Você sabia que, em quase todo o mundo, pessoas constroem diariamente suas casas sem ajuda de arquitetos e engenheiros?
Comum nas regiões periféricas do Brasil, a autoconstrução é uma opção de quem deseja ter sua casa própria personalizada, sem enfrentar burocracias indesejadas ou dívidas de longo prazo. No entanto, a escolha por construir a própria residência sem o apoio técnico de engenheiros e arquitetos frequentemente é acompanhada pela falta de informação, o que pode acarretar em irregularidades, má qualidade da construção e riscos para os moradores.
A autoconstrução é, na maioria das vezes, uma solução precária, que resulta do contexto socioeconômico brasileiro, de concentração de renda e falta de alternativas no mercado formal de moradias.
As conclusões são de uma pesquisa desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, pela arquiteta Renata Davi, que estudou a prática da autoconstrução no município de Vargem Grande Paulista, na Região Metropolitana de São Paulo. Na maioria dos casos, os moradores afirmam não ter pensado em outras alternativas para a casa própria, estando a autoconstrução sempre em seus planos.
Na pesquisa, Renata constatou que, embora algumas construções pudessem ter espaços generosos dedicados a alguns cômodos, algumas delas apresentavam problemas depois de prontas. Ela conta que, durante as entrevistas, alguns moradores mostraram reconhecer estas falhas. Em geral, as casas são construídas sem respeitar as normas oficiais para recuos e para dimensionamento de ambientes, iluminação e ventilação.
Embora desde 2008 seja assegurada por lei federal a assistência técnica pública e gratuita, prestada pelos municípios às famílias de baixa renda para o projeto e construção de moradias, este direito é pouco conhecido entre os cidadãos.
Recentemente no Rio de Janeiro, um edifício de 5 pavimentos construído por um grupo de milícias e vendido no mercado negro da periferia carioca, desabou matando 5 pessoas. A construção chegou a ser interditada 2 vezes, mas como controlar uma região onde a fiscalização é difícil e onerosa?
Em HongKong, a comunidade de Kowloon, desmontada pelo governo chinês em 1993, chegou a abrigar 50 mil habitantes com edifícios de 4o andares, numa organização de cidade autossustentável gerida sem os olhos do governo e formada basicamente por autoconstrução.
Antiga Kowloon em Hong Kong (Foto: Greg Girard)
Cidades como Rio de Janeiro, Egito, Bangkok, Shangai, Istambul, Nairóbi e Caracas compartilham histórias parecidas de construções irregulares que se amontoam em cidades informais.
Segundo o arquiteto e professor do MIT, Carlo Ratti , apenas 1 em cada 50 construções criadas no mundo hoje são desenhadas e geridas por arquitetos ou engenheiros.
Onde está o problema?
Uma prática comum dessas comunidades são os famosos puxadinhos. Famílias constroem laje sobre laje em casas muito pequenas e alugam e negociam entre pessoas locais sem processos legais de uso do solo urbano.
O poder público não consegue controlar já que a maioria dessas comunidades é de difícil acesso e quase 100% autogerida. Arquitetos não fazem parte do processo, pois para essas comunidades eles praticamente inexistem.
Arquitetos e engenheiros são totalmente desconhecidos por essas pessoas e isso foi comprovado numa pesquisa do CAU de 2015, onde 85% das pessoas que já construíram ou reformaram no Brasil afirmaram não ter conhecimento do trabalho de arquitetos.
Será que o problema é do governo que não fiscaliza e estimula a inserção de profissionais nas comunidades? Ou da própria classe que se limitou às práticas euro centristas de projeto formando uma bolha que projeta para as elites?
Talvez o problema esteja nas duas opções. E como mudar? Ou será que tem que ser mudado?
Autoconstrução acompanhada
Ao invés de brigar contra à autoconstrução, arquitetos e ONGS mundo afora tem revertido o processo chamando essas pessoas para construírem suas casas num processo colaborativo e comunitário ao lado de profissionais.
Se não pode vencê-los, junte-se a eles.” – Autor Desconhecido
Na Índia, Carlo Ratti do MIT, desenvolveu um projeto habitacional pré-fabricado de baixo custo, encomendado pela empresa indiana sem fins lucrativos WeRise, com o objetivo de educar e capacitar as comunidades locais para que pudessem assumir o processo de construção de suas próprias casas. O sistema construtivo desenvolvido pelo arquiteto italiano está sendo testado em uma vila nos arredores de Bangalore.
Living Board na India (Fonte: Carlo Ratti Associatti)
No Paquistão, o Orangi Pilot Project é uma ONG que ajuda comunidades a construírem suas casas com orientação através de oficinas e escritórios localizados dentro dessas minicidades munidos de oficinas com impressoras 3D e laboratórios de materiais. A ONG trabalha não só com autoconstrução, mas com sistemas complexos como redes de água, esgoto e reciclagem de lixo, pensando numa estrutura completa para coexistir com as comunidades.
O escritório londrino Something&Son criou um projeto para as comunidades inglesas onde a estrutura do edifício é desenhada por arquitetos e construída pelo Governo com materiais resistentes e duradouros. Já os pisos internos e a configuração dos apartamentos são criados pelos próprios proprietários de acordo com suas vontades e estilos.
O objetivo final é desenhar o sistema e não o edifício pronto” – Something&Son
Na Venezuela, o coletivo UrbanThinkTank, tem criado fablabs dentro de comunidades para que a própria população, apoiada por profissionais, construa suas casas através das necessidades de cada família.
Há cerca de 2.700 assentamentos informais em toda a África do Sul. O projeto Empower Shack, da U-TT, no município de Khayelitsha, perto da Cidade do Cabo, visa melhorar esses assentamentos por meio de uma metodologia inovadora e inclusiva para a distribuição justa do espaço público, prestação de serviços básicos e um esquema de urbanização que combina melhorias habitacionais com um ambiente urbano mais seguro e novas possibilidades econômicas e sociais . A abordagem concentra-se na construção de ambientes vivos que abrangem microfinanciamento, energia renovável, gestão da água e desenvolvimento de habilidades.
Segundo o arquiteto austríaco Hubert Klumpner, o codesign, ou o design colaborativo deve coexistir com as práticas informais, criando estruturas que se transformam e que não sejam definitivas, já que esses lugares estão em constante transformação.
Nós precisamos de laboratórios de larga escala com pessoas reais fazendo parte dele” – Hubert Klumpner
Outro caso é o do U-Build, um sistema de construção modular simples projetado por Studio Bark, que incentiva indivíduos e comunidades a se autoconstruirem.
O sistema depende exclusivamente de um kit flat-pack feito de peças de madeira e nasceu do desejo do Studio Bark de tornar a construção realmente acessível para o público. Os componentes podem ser encaixados rapidamente como peças de um quebra-cabeça para montar a estrutura de um edifício e facilmente desmontados, reciclados ou reutilizados no final da vida útil do edifício. Ao mesmo tempo, reduz a escala e a complexidade das técnicas convencionais externas, permitindo que a estrutura do edifício seja montada por pessoas com habilidades e experiência limitadas, usando apenas ferramentas manuais simples.
Módulo de madeira autoconstruída (Crédito: Studio Bark)
No Brasil
E aqui no Brasil? Continuaremos negando essa tendência mesmo sabendo que pouco adianta? Por que não estamos também trabalhando práticas de cocriação junto a comunidades?
Será que deixaremos as milícias tomarem conta do processo? Quantas pessoas ainda vão morrer com desabamentos ou viver em ambientes extremamente mal projetados que aumentam o risco de doenças e bem viver?
Deveríamos esperar o poder público? Ou atuar como as ONGS e escritórios dos exemplos acima que vem fazendo a sua parte?
Ilustração da capa: Celyn Brazier
Excelente texto e reflexão!!!
Precisamos sim nos envolver com o mercado da Autoconstrução. Sou recém formada e desde os meus primeiros dias de faculdade me inquieto com a elitização da arquitetura. Não por desmerecê-la, mas porque para mim a arquitetura e o urbanismo não podem ser tão rasos.
Ótimo texto, e importantíssimo jogar luz ao tema. Já se tem bons exemplos no Brasil que democratizam o acesso a serviços de arquitetura e engenharia em territórios de favelas e periferias. A ONG Soluções Urbanas é uma das precursoras, temos o Vivenda que atua com melhorias de baixa complexidade em SP. Aqui no RJ, temos a Favelar que atua como marketplace social conectando profissionais da construção civil a população de favelas e periferias que desejam construir ou reforma.
Parabéns pelo artigo, Marília! 🙂👍🏾
Um assunto profundamente ignorado pela maior parte dos arquitetos, porém é importante lembrar que apesar do texto criticar o eurocentrismo, acaba apagando experiências incríveis que tivemos aqui na América Latina, como a Fucvam no Uruguai e os mutirões autogeridos em São Paulo. É a partir dessas experiências de sucesso que geraram conjuntos habitacionais juntos ao cooperativismo e a economia solidária que surge um caminho fora de uma lógica que meramente coloca um band-aid num processo que precisa ser resolvido já no canteiro e no desenho, como Sérgio Ferro escreveu em seu seminal livro.
É a partir de uma crítica a lógica de produção do espaço pelas empreiteiras que atendem apenas 15% que se apresenta o caminho. Precisamos ser radicais para atendermos de fato aos 85%.
Excelente texto. Se alguém começar um movimento neste sentido me avisem. Sou assentado da “reforma agrária” e já colaborei com minha mão de obra em várias construções de companheiros, mas ainda não participei de nenhuma casa que tivesse a participação de arquiteto ou engenheiro civil no desenho ou projeto. Gostaria de participar de um movimento neste sentido. Sou de Brasília.