Um convite para repensar nossa relação com o passado, o presente e o futuro nas cidades.
Quando finalmente aceitei meu papel como futurista, especificamente empenhado e dedicado às questões urbanas, o assunto que mais me fascinou e ocupou minhas madrugadas com descobertas e revelações inimagináveis foi o tempo. Isso mesmo, esse conceito que nos cerca e nos acompanha ao longo de toda a nossa vida. Afinal, como seria possível pensar em futuros sem a compreensão do senhor desse domínio? Para isso, me aventurei pela física, mecânica quântica, filosofia da ciência, filosofia e tantas outras vertentes do pensamento, umas mais, outras menos, esquisitas.
Comecemos pela nossa própria língua: a palavra tempo é carregada de diferentes significados: da duração contínua dos eventos (filosofia ou física), o momento propício para uma ação (tempo oportuno), a condição do clima, a estrutura rítmica na música, ou ainda indicar o tempo verbal de uma ação na gramática. Essa multiplicidade semântica já aponta que o tempo, longe de ser uma entidade neutra ou universal, é uma construção cultural, simbólica e situada — vivida, narrada e representada de modos muito distintos ao longo da história e entre diferentes povos.
Dos aspectos culturais aos científicos, da discussão da sua inexistência às tentativas frustradas de prevê-lo, o fato é que o tempo é onipresente e entendê-lo profundamente é, provavelmente, missão para uma vida, pelo menos. Nesse breve artigo, compartilho com vocês um pouco dessas descobertas e, no fim, como as aplico no meu processo de trabalho.
Embora pareça senso comum em uma análise mais superficial, o tempo não se comporta como uma linha reta para todas as culturas. A seta — passado a ser superado e futuro a ser conquistado — não é uma unanimidade. A noção de tempo — que muitas vezes tomamos como um dado natural e cronológico — é, na verdade, uma construção simbólica e histórica profundamente influenciada pela cosmovisão de cada sociedade, ou seja, embora nos pareça absoluto e científico, podemos também entendê-lo como uma construção social.
Ao longo da história, diferentes povos elaboraram formas muito distintas de compreender passado, presente e futuro. Particularmente gosto da citação de Santo Agostinho a respeito do tempo:
“O que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada.” — Confissões, Livro XI
No meu entendimento, esse pensamento do século IV, influenciou muitos dos pesquisadores e cientistas que citarei nesse artigo, bem como grande parte de nós mesmos. Ao pensarmos sobre o tempo, nos sentimos absolutamente confortáveis em defini-lo, mas quando precisamos externar esse pensamento e organizá-lo de forma minimamente coerente, a coisa fica um pouco mais complicada.
Umas das minhas experiências com o tempo, do ponto de vista literário, foi o livro “Tempo e História” que li ainda na faculdade e finalmente, comprei mais de uma década depois. Nele, havia uma passagem do então nada pop, mas já impressionante, Ailton Krenak, onde lembro, sem mesmo precisar recorrer a minha cópia impressa, que falava sobre a diferença entre o tempo da história e o tempo da memória. Essa forma poética, e na mesma medida, extremamente crítica, foi meu primeiro contato com o que hoje chamamos de passados plurais. Sim, o passado também é plural, mas isso é tema para outro artigo.
Por muitos aspectos, o tempo é também uma política: quem o define, molda a percepção da realidade e organiza o horizonte de possibilidades.
Tempo Cíclico: As Cosmologias Ancestrais
Povos originários das Américas, África e de civilizações como os maias ou hindus, entendiam o tempo de forma cíclica, movendo-se em espirais, em repetições cósmicas, e não como uma linha progressiva. Por exemplo, Mircea Eliade, sugere que as culturas ancestrais vivenciam o “eterno retorno”: o presente se reinaugura sempre a partir de rituais que reatualizam os mitos fundadores.
O passado, nesse contexto, não está necessariamente “atrás”, mas é a base simbólica de tudo. Já o o futuro, não é necessariamente uma promessa de inovação, mas o retorno ao equilíbrio perdido. Assim, a relação com o tempo é cosmológica, vinculada ao ritmo da natureza, aos astros e à ancestralidade.
Aqui, impossível não lembrar da frase clássica de Nêgo Bispo: “Somos começo, meio e começo”, que me foi apresentada recentemente e que espera na fila por um concorrido espaço desocupado de pele para ser tatuada.
Tempo Profético: As Religiões e o Fim dos Tempos
Com o surgimento das religiões monoteístas — judaísmo, cristianismo e islamismo — emerge uma nova forma de pensar o tempo: teleológica. A teologia é um conceito presente em Platão e Aristóteles que se refere ao estudo filosófico dos fins, propósitos e objetivos que guiam a natureza e a humanidade. Nesse tempo profético, o tempo tem início (a Criação), meio (a história humana) e fim (o Juízo Final). O passado é sagrado e fundador; o presente é um tempo de prova; o futuro, a promessa de redenção ou garantia de sofrimento eterno, ou seja, vemos a inauguração do tempo como narrativa de sentido.
Tempo Linear: A Invenção do Progresso
A partir do Iluminismo e, mais intensamente, com a Revolução Industrial, o tempo passa a ser concebido como linear, contínuo e mensurável. A racionalidade iluminista introduz a ideia de progresso como “seta” histórica, enquanto a era industrial traduz essa abstração em controle: nascem o relógio mecânico, o expediente fabril, a lógica da pontualidade, o tempo como controle e como amarra, algo ainda em curso, por mais anacrônico que possa parecer, e por isso mesmo, começa a ser questionado pelas novas gerações entrantes no mercado de trabalho.
O historiador Reinhart Koselleck descreve a modernidade como o momento em que se dissocia o espaço de experiência — o que é herdado e vivido — do horizonte de expectativa — o que é projetado para o futuro. A partir do século XVIII (Revolução Francesa), o futuro deixa de repetir o passado e passa a ser um campo aberto à invenção técnica, política e subjetiva. Essa ruptura inaugura um novo regime de historicidade: o da da inovação contínua e da promessa de progresso. Aqui o futuro passa a ser o foco e o passado o ponto de partida.
Tempo Acelerado: A Crise do Presente
Hoje, vivemos a era da aceleração. O tempo do capital e dos algoritmos impõe uma lógica de urgência e obsolescência permanente. François Hartog denomina isso de “presentismo”: onde o presente se torna absoluto, fechando-se sobre si mesmo, enquanto o passado perde sua força como referência e o futuro se torna incerto ou até ininteligível. Nesse cenário, a experiência histórica se comprime, a memória enfraquece e a expectativa de futuro se fragmenta — inaugurando um tempo suspenso, onde tudo acontece no agora, mas nada se projeta adiante. Não é simplesmente o foco no presente, mas a desconexão com o passado e futuro.
O futuro, antes habitado por utopias, cede lugar a distopias e incertezas. O presente torna-se onipotente: sobrecarregado de tarefas, estímulos, informações, urgências contínuas. O passado, por sua vez, retorna não como memória ativa, mas como fetiche ou nostalgia seletiva.
Hartmut Rosa descreve essa condição como um descompasso temporal estrutural: um estado em que os tempos (biográficos, sociais…) entram em conflito permanente. O resultado é uma experiência subjetiva marcada pela aceleração, pela alienação e pela sensação de que o tempo “nos escapa”, nos falta — não por falta de relógios, mas por excesso de velocidade e, por que não, falta de direção. Se o descompasso não fosse complicado o suficiente, ainda podemos observar um paradoxo: enquanto o avanço da tecnologia nos prometia mais tempo, hoje, a sensação é de que ele nos falta.
Tempo Enraizado: Povos que Resistiram ao Progresso
Vale lembrar o que podemos chamar de tempos insurgentes, livres da lógica linear do progresso em povos originários e comunidades tradicionais. Esses “tempos múltiplos e interconectados” são o tempo da floresta, o tempo do cuidado, o tempo da escuta, o tempo da ancestralidade. Tempos esses que não cabem na seta do progresso, tempos que se entrelaçam com o mundo.
Essas cosmologias não recusam o futuro — elas o reconfiguram como responsabilidade coletiva e relacional. Nessas visões, o futuro não é um destino distante a ser conquistado, mas uma continuidade tecida no presente, sustentada por vínculos éticos com a terra, com os outros — humanos e não-humanos — e com o invisível. É o porvir enraizado: não uma fuga para frente, mas um compromisso profundo com a manutenção da vida em sua pluralidade de formas. (Danowski & Viveiros de Castro)
O Tempo na Física Contemporânea: Entre a Ilusão e a Emergência
As concepções culturais do tempo encontram ressonância e desafio nas descobertas da física moderna. A relatividade geral de Einstein revelou que o tempo não é absoluto. A dilatação do tempo demonstra que o tempo passa mais lentamente em campos gravitacionais mais intensos.
Na mecânica quântica, o tempo não é um operador observável, mas um parâmetro externo, o que leva a debates sobre sua natureza fundamental.
Carlo Rovelli argumenta que o tempo não é uma entidade fundamental da realidade. Aliás, foi justamente ele quem me deu o primeiro nó a respeito do tempo, com o seu — na minha opinião, clássico livro — “E se o tempo não existisse?”. Seus livros — curtos e diretos —, bem diferente do que eu estava acostumado (ou como eu imaginaria que seriam) os livros de física, me viciaram no assunto. Foram minha porta de entrada para leituras incrivelmente mais pesadas, como Julian Barbour, que em colaboração com Tim Koslowski e Flavio Mercati, introduziu o conceito de “ponto de Janus”, sugerindo que o tempo pode emergir em direções opostas a partir de um estado de baixa entropia, como o Big Bang. Para esses três cientistas, o tempo pode não fluir unicamente para “frente” (se é que o tempo existe, e se é que ele tem uma flecha sequer).
Essas perspectivas científicas desafiam a linearidade e a universalidade do tempo, aproximando-se das visões cíclicas e relacionais de diversas culturas ancestrais. Elas sugerem que o tempo pode ser uma construção emergente, dependente de contextos específicos e interações complexas.
Entre Rios e Rizomas, os Futuros Plurais
Se a história nos mostra que o tempo é uma construção simbólica e plural, então o futuro não pode ser um só. Os futuros são plurais. Peter Bishop argumenta que o futuro não é predestinado, mas construído por decisões tomadas no presente. Ao afirmar que, “o futuro não existe ainda — ele é criado a partir do que fazemos agora”, Bishop revela o caráter essencialmente político e estratégico do ato de imaginar o amanhã. Projeções de futuro (nunca previsões), nesse sentido, são sempre escolhas. E escolhas são disputas — de narrativas, valores e possibilidades.
Para construir lugares à prova de futuros, é preciso incorporar essa consciência plural. Lugares à prova de futuros são, por definição, aqueles que:
“Integram a sensibilidade da memória, a estratégia da antecipação, a ética da regeneração e o rito da colaboração.”
Se, como vimos, o tempo não é necessariamente linear, a integração expressa na citação acima, não pode se apoiar em estruturas causais ou sequenciais. É preciso adotar formas de pensamento não lineares, sistêmicas e abertas, como o pensamento complexo e a abordagem rizomática, propostos por Edgar Morin e por Deleuze & Guattari. Ou seja, em vez de organizar o mundo por blocos de antes e depois, o pensamento complexo articula redes, interdependências e contradições. Já o pensamento rizomático propõe uma arquitetura de múltiplas entradas, conexões inusitadas e horizontalidade das experiências — onde o conhecimento cresce por adição, desvio e contágio.
Nas cidades, isso significa reconhecer que o tempo não é apenas cronológico, mas também afetivo, sensorial, ritual, ecológico, político, regenerativo. Significa aceitar que diferentes grupos sociais vivem e experimentam o tempo de maneiras distintas — o tempo da fila do ônibus, o tempo da colheita, o tempo do cuidado, o tempo das férias, o tempo da convivência, o tempo da transformação.
Uma cidade à prova de futuros é aquela capaz de contemplar tempos diferentes, não como competidores, mas como colaboradores e, em vez do colapso, caminhar para o equilíbrio. É a cidade onde o tempo não serve apenas à produção, mas também à experiência. Onde o tempo também é sentido e não é só contado. É uma cidade que abraça o ritmo das urgências sem atropelar o tempo da cura, do diálogo, da pausa.
Nossas Raízes
Em um mundo atravessado por múltiplas crises — ambientais, políticas, sociais, econômicas, construir futuros não é, necessariamente, acelerar. Construir futuros é enraizar, é entender o que torna cada lugar único e especial para quem com ele se relaciona. É entender que a identidade, e, portanto, a comunidade, é o ponto de partida e que precisamos, o tempo todo, trocar a lente, hora para olhar de muito longe, enxergando-nos como o pálido ponto azul fotografado pela Voyager e compreender a nossa escala quase quântica comparada a vastidão do universo e o universo de possibilidades que isso proporciona. Essa é a hora do telescópio. Mas também é preciso um outro momento, o de olharmos para dentro, para nossas raízes, para nossa história, nossa identidade, nossa cultura. Esse é o momento do microscópio, quando olhamos para nossa existência, mesmo que só compreendamos uma minúscula parte dela.
O futuro, ou os futuros, talvez estejam justamente na sobreposição dessas lentes da nossa conexão com o planeta, com o universo ao nosso redor, com a nossa própria identidade e cultura, com o nosso universo microscópico e telescópico, sempre olhando para dentro mas sem perder a consciência do todo. É nossa oportunidade e, porque não, nosso dever, não só de não mais sustentar o que não é mais passível de sustentação, mas de regenerar, para que o futuro seja, qualquer que seja ele, potencialmente melhor do que o presente e obrigatoriamente melhor do que o passado.
Referências Bibliográficas
Agostinho, Santo. Confissões. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Nova Fronteira, 2011.
Barbour, Julian. The Janus Point: A New Theory of Time. Basic Books,2020.
BISHOP, Peter; HINES, Andy. Thinking about the Future: Guidelines for Strategic Foresight. Arlington: Social Technologies, 2007.
Bispo, Antônio (Nêgo Bispo). Colonização, Quilombos: modos e significações. Belo Horizonte: UFMG, 2021.
Danowski, Déborah; Viveiros de Castro, Eduardo. Há Mundo por Vir? Ensaio sobre os Medos e os Fins. São Paulo: Cultura e Barbárie, 2014.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.
Einstein, Albert. Relativity: The Special and the General Theory. Londres: Methuen & Co, 1916. (diversas edições modernas em português pela Zahar, Unesp e outras).
Eliade, Mircea. O Mito do Eterno Retorno: Arquétipos e Repetição. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Hartog, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
Koselleck, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
Morin, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2000.
Ricoeur, Paul. Tempo e Narrativa: Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.
Rosa, Hartmut. Aceleração e Alienação: Por uma Crítica do Tempo na Modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2013.
Rovelli, Carlo. A Ordem do Tempo. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. (original: L’Ordine del Tempo, 2017).
Ilustração da capa: Celyn Brazier