(“Querida, quando você crescer eu quero que você seja assertiva, independente e determinada. Mas enquanto você é criança, eu quero que você seja passiva, maleável e obediente”) (Fonte: The Culture of Schooling Cartoon Book – Shikshantar)
Dizem que uma imagem vale mais que 1.000 palavras. O que você sente ao encarar as imagens acima?
Pra mim, elas são um retrato do modelo educacional tradicional ou escolarizado. E, mesmo que você tenha se dado bem nesse sistema, é inegável que ele tenha te introjetado crenças que provavelmente você reproduz até hoje.
Antes de pensar em como aprendemos, é preciso enxergar de maneira nítida a herança da nossa cultura educacional. E essa herança é composta pelos costumes, hábitos, visões de mundo e modos de interagir que nos acostumamos a entender como “normais” na educação.
Por exemplo: talvez você pense que o aprendizado só aconteça na sala de aula ou em outros locais “pedagógicos”. Ou que a prática quase nunca deve vir antes da teoria.
São muitas as influências da fôrma escolarizante. Ivan Illich escreveu, e eu concordo com ele, que a sociedade se tornou escolarizada, ou seja, os modos de pensar, sentir e agir típicos da escola começaram a colonizar nossos corpos, mentes e relações.
Na vida adulta, a nota da prova se torna a meta da semana, o professor expositivo se torna o chefe hierárquico e a ausência do espaço para as emoções permanece a mesma.
Crenças Escolarizantes
Há muitos anos garimpo crenças e influências que nos têm colonizado. O meu último livro, “Crenças Escolarizantes: a educação heterodirigida e tradicional que ainda vive em você”, e que está disponível para download gratuito no meu site, abordo as principais.
Meu convite é para que você baixe o livro em PDF e faça uma leitura atenta das crenças apresentadas lá. Vai te tomar por volta de 20 minutos. (Eu poderia simplesmente listar todas as crenças aqui, mas a linguagem visual do livro faz muita diferença)
(Algumas das páginas do livro)
E aí, fez a leitura? Como foi pra você?
Tenho certeza que existem ainda várias outras crenças escolarizantes a serem mapeadas. Um dos principais pilares que elas ajudam a sustentar é a heterodireção – o outro controlando o que, como, com quem, quando, onde e até porque você aprende.
O educador israelense Yaacov Hecht criou uma analogia que eu considero bem interessante para ilustrar a cultura heterodirigida da maioria das escolas. Veja a imagem abaixo:
A figura curvilínea representa a totalidade dos conhecimentos da humanidade. E o quadrado representa os conhecimentos que constam nos currículos obrigatórios escolares.
Por que alguém escolheu a fórmula de Bhaskara para ser ensinada e deixou de fora um monte de outras coisas? Por que não se ensina feminismo, filosofias africanas ou permacultura, por exemplo? Todos esses saberes estão fora do quadrado. E será que eles são menos importantes? Para quem?
A cultura da heterodireção é a cultura da compulsoriedade. E a educação “quadrática” denunciada por Yaacov Hecht é uma das suas principais manifestações.
Com o tempo (e a falta de reflexão), a postura heterodirigida deixa de contaminar apenas o aprendizado e passa a penetrar outras áreas da vida.
E é assim que muitos se tornam indivíduos passivos, conformistas, sem brilho próprio, que só conseguem ter disciplina quando tem alguém mandando, alheios aos próprios sonhos, valores e necessidades e que fazem de tudo pelos outros e muito pouco para si (ou de tudo para si e muito pouco pelos outros).
Percebe?
Natureza, criação, sorte e modelo mental
(Fonte: A Arte da Aprendizagem Autodirigida – Blake Boles)
Além da heterodireção, as crenças escolarizantes contribuem decisivamente para moldar um outro aspecto: nossos modelos mentais.
Muitas pessoas acreditam que o fator “natureza” é o principal responsável pelo que alcançarão na vida. Em outras palavras: pensam que, sem uma “boa genética”, jamais conseguirão ter sucesso naquilo que desejam.
Já outras entendem que a sua criação – incluindo seu nível de privilégio em termos de recursos financeiros, classe social, lugar onde nasceu, acesso à cultura etc – é o fator que mais pesa na balança (esse pesa bastante mesmo, infelizmente).
Há quem acredite ainda que a variável “sorte” é a mais importante. Para essas pessoas, não adianta ter boa genética ou ser “bem nascido” se o universo não estiver conspirando a seu favor.
Todos os fatores acima nos influenciam. De fato, somos condicionados pela genética, moldados pela nossa criação e agraciados ou não pela sorte (ou acaso) em certos momentos.
No entanto, existe um quarto fator: modelo mental. E, diferentemente dos outros, podemos manipulá-lo intencionalmente.
As crenças escolarizantes, embora não apenas elas, influenciaram muitos de nós em direção a um modelo mental fixo.
Quem enxerga a si mesmo e o mundo dessa maneira acredita que suas habilidades são “fixas”, que sua inteligência é “fixa” e que sua capacidade de mudar é muito pequena, ou seja, não adianta muito tentar melhorar.
Uma das crenças do livro é certeira nesse ponto:
“Existem pessoas que são ‘gênios’, pessoas com uma inteligência ‘normal’ e pessoas ‘abaixo da média'”.
Isso é tão martelado que a gente acaba acreditando que é verdade, mesmo sem admitir. Felizmente não é: cada pessoa pode ser excelente à sua própria maneira, acessando as suas inteligências e interesses únicos.
Por outro lado, pessoas que cultivam um modelo mental de crescimento acreditam que podem mudar. Suas características pessoais e contextuais exercem influência, claro, mas o esforço, a repetição, a dedicação e a persistência são decisivos. Nas palavras de Carol Dweck, criadora do conceito:
“Elas entendem que ninguém – nem Mozart, Darwin ou Michael Jordan – pode ter alcançado grandes feitos na vida sem ter se dedicado apaixonadamente por anos a determinada prática ou caminho de aprendizagem”.
Você pode estar pensando: “mas a escola até incentiva o modelo mental de crescimento, pois você pode tirar notas melhores caso se esforce para tanto”. Isso é o maior objetivo da escola, inclusive: todos tirarem 10.
O problema é que a coisa que mais impulsiona as pessoas a adotarem um modelo mental de crescimento está praticamente ausente na escola: a motivação intrínseca (que é o nome técnico para A Sensação de Fazer O Que Realmente Queremos Fazer).
Por conta de tudo isso, assino embaixo da última frase do Blake Boles em seu livro A Arte da Aprendizagem Autodirigida:
“Pare de focar nas partes incontroláveis da sua vida – natureza, criação e sorte – e comece a trabalhar duro para desenvolver um modelo mental de crescimento. Essa é a verdadeira arte da aprendizagem autodirigida”.
Referências
- Ebook “The Culture of Schooling Cartoon Book” – Shikshantar Institute (download gratuito aqui)
– Livro “Crenças escolarizantes: a educação heterodirigida e tradicional que ainda vive em você” (disponível para download gratuito neste link)
– Livro “Democratic Education: a beginning of a story”, do Yaacov Hecht (já existe uma versão oficial traduzida para o português, link aqui)
– Livro “A Arte da Aprendizagem Autodirigida”, do Blake Boles (disponível para download gratuito neste link)
Ilustração da capa: Adrian Tomine para Yasujiro Ozu
Desde que descobri esse trabalho brilhante e esclarecedor que desenvolves, tornei- me leitora e acompanhante desse trabalho.
Por mais que, nós – cidadãos comuns- possamos, por algum momento, nos refletir e concluir que de fato nosso tempo de escolarização poderia ter nos desenvolvido melhor e, com isso, poderíamos ter ido mais longe, é como um flash, voltamos ao conformismo. Sem criticidade e luta por melhorias às futuras gerações não se falarem como nós.
Ainda bem que há vocês nesse contexto, pois pelos seus pensamentos intelecto e trabalhos dedicados, certamente ajuda o homem comum nessa mobilização.
Fiquei muito contente em receber o email, comunicando o lançamento do novo artigo. É uma sensação de que a minha leitura e acompanhamento é importante- desperta- nós o senso de pertencimento e valorização.
Obrigada
O modelo “escolarizado” surgiu para atender a um modelo de sociedade, à época, que era a revolução industrial. Não havia outro modelo para atender a uma enorme quantidade de pessoas (a população em massa) e, levar o “modelo” industrial para as escolas, foi uma maneira viável para atender ao grande número de pessoas frequentando as salas de aula. Esse modelo educacional, muito novo (existe apenas há 200 anos)e chamado erroneamente de educação tradicional, já que o nome correto é educação positivista, foi fundamental para o avanço, no século XX, de vários produtos, serviços, profissões e inclusive para o aumento da expectativa de vida. Quanto ao motivo de se ensinar a fórmula de Báskhara, há várias respostas, dentre elas: desenvolver o raciocínio lógico, o que é premissa para várias outras aprendizagens. A neurociência (e aqui ressalto o trabalho incrível da neurocientista Carla Tieppo) ressalta a importância de vários conteúdos não apenas porque ” ele é legal”, mas para o desenvolvimento do cérebro.
A grande questão é a velocidade com que o mundo muda e o motivo pelo qual a Educação escolar não consegue acompanhar as mudanças do mundo. Mesmo que muito devagar, o modelo mental de crescimento começa sim a se fazer presente nas escolas, principalmente com a implementação da BNCC e de seus eixos formativos, como empreendedorismo. A Educação socioemocional já é protagonista em muitas instituições. Sim, ainda estamos no início, mas isso tudo está acontecendo dentro do ambiente escolarizado e da educação formal. Como uma entusiasta da educacão, entendo que o termo “crença escolarizante” pode reforçar a polarização da educação. Estamos em um momento de transição onde é urgente, sim, novos modelos de aprendizagem, mas tendo um olhar cuidadoso sobre muitos aspectos importantes da educação vigente do século XX junto à novas e importantes contribuições dos últimos 20 anos.