E se criássemos um mundo de “hackers”?
Isso mesmo. E se vivêssemos num mundo onde todos tivessem uma mentalidade “hacker”? Você se assustou? Pois não deveria.
Talvez o uso do termo “hacker” leve àquela interpretação, digamos, antiga (se é que se pode chamar de antigo este termo, que vem na onda da massificação das ações em rede com alcance mundial) e estereotipada de um jovem “nerd” que deixou a universidade e se esconde no porão de casa tentando invadir bancos de dados de empresas e organizações para espalhar vírus ou roubar informação. Esse é o “old school hacker”, inclusive porque boa parte deste grupo, que percebeu o quanto os sistemas organizacionais são vulneráveis a ataques externos mal-intencionados, já atuam ao lado das mesmas organizações para oferecer mais segurança ao que lhes é mais valioso: seus dados.
Voltando àquele “hacker” desejável de se ter no mundo, ou de se ter na mente de todo mundo, uma definição simples e direta vem de Logan LaPlante, que a formulou aos 13 anos, em 2013, para a sua palestra no TEDx da Universidade de Nevada:
“Hackers são inovadores. Hackers são pessoas que desafiam e mudam os sistemas para fazê-los funcionar de um jeito diferente, fazê-los funcionar melhor.”
Mais: os “hackers” que queremos conhecem bastante bem os sistemas em que desejam interferir e seus problemas com solução mais premente. Tão bem, que conseguem estabelecer uma conexão bastante rápida e direta com soluções que funcionam com sucesso em sistemas de outra categoria e podem ser adaptadas com uma curva de aprendizagem mínima em relação à melhoria esperada para o sistema. Assim como acontece com os vírus que se infiltram nas nossas células – e nos sistemas ainda frágeis das organizações – e usam o seu mecanismo de multiplicação e transmissão de dados para alcançar o objetivo de espalhar uma doença, física ou virtual.
Prestando atenção ao comportamento das crianças, especialmente as ainda bem pequenas, é possível identificar a mentalidade “hacker” num sem número de observações a respeito do mundo e das pessoas que as cercam – e das relações entre estes entes. Pense um pouquinho sobre a última vez em que você se surpreendeu com um comentário rápido, direto, cheio de simplicidade e certeiro de uma criança enquanto ambos vivenciavam uma situação que, aparentemente, caminhava para uma solução nada fácil.
Crianças são pequenos cientistas, atentas ao mundo em modo exploração e experiência durante a organização das redes neurais que progressivamente formam conexões durante a primeira infância.
Mas o que detona a reação que transforma esta mentalidade no conformista e tradicional modo de pensar adulto? Uma pista? O mesmo sistema que pode manter acesa a chama “hacker” de todo indivíduo: e-du-ca-ção.
Pensar um modelo educacional – ou vários – que forme indivíduos capazes de analisar criticamente os diferentes sistemas a que está exposto e com os quais se relaciona – sem que estejam separados por tema em caixinhas e com duração máxima de cinquenta minutos – e propor “hacks” que os tornem mais amigáveis a todas as suas camadas e inter-relações também pressupõe mente e, acima de tudo, atitude “hacker”.
Atitude porque muitas das concepções pedagógicas regularmente trabalhadas na formação de professores, coordenadores e diretores já estão imbuídas, desde o século XIX, do estímulo a comportamentos que resultam no desenvolvimento de habilidades dos sujeitos que conseguem perceber ou provocar a emergência da inovação.
Em primeiro lugar, como o sistema educacional trata a confiança nos educandos? Como as crianças e jovens envolvidos no processo de aprendizagem oferecido na educação básica mantêm a confiança em seu instinto de pesquisa, se apenas uma versão de cada história sobre cada tema tratado é vista como verdadeira? Sem qualquer exploração sobre o que seria o problema? Sem provocação sobre que hipóteses poderiam ser verificadas tanto na concepção do problema quanto na formulação de soluções? Sem tratar o aprendizado como um caminho onde o erro acontece e pode ser um atalho para uma série de acertos?
E, aqui, não se trata de apologia do erro por si, mas sim de retirar da mentalidade educada mecanicamente para o chão de fábrica da Revolução Industrial o estigma de que errar é negatividade pura e não pode gerar uma reflexão mais profunda sobre os motivos do erro e sobre como e por quê partir deste ponto até o acerto. Ou mesmo uma reflexao a respeito do que é acertar.
Maria Montessori, ainda no início do século XX, concebeu um método educacional baseado na harmonia entre atividade, liberdade e individualidade, partindo do princípio de que todas as crianças têm capacidade inata de aprender num processo desenvolvido através da experiência, do fazer. E mais: na concepção de Montessori, os próprios educadores, através da observação do desenvolvimento das crianças e de como aprendem, são capazes de refletir sobre a melhor maneira de facilitar este processo, formulando hipóteses sobre a aprendizagem e legando à educação um caráter científico, empírico, em que os sujeitos podem explorar possibilidades com confiança na habilidade individual, na construção empírica do conhecimento e na possibilidade do acerto. Isso foi há mais de cem anos.
Neste ponto, partimos para o diálogo sobre a diversidade: acertar para mim pode ter um significado diferente da sua concepção de acerto. Pode até presumir velocidades diferentes: para mim, acertar muito rápido pode prejudicar o desenvolvimento de competências que já possuo – e obrigar o outro à minha velocidade moderada também prejudica singularidades do seu desenvolvimento.
Explorando o campo da diversidade, não encontramos apenas a velocidade de aprendizagem, mas o contato com diferentes abordagens educacionais, com indivíduos com características diversas (etárias, psicológicas, sociais, raciais, regionais), com múltiplos espaços onde se pode aprender, dentro e fora da escola, com múltiplos olhares para um mesmo tema através da inclusão de outros atores no processo educativo, como os pais e a comunidade.
Uma prova de que há uma luz no fim do túnel sobre a questão da diversidade na educação que se preocupa com a formação de melhores indivíduos está em “As cem linguagens da criança”, obra que é uma das responsáveis por disseminar internacionalmente a abordagem Reggio Emilia, reconhecida como a melhor experiência educadora no mundo em 1991 e atualmente em discussão intensiva no meio educacional por trabalhar metodologias ativas e experimentais que envolvem não só a escola, mas toda a comunidade e sua diversidade, desde o fim da II Guerra Mundial.
“A criança é feita de cem. /A criança tem cem mãos/ cem pensamentos/ cem modos de pensar/ de jogar e de falar./ Cem sempre cem/ modos de escutar/as maravilhas de amar.
Cem alegrias/ para cantar e compreender./Cem mundos/ para descobrir./ Cem mundos/ para inventar./ Cem mundos/ para sonhar./ A criança tem/ cem linguagens/ (e depois cem cem cem)/ mas roubaram-lhe noventa e nove./ A escola e a cultura/ lhe separam a cabeça do corpo.”
(Trecho de As Cem Linguagens da Criança, de Loris Malaguzzi)
Finalizando com o estímulo chave para um ambiente de inovação, que prevê a convivência pacífica com doses de diversidade e incertezas, Sir Ken Robinson, em 2006, definiu perfeitamente o papel do sistema educacional ao formular uma pergunta que intitula a palestra TED mais assistida em todos os tempos: “As escolas matam a criatividade?”
Não só minam a importância de desenvolver a criatividade ao tratar as disciplinas de Artes como acessórios em último plano, estimulando ainda as que aparentemente trabalham mais com o cérebro (como Artes Plásticas e Música) do que o corpo (como Dança e Teatro), mas também ao falharem em reconhecer os talentos que fogem da lógica racional. Como ilustrado na história de uma criança diagnosticada aos oito anos com transtorno de aprendizagem (nosso conhecido TDAH, caso a nomenclatura existisse na época) pelo sistema tradicional nos anos 1930, cuja sensibilidade dos pais e psicólogos levou ao reconhecimento de uma dançarina, que floresceu na escola de dança, onde encontrou seus semelhantes, ou “pessoas que precisam se movimentar para pensar”.
Ela é Gillian Lynne, que foi solista na Royal Ballet School, graduou-se ali, fundou sua própria companhia de dança e foi responsável por algumas das produções que alcançaram o maior sucesso na história dos musicais, como Cats.
A principal questão que emerge sobre sistemas e ambientes concebidos para estimular a criatividade também está presente, ao contrário, na concepção da escola tradicional: a criatividade se manifesta pela conexão de uma multiplicidade de conhecimentos, experiências e meios de expressão; ela não vem empacotada em caixinhas. Também pressupõe a liberdade de errar na busca por uma solução inédita e a confiança que o indivíduo tem na possibilidade de fazer tentativas quando não sabe “a” resposta para uma situação ou problema.
Como um sistema que oferece conhecimento de maneira fragmentada, na forma e no conteúdo, e dissemina o pavor do erro, consequentemente, eliminando a chance de tentar acertar de maneira original, pode incentivar o desenvolvimento – ou mesmo a manutenção – da criatividade inata nas crianças?
Em tempo: o Método Montessori, aquele concebido há mais de cem anos, está calcado no incentivo ao desenvolvimento do potencial criativo na primeira infância…
Num ambiente onde, ironicamente, nos ensinam as leis da Física, mas a velocidade das transformações não é abraçada linearmente em função do tempo, enxergar o futuro pode significar olhar para trás e, por que não, “hackear” o passado.