única e exclusivamente pensadas para esse modelo. São essas as mais inovadoras e criativas, testando os limites das experiências online.
O Swamp Motel é um teatro imersivo onde tudo acontece online. É um jogo, que participam 4 pessoas, e o participante precisa pesquisar pistas na internet, navegando pelo Facebook e Google com o objetivo de desvendar um mistério. Uma das melhores experiências que você precisa conhecer (embora apenas para quem é fluente em inglês).
O Airbnb lançou um espaço de experiências online. Outro negócio que está fazendo muito sucesso é o “DragTaste”, onde você compra um momento com drags portuguesas no Zoom te ensinando como fazer uma sangria glamourosa. Além de ter um momento de brindar à vida e falar sobre curiosidades de Lisboa, cultura Drag e o que mais a galera quiser puxar assunto ali com elas no ao vivo.
A pontinha do iceberg
Muitas outras experiências como essas estão sendo desenvolvidas aqui e agora, enquanto você lê esse artigo. E essa é só a pontinha do Iceberg. A pergunta que fica é: como será o futuro?
Avatares digitais existem desde os anos 1990, mas desde que Miquela foi criada em 2016 – hoje ela tem 3 milhões de seguidores – influenciadores movidos a inteligência artificial têm sido considerados o futuro da indústria do entretenimento.
Algumas apostas que podemos fazer: o 5G vem para acelerar ainda mais todo esse processo; metaverso e a inteligência artificial já são uma realidade. Agora, vamos ter que nos questionar como radicalizar esse acesso e fazer com que todes participem dessa nova realidade híbrida também.
Crédito da imagem da capa: Tomorrowland Around The World
Adorei o artigo. Embora eu ainda ache que o Brasil está bem atrasado ( estou morando fora do país, tendo experiências incríveis pós-pandemia – fica impossível não comparar ) fico feliz em ver que tem gente do ramo ligada no que acontece e divide suas percepções do que vem por aí. Obrigada!