Desenvolver o pensamento criativo é urgente.

Na dimensão individual, a popularização das ferramentas de Inteligência Artificial Generativa nos exigirá cada vez mais o olhar humano, o domínio das melhores formas de trabalhar com as máquinas e a ousadia para criar soluções inovadoras, fazendo bom uso de recursos aos quais não tivemos acesso em nossa formação inicial. Na dimensão coletiva, energia e potência criativas são essenciais para a reinvenção da nossa forma de viver e trabalhar, indispensáveis à sobrevivência do planeta.

Não é de se surpreender que o tema da criatividade venha ganhando importância nos mais diferentes espaços, em especial aqueles que se dedicam a analisar as imensas transformações tecnológicas e sociais que estamos vivenciando. O relatório do Fórum Econômico Mundial Future of Jobs 2023, por exemplo, traz o pensamento criativo como a segunda habilidade mais importante, atrás apenas do pensamento analítico – porém crescendo mais rápido do que ele, devido à automação.

Como mais um elemento que denota o reconhecimento da crescente relevância da criatividade, uma das avaliações educacionais mais importantes do mundo passou a contemplar o pensamento criativo. PISA é a sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. É um programa trienal realizado pela OCDE desde o ano 2000, do qual participam estudantes de 15 anos de idade de países da OCDE e parceiros. Tem como objetivo medir o quanto os jovens têm conhecimentos e habilidades essenciais para participação na vida econômica e social. As análises publicadas em junho de 2024 são da avaliação que foi aplicada em 2022.

A escala de avaliação do pensamento criativo vai de 0 a 60 pontos – a média da OCDE foi de 33 pontos. A pontuação variou entre 41 pontos (Singapura) e 13 (Albânia). A maioria dos países que pontuou acima da média em pensamento criativo também o fez em matemática, leitura e ciência. As meninas tiveram melhor desempenho do que os meninos em todos os países, com 3 pontos a mais (média OCDE). 31% das meninas estão na faixa mais alta de performance, e 23% dos meninos.[1] 

Em que pesem as críticas ao PISA – o excesso de padronização, a falta de adequação aos contextos, o foco limitado e a pressão sobre estudantes e professores – temos pela primeira vez um conjunto de informações sobre o pensamento criativo de jovens de 15 anos de mais de 50 países. Não é algo a se desperdiçar.

Os rankings amplamente noticiados sobre a prova são apenas uma das formas de olhar para esses dados. Uma abordagem importante, mas que se não se aprofunda leva a uma visão competitiva, fatalista e pouco mobilizadora, tanto em relação à educação brasileira quanto ao aprendizado da criatividade de forma ampla.

Ao ter acesso a dados tão abrangentes e detalhados, o melhor caminho é manter algumas perguntas no ar durante a exploração, e não buscar encaixar uma informação isolada em alguma crença anterior. Trabalhar com hipóteses exploratórias e não na busca de dados que comprovem uma visão já existente. Há campo vasto para isso nas 300 páginas do Volume III dos resultados do PISA 2022, focadas unicamente nos resultados do pensamento criativo. (Creative Minds, Creative Schools).  

A partir de uma exploração guiada unicamente pela pergunta “o que podemos aprender com os dados do PISA para desenvolver o pensamento criativo de forma mais efetiva em diversos contextos?”, algumas possibilidades se revelam. Considerando que todas as pessoas precisarão desenvolver a criatividade, 5 insights aplicáveis foram formulados a partir dos dados do PISA, que podem ser transpostos para outros contextos, como o trabalho e o desenvolvimento profissional.

#1: Quando dizemos que pensamento criativo é uma das habilidades fundamentais ao futuro do trabalho, é necessário compreender de que criatividade estamos falando – e por que ela é tão importante assim

Para medir algo, é necessário uma definição precisa. No documento da OCDE Measuring Creative Thinking[2] , o pensamento criativo é definido como “a competência para se envolver de forma produtiva na geração, avaliação e aprimoramento de ideias que podem resultar em soluções originais e eficazes, avanços no conhecimento e expressões impactantes da imaginação” (p. 45).

O que está no foco aqui não é a capacidade de criar grandes obras-primas ou fazer descobertas disruptivas na ciência, mas sim nos processos cognitivos necessários para se envolver em um trabalho criativo. É uma capacidade maleável que pode ser desenvolvida por meio da prática e aplicada em contextos cotidianos.

Em relação à relevância, empregabilidade é importante, mas há muito mais. A importância do pensamento criativo vai além de preparar os jovens para um mundo em rápida mudança, em que precisarão trabalhar de forma flexível e inovadora. “O pensamento criativo na educação contribui para o desenvolvimento holístico dos alunos – ele apoia o aprendizado, a resolução de problemas e as habilidades metacognitivas por meio da exploração e da descoberta, ajudando os alunos a interpretar as informações de maneira pessoalmente significativa.” (p. 45).

#2: O pensamento criativo se concretiza no domínio em que é aplicado

A prova avaliou três competências: gerar ideias diferentes, gerar ideias criativas, avaliar e melhorar ideias. Mas não há como avaliar essas competências de forma abstrata. Elas foram avaliadas em 4 domínios: expressão escrita, expressão visual, resolução de problemas sociais, resolução de problemas científicos.

O trabalho criativo sempre se sustenta em algum grau de conhecimento sobre o domínio em que se aplica. Mesmo que o foco tenha sido a flexibilidade do pensamento e a capacidade de fazer associação de ideias, mais do que a qualidade da expressão artística, algum domínio técnico da linguagem é essencial.

#3: Condições socioeconômicas não podem ser negligenciadas

Avaliações em larga escala como o PISA dão a oportunidade de compreender aspectos sistêmicos que influenciam os resultados, indo além da performance individual, de escolas e mesmo de países como entidades isoladas. Aspectos esses que o simples “ranqueamento geral não revela.

No pensamento criativo, uma relação já conhecida na educação se repete: as condições socioeconômicas influenciam muito o desempenho. Os estudantes com as piores condições socioeconômicas pontuam cerca de 10 pontos abaixo daqueles com melhores condições. Esse dado se refere aos países da OCDE, mas em todas as nações participantes os estudantes em desvantagem socioeconômica pontuaram menos do que aqueles com melhores condições. [3] As condições socioeconômicas da escola também influenciam os resultados dos estudantes.[4]

Qualquer análise que não chame atenção para isso será incompleta, levará a conclusões imprecisas e a ações inadequadas.

#4: Pensamento criativo pode ser aprendido – mas de uma forma diferente do que se costuma pensar

Os jovens que participam de aulas de arte uma vez por semana pontuaram apenas um pouco melhor do que os demais. Então, se participarem de mais aulas, pontuarão mais? Não. A participação mais frequente está negativamente relacionada ao desempenho.[5]

A hipótese levantada pela OCDE é a de que alunos em vantagem socioeconômica participam de menos atividades extras e focam mais nas áreas consideradas core do currículo que, estas sim, influenciam o desempenho na prova.

Mas o próprio relatório reconhece que essa relação é complexa, e não é possível estabelecer uma relação simples de causa e efeito. Aqui está um campo de investigação instigante e contraintuitivo. Ampliar repertório é uma boa resposta, mas para outra pergunta, que trata de visão de mundo, alargamento das percepções e desenvolvimento de atitudes e crenças essenciais à criatividade. Não é automático que essas práticas fomentem a resolução de problemas de forma criativa, que é o que a prova avalia (e não o repertório ou as habilidades técnicas). Alguns podem conseguir fazer a ponte, mas ela não é óbvia, requerendo consciência e intencionalidade.

Aí é que entram os fatores da escola que mais influenciam o desenvolvimento criativo. São aqueles mais próximos da rotina de aprendizado: a prática dos professores, em sala de aula. Tanto em o que o professor propõe (atividades) quanto no que ele explicitamente valoriza:

. Trabalho em grupo, geração de ideias por brainstorming, jogos, debates de ideias e de atualidades, tempo para pesquisa, escrita em diários, atividades criativas como desenhos e poesias dentro dos projetos, são recursos pedagógicos que incentivam o pensamento criativo.

. Alunos que consideram que seu professor valoriza a criatividade têm mais sucesso nas atividades de aplicação do pensamento criativo, principalmente na solução de problemas, tanto de ciências (+27%) quanto sociais (+24%).

No entanto, para fomentar o pensamento criativo não basta adotar essas práticas – há outras que devem ser abandonadas. O relatório destaca que é essencial superar as práticas pedagógicas que valorizam a resposta única, que fomentam o medo da autoridade, que desincentivam a curiosidade e o questionamento.

#5: Crenças e atitudes do pensador criativo

Na média dos países da OCDE, cerca de 7 a cada 10 estudantes acreditam que a criatividade não é exclusiva das artes, e 8 em cada 10 acreditam que é possível ser criativo em qualquer disciplina. Estudantes que têm essas crenças tendem a ter 3 pontos a mais na avaliação.

Outro aspecto interessante é sobre a mentalidade de crescimento, que significa compreender que não nascemos com uma quantidade fixa de criatividade ou inteligência, mas podemos desenvolvê-las. Apenas 46% dos estudantes acreditam que podem desenvolver sua criatividade, enquanto 57% acreditam que podem desenvolver sua inteligência. Essa crença também está associada a fatores socioeconômicos e influencia a performance dos estudantes.

Além das crenças, várias atitudes em relação ao pensamento criativo estão relacionadas ao desempenho. Entre elas estão a imaginação e o espírito de aventura, a abertura ao intelecto, a autoeficácia criativa e a abertura à arte e à experiência. Curiosidade, tomada de perspectiva e persistência, também foram identificadas como características dos pensadores criativos.[6]

A autoeficácia se refere ao quanto o estudante acredita que conseguirá ter sucesso em um desafio. Abertura ao intelecto é a atitude da pessoa aberta a se engajar em pensamento abstrato e complexo, enquanto abertura à arte e à experiência trata de abertura a novas ideias, imaginação, fantasia, estética e emoções. Já a imaginação e o espírito de aventura são essenciais à etapa divergente do pensamento criativo, que explora possibilidades.

Embora essas atitudes influenciem os resultados em pensamento criativo, é nos seus subcomponentes que a diferença aparece mais. Considerando estudantes e escolas com condições socioeconômicas semelhantes, estudantes que gostam de aprender coisas novas (abertura ao intelecto) têm 4 pontos a mais do que aqueles que não gostam; e aqueles que sentem satisfação em dar novas ideias (imaginação e espírito de aventura) pontuam 3 pontos mais alto.[7]

Imaginação e espírito de aventura é a atitude que mais influencia no resultado, seguida de abertura ao intelecto, abertura à arte e à experiência e, por último, autoeficácia criativa.

Por fim: A criatividade tende a diminuir ao longo da vida, mas nem tudo está perdido

Jovens de 15 anos tendem a se sentir menos criativos do que crianças de 10 anos.

Mas se é verdade que vamos ficando menos criativos ao longo da vida, é também verdade que existem formas de manter a criatividade em alta – basta ver as diferenças entre os países. Aí é um momento em que a comparação faz sentido: comparar para aprender, para validar hipóteses, e não apenas para classificar.

A boa notícia é que há formas simples de fomentar a criatividade no dia a dia dos adultos. Olhando agora para a criatividade no trabalho, o artigo “Resolução criativa de problemas em grupos pequenos: os efeitos do treinamento em criatividade para a geração de ideias, soluções criativas e efetividade da liderança”[8] (tradução livre) comprova que a simplicidade pode levar a excelentes resultados, desde que aplicada com intenção clara e consistência. Gerard J. Puccio e mais 5 pesquisadores conduziram um experimento com 114 grupos diferentes, buscando relacionar a educação (ou treinamento) em criatividade a: geração de ideias, criatividade das soluções e efetividade das lideranças.

O resultado: grupos em que os participantes tinham algum treinamento em solução criativa de problemas geraram significativamente mais ideias; esses grupos também foram os que geraram soluções de melhor qualidade. A pesquisa comprovou ainda que, mesmo para os grupos sem treinamento, instruções de como conduzir o processo de geração de ideias (suas diferentes fases, por exemplo) já melhoravam muito os resultados.

Além de incorporar essas práticas ao dia a dia, é essencial que os processos educativos voltados a adultos também contemplem intencionalmente o desenvolvimento do pensamento criativo. A OCDE definiu oito critérios de design para atividades educacionais que buscam desenvolver a criatividade, destacando-se três deles pela sua assertividade e aplicabilidade à aprendizagem de adultos:  

1- Lidar com problemas que possam ser vistos de diferentes perspectivas;

2- Deixar espaço para o inesperado;

3- Incluir espaço e tempo para que os alunos reflitam e deem e recebam feedback.[9]

Os desafios do mundo do trabalho em relação à criatividade não são menores do que os da educação. Mesmo negócios tradicionais, estabelecidos há décadas, estão sofrendo grande pressão de transformação. Profissões antes focadas em repetição estão sendo exigidas de inovação. A mudança não é trivial, mas há informação e método para empreendê-la.

Superar a camada mais superficial da análise dos dados (o ranking) para um olhar mais profundo pode iluminar caminhos para o desenvolvimento do pensamento criativo não apenas dos profissionais do futuro, como também dos profissionais do presente.

Referências


[1] OECD (2024), PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools, OECD Publishing, Paris.

[2] OECD (2024), “Measuring creative thinking”, in PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools, OECD Publishing, Paris. DOI: https://doi.org/10.1787/dda23012-en

[3] OECD (2024), “Creative thinking assessment results (Infographic)”, in PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools, OECD Publishing, Paris.

DOI: https://doi.org/10.1787/c6743eb9-en

[4] OECD (2024), “Student beliefs and attitudes towards creative thinking”, in PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools, OECD Publishing, Paris.

DOI: https://doi.org/10.1787/3f408249-en P. 158

[5] OECD (2024), “School environment and creative thinking”, in PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools, OECD Publishing, Paris. DOI: https://doi.org/10.1787/1f9af1ef-en . P. 181.

[6] OECD (2024), “Student beliefs and attitudes towards creative thinking”, in PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools, OECD Publishing, Paris., p. 157

[7] Idem, p. 167.

[8] Creative Problem Solving in Small Groups: The Effects of Creativity Training on Idea Generation, Solution Creativity, and Leadership Effectiveness. Gerard J. PuccioCyndi BurnettSelcuk AcarJo A. YudessMolly HolingerJohn F. Cabra. 2018. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/jocb.381

[9] OECD (2024), “School environment and creative thinking”, in PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools, OECD Publishing, Paris. DOI: https://doi.org/10.1787/1f9af1ef-en. P. 185

Imagem da capa: Gapingvoid Culture Design Group

Clara Cecchini

Clara Cecchini é especialista em aprendizagem organizacional, consultora, escritora e palestrante. Coautora do livro Aprendiz Ágil, fundadora do Clube da Escrita CC e do Centro Brasileiro de Design de Aprendizagem.

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