Estamos trancafiados em nossas casas há mais de um mês, algumas cidades do mundo há quase dois meses. O cenário global mudou, ruas ficaram desertas, destinos turísticos abandonados, praças desocupadas, a natureza parece finalmente respirar em pleno Antropoceno.
Pouco se sabe sobre o futuro, sobre o novo normal, ou pós-normal como prefiro chamar. Fomos submersos por uma pandemia, e sem mesmo conseguir subir para tomar um pouco de ar, várias outras ondas nos acertaram. Em meio a rodopios, tentando estabilizar o corpo e evitando bater as costas na barreira de coral em águas rasas, também nos acertaram a revolução digital, face mais óbvia dos resultados pós-normais. Não foram poucos, pra minha surpresa, que se depararam com novas formas de trabalho, vídeo-conferências, plataformas digitais de gestão de projetos, diminuição de escritórios, tudo aquilo que já vinha sendo discutido e posto em prática há pelo menos 5 anos (numa perspectiva conservadora) atropelou os desavisados. Muitos agora também sentem o prazer de fazer reuniões importantes de pijama. Flexibilização de horários, trabalho remoto, que mundo novo se descortina a nossa frente diriam os mais tradicionais para quem o Vale do Silício não passasse talvez de uma região da Califórnia como qualquer outra, bem sem graça diga-se de passagem.
Ou seja, a pandemia nos esfregou na cara decisões que deveriam ter sido tomadas há tempos, ou pelo menos levadas em consideração. Até agora nada disso é novidade.
Igualmente não novidade é a ideia de se pensar em posicionamento de cidades e lugares, criando vetores de resiliência econômica (e agora sanitária também) conhecido como place branding, mais uma das tarefas renegadas ao famoso: “Na volta a gente compra”.
Muito provavelmente você nunca ouviu falar desse conceito. Não se preocupe, no caso do place branding você faz parte de 99,9% da população mundial. Quanto ao 0,1% que sobra, essa fração se divide em achar que place branding é marketing, design e publicidade, afinal, ter branding no nome não ajuda em nada, convenhamos.
O fato é que a abordagem existe há pelo menos 20 anos, ainda que pouco difundida como o DataCaio acabou de apresentar. Você que leu “branding” no nome deve estar se perguntando qual a relevância desse texto em meio a uma crise sanitária sem precedentes na história contemporânea. Não seria hora de pensar em água corrente, saneamento e hospitais para todos? Que mané place o que…?
Sim, você tem razão…em parte.
Como não pretendo ficar trancado em casa para sempre, muito menos vendo pessoas morrerem aos montes todos os dias, imagino, torço, se fosse religioso rezaria, pra um dia o pesadelo acabar, o quanto antes diga-se. E é justamente nessa perspectiva de pós-pandemia que escrevo esse texto. Imagine os desafios das cidades e países na retomada após meses estagnados, sofrendo prejuízos incalculáveis (de vidas principalmente) e diante de uma realidade que não se conhece.
O mundo inteiro foi nivelado, uns mais afetados, outros menos, mas o fato é que como poucas vezes na história da humanidade, o mundo todo está, ainda que com nuances, na mesma situação, no mesmo barco, sem motor e principalmente sem GPS. Diante disso fica a pergunta de um milhão de dólares: O que fazer quando tudo isso passar?
A resposta parte de um pressuposto pouco confortável, não seremos mais os mesmos. Parece que quanto a isso não existe muita dúvida; não sabemos ao certo como seremos mas sabemos que tudo será diferente. O mundo já passou por outras crises, piores até, e se recuperou, mas a sociedade sempre passou por transformações crise após crise. Também há quem diga que essa pandemia não será a última, e que os intervalos entre elas serão menores. O que podemos aprender com isso?
Abuso aqui das perguntas porque, por enquanto as temos em abundância, exatamente na situação oposta as respostas. Podemos aprender que é preciso preparar-se para os futuros problemas, e que, esses futuros problemas serão, certamente, diferentes dos problemas anteriores e com isso, as soluções anteriores se mostrarão ineficientes.
O mundo, ou grande parte dele, sempre teve aversão ao risco. O medo da incerteza dispara o dilema instintivo: lutar ou fugir. A Covid-19 nos mostrou que a segunda opção é inválida. Pela primeira vez na história não há alternativa, não há jato particular, helicóptero executivo, iate luxuoso que burlem quarentenas ou ainda, nos levem a um destino seguro. Simplesmente não existe destino seguro, em nenhum lugar do mundo, nesse começo de 2020.
Precisamos começar a pensar em mecanismos mais eficientes na luta contra futuras crises, ou se preferirem, sistemas antifrágeis. Antifragilidade é a capacidade que vai além da resiliência, e ao invés de retornar a condição anterior ao evento negativo, aprende com ele, se readapta, e, essa é a parte interessante do conceito: melhora, evolui. Nassim Taleb quando cria o termo, o compara ao processo de investigação presente nos órgãos de aviação civil em todo o mundo. A única certeza que se tem ao presenciar um acidente de avião é que aviões continuarão a sofrer acidentes, mas não pelo mesmo motivo, ou seja, a cada acidente aéreo, voar fica mais seguro. O sistema se apropria da informação e evolui, progressivamente.
Venho trabalhando há alguns anos na aplicação desse conceito para as cidades, no que chamei de “cidade antifrágil”.
Durante a pandemia foi impossível não pensar o que será dos lugares, das cidades, dos países, e como o place branding e a ideia de “cidade antifrágil” poderia ajudar nesse momento tão crítico. Depois de um bom período de negação (notoriamente a primeira etapa de qualquer crise) entendo que esse, pelos piores motivos possíveis, é finalmente o momento dessa discussão. Pela primeira vez ela será vital, necessária, ou entendida como necessária e, mais do que isso, não será confundida com nenhuma outra expertise, já que agora, discussões não podem entregar uma solução para esse problema enfrentado pelos lugares, que é, em última instância, muito maior do que uma crise de percepção.
Os lugares precisarão reinventar-se, reencontrar-se. Identidade e vocação nunca foram tão importantes. Entender o que as pessoas pensam, como elas se comportam nesse mundo pós-normal é vital. Mais do que isso, envolvê-las no processo é essencial.
Pensando nisso elenquei 6 pontos a serem considerados pelas cidades e países.
1- Transparência é essencial
Uma das coisas que aprendemos com a pandemia é a necessidade de informações claras e coesas. Informações desencontradas, além de criar mais incertezas, contribuirão para uma reputação negativa do lugar, interna e externamente.
A tecnologia, poderosa aliada das cidades, países e governos em geral, será ainda mais importante no pós-normal. Trocamos parte de nossa privacidade por segurança depois do ataque as torres gêmeas em 2001, agora abriremos mão de um pouco mais de privacidade em nome da saúde. É essencial termos certeza do que será feito com nossos dados, outrora privados.
Não existe solução tecnológica viável sem existir transparência nos processos.
2- As pessoas são atores e não meros espectadores
Outra lição obtida no pós-normal é que os cidadãos não são meros coadjuvantes. Enquanto grande parte dos fracassos ocorreram diante de decisões governamentais desastradas, exemplos de sucesso emergiram da comunidade. Redes de apoio foram criadas, movimentos solidários se espalharam pelo mundo.
O detalhe desse momento histórico que vivemos é que esse movimento solidário não se deu na esfera pública, na verdade vimos uma verdadeira guerra por respiradores e máscaras. Ela se deu na esfera das comunidades. Nunca foi tão evidente a necessidade de inclusão das pessoas no processo decisório. Comunidades fortes, com sólido senso de pertencimento, saíram-se melhor do que comunidades onde o senso de pertencimento simplesmente não existia.
Dar voz as pessoas é, em grande parte, contribuir na criação de comunidades fortes, mas ao mesmo tempo não basta só escutar, é preciso engajar, colaborar, cocriar.
Nesse ponto, esse item se soma ao item 1, transparência é essencial, e a tecnologia é o caminho para criação de ferramentas mais amigáveis e eficientes para a gestão das comunidades, sejam elas físicas ou virtuais, se é que é possível separá-las a essa altura.
3- Identidade e vocação farão a diferença
Se durante anos venho falando da importância desses elementos no fortalecimento dos lugares, a pandemia tratou de evidenciar essa prioridade. As cidades e países foram forçadamente comoditizados. Hoje, somos todos mais ou menos iguais. Ruas vazias, cidades sem vida, medo generalizado, incertezas a respeito do futuro.
Mais do que nunca os lugares precisarão buscar sua identidade, para que, através dela, possam retomar sua posição diante do pós-normal. Será preciso mais do que nunca saber quem se é e o que se pode oferecer. Todos buscarão novos critérios como segurança sanitária, e claro, é dever de todos os lugares prover essa segurança, esse é o esperado, mas, o que mais?
Voltada a nova normalidade, os lugares estarão ávidos para retomar o tempo perdido, atrair turistas, investimentos, talentos, tudo ao mesmo tempo, o mundo todo. Esse fluxo enorme de oferta gerará uma grande incerteza, qual lugar escolher? Ou pior, será que quero escolher o que quer que seja e arriscar sair da segurança da minha casa?
Essa é a hora da diferenciação, e portanto, da identidade e vocação. Quem tiver isso mais claro sairá na frente, e o momento de pensar isso é enquanto os mercados estão fechados. Claro que salvar vidas é prioridade, pensar nas estratégias de pós-normal é ação paralela, porém essencial para a retomada pós-crise. Antes que alguém me acuse de insensível, é importante entender que, novas fontes, ou antigas fontes de receita reestruturadas contribuem e muito no estado de bem estar social, aliás, elas servem pra isso mesmo.
4- Entender a desterritorialização é urgente
Tão importante quanto preparar os lugares do ponto de vista físico, será entender que os lugares, como nunca antes, tornaram-se também digitais. O mesmo Tsunami da revolução digital que afogou o mundo corporativo, também afogou os lugares. Como nunca antes, lugares se tornaram ideias, e se esticarmos a corda, culturas.
É possível experimentar a Finlândia de São Paulo, a Alemanha do Rio de Janeiro, e num caso real, experimentar as sempre brilhantes Ilhas Faroe, de qualquer lugar do mundo, controlando os moradores, que, ao usarem câmeras nas cabeças se comportam como se estivéssemos em um video game. Ou seja, se não podemos ir aos lugares, teremos que levar os lugares até as pessoas.
Os lugares terão que lidar com essa nova realidade. Chinatowns serão coisa do passado, não precisaremos mais do território, ou melhor, talvez as cidades não devam depender tanto assim de seu hardware nesse futuro incerto.
5- Por mais incerto que seja é preciso uma visão de futuro
A única certeza que temos é que a Incerteza é o termo mais usado atualmente. Ainda que não possamos prever o futuro, por mais que tentemos, é necessário, ao menos, termos uma visão. Uma visão de lugar e, sim, uma visão de futuro.
É preciso começar pelo mais fácil, ou seja, uma visão do “presente”que envolva a identidade e claro, a colaboração. Visões são sempre compartilhadas, e claro, como já entendemos, cocriadas.
A partir da visão compartilhada é possível projetarmos nossa visão de futuro, o que proporemos para os próximos anos, décadas. Uma visão de futuro impossível de esquecer nos dias atuais é a do pequeno país da antiga república soviética, a Estônia, mas como já falei dela aqui mesmo uma centena de vezes, usarei um outro exemplo, quase tão bom quanto, CAAS, ou City as a Service, que aborda a cidade de Helsinki como um serviço. Ainda que a ação, super bem sucedida, tenha sido uma campanha de marketing, para atrair talentos, a ideia pode tomar uma proporção ainda mais surpreendente no mundo pós-normal.
Se minha cidade é um serviço, será que preciso estar necessariamente no meu território para oferecê-lo? Mas claro, para sabermos que serviço é esse devemos voltar a todas os itens anteriores, em especial o número 3.
6- Processos e sistemas menos frágeis
E o gran finale da nossa lista é a antifragilidade, claro, no fundo a ideia que permeia todas as outras ideias. É preciso pensar em sistemas, plataformas, ferramentas mais amigáveis e dinâmicas, lembrando que segundo vários especialistas, essa pandemia não será a última.
É preciso entender, e não se trata mais de clarevidência, que as novas ameaças virão do futuro, e portanto, as ferramentas do passado não serão mais capazes de combatê-las.
Entender que não temos as respostas e, portanto, nem soluções, é a melhor atitude a ter nesse reboot pelo qual o mundo foi submetido.
“ipse se nihil scire id unum sciat“, o socrático “só sei que nada sei” nunca soou tão atual.
Crédito da imagem da capa: Lee Kyutae, aka Kokooma.
Caio, excelente reflexão. Eu venho me esforçado em pensar como agir para este futuro, que é agora! Quero muito atuar e ser todas essas inovações! Mas confesso que estou meio perdida ensaboe exatamente o que fazer ou como começar. Quero muito contribuir para termos chance de ao menos poder escolher outras maneiras de viver a vida é atuar no mundo, mas ainda não consegui encontrar em mim uma ação pessoal e concreta, sabe?
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[…] O portal O Futuro das Coisas publicou um artigo interessante chamado “Cidades e Lugares no Mundo Pós-Normal“, de Caio Esteves, especialista em Place Branding e fundador da agência Place for Us, onde indica seis diretrizes para as cidades, que vão precisar se repensar e se reposicionar, para criarem novos vetores de resiliência e antifragilidade econômica e sanitária numa realidade pós-pandemia que não se conhece e cujas soluções para problemas que já conhecemos não servirão mais. Os lugares precisarão reinventar-se, reinventar-se e descobrir novas vocações. Leia aqui . […]
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