O transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP) é um distúrbio caracterizado por episódios frequentes de ingestão compulsiva de alimentos em curto espaço de tempo e que leva a uma maior prevalência de pessoas obesas. Muitas vezes, estas pessoas sofrem pressão social, clínica e psicológica para se enquadrar em um perfil de composição corporal, o que pode acabar acentuando ainda mais o quadro de transtornos alimentares.

Ao contrário do que ocorre na bulimia, a pessoa com TCAP não apresenta comportamento purgativo compensatório, ou seja, não induz vômitos, não pratica atividades físicas intensas e nem consome diuréticos ou medicamentos para emagrecer após os episódios de alimentação compulsiva.

O paciente com TCAP ingere de forma descontrolada grandes quantidades de alimentos, muitas vezes mesmo sem estar com fome. Sentimentos de angústia, de descontrole e de vergonha estão frequentemente presentes.

Um dispositivo promissor

Um pequeno dispositivo que detecta a atividade cerebral relacionada ao desejo por comida em uma região-chave do cérebro e que responde estimulando eletricamente essa região, mostrou-se promissor em um ensaio clínico piloto em dois pacientes com TCAP.

O estudo, publicado ontem na Nature Medicine. Pesquisadores da Perelman School of Medicine da Universidade da Pensilvânia, acompanhou durante seis meses dois pacientes, em que o dispositivo implantado – similar ao usado para tratar epilepsia resistente a medicamentos – monitorou a atividade em uma região do cérebro chamada nucleus accumbens, a qual está envolvida no sentimento de prazer e recompensa.

Sempre que o dispositivo detectava sinais do nucleus accumbens que, em estudos anteriores, prediziam os desejos por comida, ele estimulava automaticamente essa região do cérebro, interrompendo os sinais relacionados ao desejo. Ao longo de seis meses de tratamento, os pacientes relataram muito menos episódios de compulsão alimentar e perderam peso.

“Este foi um estudo de viabilidade inicial no qual avaliamos principalmente a segurança, porém certamente os benefícios clínicos que esses pacientes relataram, e que são robustos, são realmente impressionantes e empolgantes”, disse o autor sênior do estudo Casey Halpern, MD, professor de neurocirurgia na Penn Medicine e no Corporal Michael J. Crescenz Veterans Affairs Medical Center.

Transtornos Alimentares, como o TCAP, afetam cerca de 10 milhões de pessoas no Brasil. Só nos Estados Unidos, o TCAP é considerado o transtorno alimentar mais comum. A pessoa compulsiva tem a sensação de perder o controle sobre a alimentação, de modo que continua a comer além do ponto de se sentir satisfeita.

Os episódios de TCAP são precedidos por desejos por alimentos específicos. Halpern e seus colegas, em um estudo de 2018 com experimentos em camundongos e humanos, encontraram evidências de que a atividade elétrica de baixa frequência no nucleus accumbens surge pouco antes desses desejos – mas não antes da compulsão alimentar normal.

Os pesquisadores estimularam o nucleus accumbens em camundongos para interromper essa atividade relacionada ao desejo sempre que ocorria, e descobriram que os camundongos comiam significativamente menos alimentos saborosos e de alto teor calórico e que, de outra forma, teriam se empanturrado.

O dispositivo que os pesquisadores utilizaram para gravar sinais e estimular os cérebros dos camundongos está comercialmente disponível e aprovado para o tratamento de epilepsia resistente a medicamentos. É colocado cirurgicamente sob o couro cabeludo, com fios que atravessam o crânio até o nucleus accumbens em cada hemisfério do cérebro.

Esse novo estudo foi um teste preliminar do mesmo dispositivo em seres humanos. A equipe de Halpern colocou em cada um dos dois pacientes, gravemente obesos, os dispositivos de estimulação cerebral e, por seis meses, gravou os sinais dos dispositivos.

Às vezes, estes pacientes eram acompanhados em laboratório, diante de suas comidas favoritas – como lanches, fast-food e doces – mas principalmente eles foram monitorados em casa envolvidos em suas rotinas diárias. Os pesquisadores puderam filmar os episódios de compulsão alimentar no laboratório e, quando eles estavam em casa, relataram os horários dos episódios. Assim como no estudo anterior, os cientistas observaram que um sinal distinto de baixa frequência no nucleus accumbens aparecia segundos antes das primeiras mordidas na alimentação compulsiva.

Na fase seguinte do estudo, os dispositivos fizeram automaticamente estimulação elétrica de alta frequência ao nucleus accumbens sempre que os sinais associados ao desejo de baixa frequência ocorriam. Durante os seis meses, os pacientes relataram queda acentuada de sentimento de perda de controle e de frequência de episódios de compulsão – cada um também perdeu mais de 11 quilos. Uma das participantes melhorou tanto que não preenchia mais os critérios para TCAP. Parece não haver efeitos colaterais adversos significativos.

“Esta foi uma bela demonstração de como a ciência translacional funciona”, disse a co-autora do estudo Camarin Rolle, PhD, pesquisadora de pós-doutorado.

Mas Alexandra Pike, pesquisadora de saúde mental da Universidade de York, e que não participou desse estudo, enfatiza que o dispositivo precisa de uma especificidade significativamente maior no seu funcionamento antes que possa ser usado em mais pessoas. Apesar de considerar as novas descobertas “promissoras”, Pike afirma que o dispositivo ainda é muito ativo, enviando estimulações ao cérebro dos pacientes centenas de vezes ao dia além das experiências reais de alimentação.

“… os resultados sugerem que o padrão de atividade cerebral detectado ocorre em torno de 50-60% do tempo quando os pacientes estão acordados, não apenas quando estão sem o controle alimentar, o que significa que estão sendo estimulados talvez mais do que o necessário (aproximadamente 400 vezes ao dia) com as atuais configurações”, explica Pike.

Portanto, embora esta pesquisa aponte para um futuro em que seja possível que implantes cerebrais regulem comportamentos impulsivos, como comer em excesso, há muito trabalho a ser feito.

Os cientistas começaram a inscrever novos pacientes para um estudo maior. Eles observam que, em princípio, a mesma abordagem de tratamento pode ser aplicada a outros distúrbios relacionados à perda de controle, como a bulimia.

Ilustração da capa: Claire Milbrath

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