Você já parou para pensar que, praticamente todas as cidades do mundo, desde os primórdios da humanidade, foram e continuam sendo criadas e pensadas por homens?
Do planejamento urbano ao desenho dos edifícios, dos transportes públicos às cadeiras – as mulheres pouco fizeram parte do processo de criação de tudo que nos rodeia.
Há e sempre existiram mulheres arquitetas, planejadoras e políticas urbanas inspiradoras, mas em todo o mundo, as profissões de ambiente construído – e em particular seus escalões superiores – permanecem fortemente dominadas por homens, mais do que outras esferas, como educação ou saúde.
A primeira engenheira do Brasil, Enedina Marques, só se formou em 1917, há pouco mais de 100 anos, e era uma mulher negra que sofreu diversos preconceitos para atuar na área.
Hoje, 64% dos arquitetos formados no Brasil são mulheres. Na Engenharia, houve um aumento de 42% no número de mulheres registradas no CREA desde 2016. Mas, onde estão esses reflexos na sociedade brasileira?
Quando criamos alguma coisa colocamos a nossa visão de mundo no que fazemos. Mesmo que a metodologia de um projeto seja muito inovadora, ainda assim, podem acontecer problemas graves pela falta de olhares múltiplos.
Praticamente, tudo o que nos cerca teve uma visão branca e, muitas vezes, masculina. Um bom exemplo são os cintos de segurança nos carros. Se as mulheres não estiverem presentes na equipe de design, e as necessidades forem traduzidas apenas por meio da experiência masculina, é mais fácil ignorar contextos como, por exemplo, a gravidez: 62% das mulheres grávidas a partir do terceiro trimestre têm dificuldade com os cintos de segurança. Mulheres também são, em média, mais baixas do que os homens, o que devido aos designs dos carros atuais, leva a taxas de ferimentos e mortes dramaticamente mais altas para mulheres em acidentes. Essas disparidades no design dos carros seriam menores ou não existiriam se os designs também tivessem lentes femininas.
O que ficou de fora nesse processo de criação? Seria diferente se essas equipes fossem multigeracionais, multidisciplinares e diversas? Como seriam nossos designs?
Em 1999, autoridades em Viena, Áustria, perguntaram aos moradores do nono distrito da cidade, com que frequência e por que eles usavam o transporte público. A maioria dos homens respondeu ao questionário em menos de cinco minutos. Já as mulheres não paravam de escrever. A maioria deles relatou usar carro ou transporte público duas vezes por dia – para trabalhar de manhã e voltar para casa à noite. As mulheres, por outro lado, disseram que costumavam usar a rede de calçadas, linhas de ônibus, metrô e bondes com mais frequência e por uma miríade de razões.
Com esse mapeamento, os planejadores urbanos de Viena elaboraram um plano para melhorar a mobilidade dos pedestres e o acesso ao transporte público. Ampliaram a iluminação para que as caminhadas noturnas fossem mais seguras para as mulheres. As calçadas também foram alargadas.
Entender como homens e mulheres usavam o transporte público foi importante em Viena. Fazia parte de um projeto que visava levar o gênero em consideração nas políticas públicas. Chamaram isso de Integração de Gênero.
Viena adotou a Integração de gênero em vários setores da administração municipal, inclusive em políticas de educação e saúde. Mas o maior impacto tem sido no campo do planejamento urbano. Mais de sessenta projetos-piloto foram realizados até o momento. A incorporação da perspectiva de gênero se tornou uma força que está literalmente remodelando a cidade.
Já em Barcelona, um coletivo de arquitetas chamado Punt6 busca promover estudos sobre espaços urbanos para mulheres. Em suas pesquisas, o coletivo observou que mulheres andam muito mais nas ruas do que os homens (muitas vezes, carregando grandes sacolas de mercado e carrinhos de bebês). Elas usam muito mais o transporte público, utilizam os banheiros com mais frequência e fazem muito mais paradas para descansar do que homens.
O coletivo observou que a mobilidade da cidade foi desenhada sob uma visão masculina que excluía a caminhadas das mulheres tornando suas vidas mais complicadas. Além disso, 60% de todo o espaço público da cidade era reservado a carros com vias e estacionamentos, sendo esses veículos praticamente de uso masculino.
O trabalho do coletivo resultou em um documento direcionado à Prefeitura da cidade com dicas e roteiros de como melhorar o espaço urbano sob a ótica feminina:
1. Mais banheiros: maiores, mais seguros e mais frequentes
2. Playfair: espaços para promoção de esportes e quadras para mulheres.
3. Maior movimento: Ampliar calçadas e acessos para caminhadas e transporte público em áreas de grande circulação como centros urbanos.
4. Kill the car: priorizar a caminhada das mulheres nas calçadas e eliminar estacionamentos em ruas de grande movimento.
5. Mais bancos para sentar: mulheres sentam mais que homens porque estão sempre com crianças, compras e andam mais a pé.
6. Conscientização sobre assédio: por meio de aplicativos de rastreamento e guichês de informação e denúncias.
Em um ensaio clássico de 1980, intitulado “O que seria uma cidade não sexista?”, a urbanista americana Dolores Hayden defendeu cidades que “transcendam as definições tradicionais de casa, bairro, cidade e local de trabalho”. Segundo Hayden, essa perspectiva é massacrante para as mulheres que sofrem com inúmeros deslocamentos. A configuração interna dos ambientes domésticos [nossos lares] também não favorece a mulher que na grande maioria dos lares cumpre jornada dupla.
Para Dolores, a setorização das atividades nas cidades e dentro das casas só contribui para o excesso de trabalho da mulher. A urbanista propôs modelos onde atividades domésticas como cuidado com crianças, cozinhas e áreas de serviço fossem comunitárias e estivessem fora do espaço de moradia. Isso poderia levar a comunidade a colaborar entre si nas tarefas do lar e também para que homens observassem a dinâmica espacial acontecendo, e começassem a entender que atividades domésticas não são apenas pertencentes à dinâmica feminina.
Diminuir as lacunas existentes entre público e privado seria um dos caminhos propostos por Dolores para melhorar as dinâmicas urbanas criando um mundo mais convidativo e menos massacrante para mulheres.
Essas dinâmicas lembram a organização das aldeias indígenas e de muitas outras organizações de cidades ancestrais onde cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos são tarefas de todos que convivem em comunidades, ajudando-se mutuamente: das relações de trabalho às relações domésticas e afetivas.
Será que uma casa, uma cidade ou um bairro, inteiramente pensado por mulheres, levaria a um sexismo e objetificação tão intensos quanto as estruturas que nos rodeiam hoje?
Quando projetamos para outras pessoas, projetamos nossa interpretação de suas necessidades, e quanto mais divergente for nossa experiência e entendimento em relação à delas, mais provável que estejamos errados. Isso acontece quando um homem projeta para milhares de mulheres.
Tudo o que ouvimos, observamos e interagimos é processado por meio dos filtros de nossos próprios preconceitos. Nossa interpretação é baseada em quem verdadeiramente somos, e não em quem as pessoas realmente são.
Precisamos de vozes, perspectivas e lideranças femininas. Quanto antes entendermos isso, poderemos começar a trabalhar para projetar um mundo verdadeiramente inclusivo.