As cidades voltam a ganhar evidência no mundo. Diante de tantas restrições, onde o distanciamento social foi mandatório (e continua sendo em alguns locais), elas estão voltando ao normal. Muitas perderam o vigor das pessoas circulando, algumas estão mais sujas e deterioradas, com lojas, comércio e museus fechados, falência e desemprego, turismo afetado, e mais moradores de rua, trazendo uma maior desigualdade social. Diante esse cenário, eu trago a urgência de um novo olhar para a cidade, pois as mudanças impostas pela pandemia e outras que virão, trazem muitas questões impactando (para pior?) a vida de cada pessoa.
Quando o mundo está mudando drasticamente, precisamos repensar o papel das cidades e de seus recursos e como o planejamento funciona” – Charles Landry, em The Creative City: A Toolkit for Urban Innovators (“Cidades criativas: um kit de ferramentas para inovadores urbanos”).
Em tempos de crise, é necessário repensar o lugar em formatos inovadores, mas ao mesmo tempo considerando a identidade de cada cidade. A importância do lugar é antiga. Os gregos acreditavam que o lugar era regido por Deuses, chamado genius loci, ou o “espírito do lugar”. A expressão significa o espírito ou o talento local, de cada lugar como sendo único. Este conceito está no place branding (marca do lugar), que estuda o lugar a partir dos pontos fortes, que não são apenas positivos, mas também distintos e confiáveis, ou seja, no talento, na identidade do local. A importância do place branding aplicado às cidades está nos resultados: interesse das pessoas pela cidade, experiências inesquecíveis, bem-estar, felicidade, e uma estrutura trazendo desenvolvimento socioeconômico, afirma o Europe Place Marketing Institute.
Como exemplo atual, temos a Nova Zelândia. Diante de medidas assertivas em relação ao enfrentamento da pandemia e o reconhecimento mundial, o país apresentou uma campanha de reconexão com o mundo, chamada Journey of Reflection (“Uma jornada de Reflexão”). A campanha foi realizada a partir de um estudo sobre os valores que realmente importam, e foram resgatados na origem da Nova Zelândia, na cultura Mãori, nos povos originários da Polinésia que chegaram à Nova Zelândia por volta de 1320. A campanha fala sobre kaitiakitanga (proteger e cuidar das pessoas e lugares), manaaki manuhiri (cuidar dos visitantes), e whanaungatanga (tratar às outras pessoas como parte da família). Ou seja, a Nova Zelândia é de fato, um lugar de segurança, cuidado e afeto com os seus moradores e turistas.
No Brasil, a nossa identidade está na diversidade cultural presente na música, na arte, na gastronomia, no design, na moda, no artesanato e em belezas naturais em abundância. Nosso povo é reconhecido mundo afora como detentor de energia vital na alegria de viver, na simplicidade cotidiana, na afetividade das relações, na criatividade, aponta o livro: DNA Brasil, Tendências e Conceitos Emergentes para as Cinco Regiões Brasileiras.
A criatividade é tão estratégica para o desenvolvimento urbano, que a Unesco criou a Rede de Cidades Criativas. Ao todo são 246 cidades no mundo que estão integradas nos seguinte valores: importância da identidade local, desenvolver e compartilhar experiências, fortalecer a participação cultural, desenvolver vínculos que os associem a setores públicos, privados, sociedade civil, e integrar a cultura às políticas de desenvolvimento urbano sustentável. No Brasil, temos como cidades criativas reconhecidas pela UNESCO: Belém, Florianópolis, Paraty e Belo Horizonte (Gastronomia); Curitiba, Brasília e Fortaleza (Design); João Pessoa (Artesanato e artes folclóricas); Salvador (Música); e Santos (Cinema).
O Brasil, em um momento de recessão e mudanças, pode usar a identidade de cada cidade, aproveitando o potencial de cada pessoa em estratégias criativas. No entanto, o lugar (país, estado, cidade, rua, praça ou jardim) diz respeito a todo mundo. Por isso, precisa ser gerido em formatos integrados e colaborativos, convocando a participação do segmento público, privado e sociedade civil. Além disso, incluir a inovação dentro das cidades está nas diferentes narrativas, inclusive se beneficiando do cruzamento de dados. Por exemplo, como traduzir um dia de sol em uma música? Uma música que transmita a sensação de estar no Rio de Janeiro e no Brasil?
A empresa Cisco junto com a prefeitura, produziram o aplicativo “Ouça a Cidade” que fez parte do projeto de revitalização da área portuária do Rio de Janeiro. O aplicativo decodifica os dados da cidade (trânsito, mobilidade urbana, tempo, engajamento nas redes sociais e conectividade) transformando-os em melodias originais, e disponíveis para os usuários. Outro exemplo, em São Paulo, é a exposição DriveThru.Art, que no formato drive-thru, aproveitou o espaço de um galpão não utilizado, para apresentar 18 obras de diferentes artistas.
O intuito é oferecer um presente à cidade, fomentando a cultura por meio de uma ação que corresponde ao interesse da população em voltar a experimentar formas físicas de entretenimento.” – DriveThru.Art.
E para as cidades que ainda não identificaram a sua criatividade? O arquiteto Jaime Lerner acredita que embora nem todas as cidades sejam criativas, todas têm potencial. Autor de Acupuntura Urbana, Lerner explica que, da mesma forma que na abordagem médica-cirúrgica, seria um toque em um ponto-chave em alguma área que tenha sido negligenciada: pode ser uma intervenção na identidade cultural ou, na relação com o ambiente natural, ou nas atividades econômicas, produzindo reações em cadeias positivas, aprimorando todo o entorno. Neste conceito, o Brasil pode mapear, exemplos de sucesso em lugares de desigualdade social. Em Recife por exemplo, o Porto Digital – Parque Tecnológico é um conjunto de empresas que em 2019 faturou R$ 2,3 bilhões. São 330 empresas e instituições com mais de 10.000 pessoas empregadas, sendo aproximadamente 800 empreendedores formados por incubadoras de empresas, aceleradoras de negócios, institutos de pesquisa, representações governamentais, e uma instituição de ensino superior, o C.E.S.A.R School, que foi considerada duas vezes a melhor instituição de Ciência e Tecnologia do país. Lá, ainda desenvolvem projetos de capacitação para jovens e profissionais de empresas localizadas no território do Porto Digital, fornecendo ferramentas para promover a inclusão social da comunidade, e em seu entorno.
Em um mundo globalizado e conectado, em que tudo pode ser padronizado, as estratégias de place branding são urgentes na diferenciação do lugar, trazendo qualidade de vida, trabalho, inclusão social, e felicidade. Após os confinamentos, já estamos voltando para as cidades em experiências e vivencias cotidianas. O Brasil tem um potencial criativo reconhecido mundialmente, mas sozinhos não transformaremos as nossas cidades em lugares melhores e inspiradores. É necessário acreditar na nossa potência.
Em 2019, o Brasil foi reconhecido pela prestigiada revista Conde Nast Traveler como um dos 40 lugares mais bonitos do mundo. “Não há escassez para tanto esplendor no Brasil, esteja você abaixo das cataratas em forma de ferradura de Iguaçu, andando de caiaque pela incomparável Amazônia ou olhando para o pico do Corcovado, no Rio de Janeiro. Fernando de Noronha, um arquipélago da costa nordeste, apresenta algumas das melhores praias do país. O Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses possui dunas de areia branca incrivelmente justapostas a lagoas azul-turquesa. Depois, há a biodiversidade – a maior biodiversidade do planeta, para ser exato”, escreveu a revista.
O Brasil é cercado de abundância natural e também de pessoas criativas; do acarajé, na Bahia, aos pratos de Alex Atala, em São Paulo; do Carimbó ou Tecnobrega, no Pará, ao rock da Banda Skank de Minas Gerais até o Funk ritmo Brasileiro, mais ouvido no exterior; da Renda de Bilro de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, ao design de moda apresentado na São Paulo Fashion Week; da fotógrafa Luiza Door até o grafite da artista Nina Pondolfo. E também, temos projetos inspiradores como a Banca Curva, espaço dedicado a expor, vender e compartilhar a produção de artistas independentes. Em Salvador, o projeto Cine Janela, que se diz uma “rede colaborativa e voluntária de projeção de afetos cinematográficos durante a quarentena”. O sucesso foi tanto que foi expandido para São Paulo e Vitória do Espírito Santo.
No entanto, apesar de tanta riqueza cultural e de ideias criativas em novos negócios, ainda temos o “complexo de vira-lata”, expressão criada por Nelson Rodrigues, para explicar o nosso complexo de inferioridade perante o mundo. Temos dificuldade em reconhecer o nosso próprio talento. Segundo o livro DNA Brasil, o genius loci do Brasil é a nossa principal vantagem competitiva, mas infelizmente esses recursos ainda não são canalizados para que sejam utilizados de forma estratégica em um pensamento no futuro. O que se encontra é uma burocracia fomentada pelo governo e empresas que incentivam pouco o talento brasileiro. Segundo o livro, o que nos falta, como se diz na Itália, está na frase: “lançar o coração além do obstáculo”. Jayme Lerner diz que podemos mudar, dependendo da mobilidade e esforços dos seus cidadãos em conjunto, em todas as esferas, focando no potencial de transformação e nessas perguntas: qual é o seu problema? Qual é o seu sonho?
Cortesia da imagem da capa: büsra köroglu