Minha primeira experiência no mundo corporativo aconteceu quando eu já tinha quase uma década de carreira. Depois de ter passado por palcos de teatro, governos (nas 3 esferas) e ONGs. Uma trajetória profissional “animada”, com mudança de cidade, estado e área de atuação; mais tentativa e erro do que eu gostaria de admitir – e alguma história para contar. Em 2014, quando deixei a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para trabalhar com educação em um grande banco, rapidamente compreendi o quanto as minhas experiências anteriores, aparentemente distantes, poderiam iluminar o novo desafio.
O líder da área – que teve a coragem de me contratar com essa trajetória – soube me incluir nessa nova cultura organizacional mantendo vivo o olhar forasteiro que eu tinha. Algo nada trivial em um ambiente que opera com velocidade e foco em resultado. Na minha despedida, correndo o risco da imprecisão da memória pela emoção, lembro que ele mencionou que “as minhas perguntas fariam falta”. Tinham sido quase três anos de entregas intensas e muita inovação na área de educação, em que conseguimos construir o novo sem subjugá-lo às lentes do antigo. Nunca esqueci esse comentário sobre as perguntas, pois ele revelou não apenas uma atitude intencional de quem guia um time – abertura ao questionamento – como também me ajudou a enxergar algumas perguntas originais refletidas nos resultados que entregamos. Perguntas que foram superadas, estressadas, desdobradas, mas não por isso menos essenciais às primeiras tomadas de decisão. Como a primeira peça do dominó naquelas grandes sequências que, quando começam a desabar, não prevemos exatamente o desdobramento do caminho. Mas sem a primeira tombar, nada aconteceria.
Se já era realidade 5 anos atrás, hoje, mais do que nunca, a aprendizagem corporativa precisa questionar suas próprias perguntas, pois uma nova epistemologia está emergindo no campo.
A epistemologia é a teoria do conhecimento. Pode ser entendida como um processo constante de diálogo sobre um conhecimento que está suscetível de superação. São as dúvidas, questionamentos e diálogos que permeiam os pensamentos dos cientistas. “A epistemologia nasce quando morre a certeza”. (Ramos 2008, In: Teoria do Conhecimento e Epistemologia).
Pois estamos precisando matar algumas certezas no campo da aprendizagem corporativa. E esse não é um “tema de RH”: todas as organizações precisam se tornar plataformas de conhecimento, assim como os profissionais precisam ser melhores aprendizes e potencializar a aprendizagem por onde passam.
A urgência é ainda maior para aqueles que atuam em inovação ou que têm seu escopo impactado pela transformação digital – também conhecidos como “todos nós” (em maior ou menor grau). Posso até arriscar afirmar que é uma questão de consciência: quem já percebeu o tamanho da transformação em curso tem interesse em descobrir como fazer sua organização aprender mais e melhor.
O contexto exige que olhemos para a aprendizagem com olhar forasteiro.
Como fazer isso? Superando algumas das questões que nos guiam desde os primórdios.
– Talvez o ponto não seja apenas mapear “gaps” de conhecimentos.
– Perguntar por engajamento pode estar nos impedindo de enxergar além.
– Formatos são interessantes, mas outras variáveis influenciam mais no resultado de aprendizagem.
A seguir, algumas propostas de subversão para as perguntas que costumam nos guiar nesses 3 temas.
À pergunta: Qual conhecimento oferecer?
Acrescentar: Como estimular a criação, a organização e o compartilhamento de novos conhecimentos?
Claro que a primeira pergunta continua válida, mas apenas se entendermos que ela precisa ser complementada pela segunda. John Hagel III, fundador do centro de pesquisa da Deloitte no Vale do Silício Center for the Edge, publicou um artigo em outubro de 2021 da Harvard Business Review chamado What motivates lifelong learners. Ele vai direto ao ponto:
“Hoje em dia, simplesmente a participação em programas de upskilling não é suficiente. Esses programas de formação estão focados em conhecimentos existentes – competências que já existem. Mas num mundo em rápida mudança, o conhecimento existente torna-se rapidamente obsoleto. Precisamos alargar a nossa definição de aprendizagem para incluir a criação de novos conhecimentos.” (em tradução livre)
É preciso desapegar da ideia de que a aprendizagem é exclusivamente consequência do acesso ao conteúdo elaborado por algum especialista. Se repetimos por aí que o professor não é mais a autoridade detentora do conhecimento em sala de aula, por que temos tanta dificuldade de trazer essa visão para nossas empresas?
Porque é difícil mesmo. Nos coloca no lugar do não controle. Quando compramos conteúdo, disponibilizamos na plataforma e acompanhamos os indicadores de acesso, realizamos um processo observável de ponta a ponta. Quando nos propomos a impulsionar os processos de criação de conhecimento integrado ao dia a dia do negócio, em todas as áreas e não apenas na de pesquisa e desenvolvimento, muita coisa precisa se transformar na forma como organizamos o trabalho. A visão knowledge centric passa a ser necessária nas empresas.
Knowledge centric (centrado em conhecimento) é um conceito que tende a ganhar força nos próximos anos. Tem afinidades, mas também diferenças importantes do conceito de gestão do conhecimento. No basilar livro que leva o mesmo nome, de Nonaka e Takeushi (Bookman 2008), aprendemos sobre os processos de geração do conhecimento, sua administração e promoção – com cases de grandes empresas como Canon, IBM, Sony e Olympus. Mas a ideia de knowledge centricity traz uma nova dimensão, mais focada na era digital e fortemente baseada em cultura.
Em 2021, a International Digital Corporation (ITC) publicou o relatório The Knowledge-Centric Organization: Exploiting Intellectual Capital (A Organização Centrada no Conhecimento: Aproveitando o Capital Intelectual). O relatório expõe uma pesquisa realizada junto a empresas nórdicas, consideradas em sua maioria maduras no processo de transformação digital.
Nesse relatório, fica claro que a noção de knowledge centricity é essencialpara pensar as dinâmicas do conhecimento na era data economy. Hoje produzimos muito mais dados do que somos capazes de utilizar. Os dados podem ser relevantes a todas as áreas das empresas, o que demanda que a capacidade analítica esteja presente de forma transversal. O que é apenas outra forma de dizer que os mais diversos profissionais precisam saber gerar – e disseminar – conhecimento a partir de dados. “A análise de dados está a passar de uma ferramenta para compreender e visualizar, para uma ferramenta para a tomada de decisões diárias e melhorias contínuas do processo.”, resume o relatório do ITC (p.6).
Segundo o mesmo relatório, a organização centrada no conhecimento terá de fornecer (p. 8-9, adaptado):
– Ferramentas. Encontrar conhecimento em grandes organizações não é fácil. Uma mão-de-obra híbrida precisará de uma combinação de ferramentas formais e informais para criar e compartilhar conhecimentos.
– Cultura. Valorizar o conhecimento não significa protegê-lo de tudo e todos. É preciso encontrar a pessoa certa com os conhecimentos certos, e depois permitir e incentivar a pessoa a compartilhar.
– Liderança. Um novo estilo de liderança e novas métricas para o sucesso são necessárias. As organizações terão de compreender e aplicar indicadores comportamentais, formação, e incentivos para alcançar os requisitos de centralidade de conhecimento em larga escala.
Uma organização que queira seguir aprendendo precisa entender o que precisa ser modificado para impulsionar-se como plataforma de conhecimento. Isso inclui estratégia, cultura, estrutura e processos, indo muito além da oferta de educação.
Da genérica: Como engajar?
Para a específica: Como gerar interesse genuíno naquilo que nós sabemos que é importante?
Na Dinamarca, o governo tem o objetivo de que 95% dos jovens recebam a qualificação acadêmica ou profissionalizante. Mas, ainda que esses 95% iniciem uma formação, menos de 80% concluem. Não tive coragem de comparar esses indicadores aos brasileiros, mas eles parecem de fato alarmantes para Knud Illeris, professor de Aprendizagem ao Longo da Vida na Danish University of Education e professor adjunto honorário do Teachers College da Columbia University. E para nós aqui pouco importa o número, mas interessa muito a análise.
Illeris conta essa história no seu excelente Teorias Contemporâneas da Aprendizagem (Penso, 2013). No primeiro capítulo, Uma compreensão abrangente sobre a aprendizagem humana, o autor defende que condições internas e externas específicas estão diretamente envolvidas no processo de aprendizagem – muito mais do que apenas “influenciam”. A aprendizagem é, por isso, muito mais complexa e abrangente do que a dimensão psicológica das tradicionais teorias behaviorista ou cognitiva.
“Toda aprendizagem acarreta a integração de dois processos muito diferentes: um processo externo de interação entre o indivíduo e seu ambiente social, cultural ou material, e um processo psicológico interno de elaboração e aquisição” (p. 17).
Voltando ao caso dos jovens da Dinamarca. Para Illeris, os investimentos sucessivos na melhoria dos programas de formação estão direcionados para a dimensão errada (o desenho do programa em si: metodologias, conteúdos etc). Ignoram que os jovens estão em um momento de constituição de sua identidade pessoal, e recebem qualquer formação com perguntas como “o que isso significa para mim?”. Enquanto essa demanda não for vista como relevante e trazida para dentro do programa, a evasão permanecerá. A intenção positiva do governo, subjacente à iniciativa, não é suficiente para que os jovens percebam a importância daquilo para eles. Não há magia ou obviedade nesse percurso.
Quando nos perguntamos “como engajar” de forma genérica, somos levados quase à lógica do marketing de conteúdo, um convencimento ao consumo. Quando pensamos a ponte com a subjetividade e o imaginário da pessoa como um componente essencial e não acessório do processo de aprendizagem, podemos encontrar caminhos mais simples e efetivos. Mas precisamos baixar a arrogância que vai no nosso coração – “me obedece, que eu sei o que é melhor pra você” – para seguir as preciosas dicas da Patty McCord: ter honestidade e tratar as pessoas como adultas.
Em outro ótimo exemplo, Illeris (p.29) conta de um programa de retreinamento de profissionais que involuntariamente ficaram desempregados. Nesse caso, não se pode ignorar que, por maior que seja o desejo de retornar ao mercado, a identidade das pessoas estava ligada ao trabalho anterior – o que leva ao desenvolvimento de um forte mecanismo de defesa para a nova aprendizagem. Se, antes de começar o curso, as pessoas pudessem refletir sobre seu momento de vida e decidir o que queriam aprender, a defesa seria possivelmente superada. E, segundo Illeris, a grande maioria das pessoas pesquisadas teria escolhido o mesmo curso ao qual foi designada inicialmente. Mas, tendo podido refletir a respeito, tudo faria muito mais sentido e a aprendizagem seria muito mais efetiva.
Trazendo para a sua realidade: quais resistências e defesas podem surgir na sua organização e como podem ser trabalhadas? Está claro como os interesses organizacionais e individuais se conectam? Você está sendo transparente sobre suas intenções com seus e suas aprendizes?
Da menos importante: Em qual formato as pessoas preferem aprender? ( ) vídeo ( ) texto ( ) podcast etc…
Para a mais importante: Como integrar a aprendizagem ao contexto objetivo?
“É o Netflix da educação”. Quantas vezes você já ouviu esta frase? Eu, mais que dez, cada uma se referindo a um produto diferente do mercado de educação. É até difícil começar a comentar, tantos são os questionamentos que esta frase de 5 palavras pode causar.
Josh Bersin, referência global em aprendizagem corporativa, neste artigo referencial de 2018, traz o principal argumento sobre a falha fundamental desta comparação: entretenimento e aprendizagem têm propósitos diferentes. O que se reflete não apenas no conteúdo (“você pode substituir” séries de ficção por séries de videoaulas), mas na própria lógica organizadora da experiência na plataforma. No entretenimento, queremos que a pessoa permaneça o máximo de tempo possível e consuma cada vez mais. Na educação corporativa, queremos que ela aprenda, volte para a vida e experimente fazer as coisas de uma forma diferente que fazia antes.
Imagine que sejamos capazes de organizar a plataforma de maneira clara para nossos colaboradores, que tenhamos os melhores conteúdos online do universo e que cada um receba no seu formato preferido. Ainda assim, se paramos por aí estamos nos desresponsabilizando pelo nosso tão sonhado resultado de aprendizagem para o negócio e para a pessoa. A autodireção não é óbvia, assim como a conexão com o trabalho não se dá por osmose. É preciso ter intencionalidade e método também desse lado da equação.
Tendemos a ficar encantados pelas possibilidades criativas dos conteúdos digitais e seduzidos pela sua escalabilidade. Já a transferência da aprendizagem para a vida e trabalho acaba ficando em segundo plano, porque demanda atenção constante, entendimento da complexidade do contexto e flexibilidade perante os diferentes aprendizes. Mas então como ganhar escala nesse processo de transferência? Ganhando aliados: líderes, mentores, pares etc. A descentralização é essencial para aumentar o alcance das iniciativas de aprendizagem conectadas ao contexto. Mas mobilizar e dar ferramentas a esses aliados continua sendo responsabilidade dos planejadores da aprendizagem. Nesse sentido, tenho observado recentemente muitas organizações fortalecendo seus programas de disseminadores internos de conhecimento. Aí está um ótimo caminho, a ser explorado e ampliado.
É claro que nós temos um formato preferido de aprender. Eu prefiro mil vezes um texto a um vídeo. Mas prefiro um milhão de vezes um vídeo que faça sentido para mim do que um texto que não se conecte aos meus interesses ou necessidades.
“Viva por enquanto as perguntas”
Quem diz é Rainer Maria Rilke, em Cartas a um Jovem Poeta, clássico livro com o qual jovens artistas são presenteados desde sempre. Estive esses dias na livraria e vi que há uma profusão de cartas a jovens (investidor, terapeuta, advogado, cientista, fotógrafo, herdeiro, político e até calvinista). Mas eu recomendo mesmo é o original do início do Século XX, ao qual sempre retorno para refletir sobre o meu próprio processo criativo.
No campo da aprendizagem, estamos em tempos de questionar nossas premissas. Isso não significa desqualificar a nós mesmos como aprendizes, ou destruir o modelo que até agora funcionava. É preciso reconhecer o valor do que sabemos, mas principalmente impulsionar a paixão pelo que não sabemos. Só assim conseguiremos levar a aprendizagem nas organizações a um outro patamar.
Aqui eu trouxe algumas questões que me acompanham. Encorajo que você desenvolva seus próprios questionamentos. A imagem abaixo pode ser bem útil para impulsioná-lo(a) nesse caminho. Ela representa “as três dimensões da aprendizagem e do desenvolvimento de competências” de Illeris, e está na página 19 do livro. Geralmente pensamos só na parte superior esquerda do triângulo. Seja na revisão de uma estratégia de aprendizagem na sua organização, seja na sua atuação como líder que desenvolve o time, seja no seu processo autodirigido de aprendizagem, as 3 pontas precisam estar mobilizadas para que você tenha como resultado a aprendizagem significativa.
Imagem retirada do SlideShare
Por isso é essencial pensar a aprendizagem como cultura. A cultura integra significado, sensibilidade e convivência.
A cultura de aprendizagem faz parte da epistemologia emergente da aprendizagem corporativa. Sair do modelo centrado em oferta de conhecimento demanda novas métricas e novos modelos operacionais. A cultura é múltipla, mutável e coletiva por essência.
E quais novas perguntas podem emergir desse olhar forasteiro?
Gilberto Gil, quando Ministro da Cultura, dizia que o papel do Estado não era “produzir cultura” – este era o papel da sociedade. O Estado deveria fazer uma espécie de “do-in antropológico”, pressionando, com suas políticas, os pontos exatos que permitiriam a energia criativa circular no país.
Em qual ponto sua organização está precisando de um “do-in” para liberar o potencial das pessoas, para que elas criem novos conhecimentos?
“Viva por enquanto as perguntas” – disse R. M. Rilke ao jovem poeta. Mas ele não para por aí. “Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, conseguirá viver as respostas.”
Aí será hora de fazer novas perguntas.
Ilustração da capa: Matt Murphy
Texto absoluto.
Ótimos questionamentos, artigo essencial para aprendizagem corporativa
Parabéns pelo artigo. Ótimas reflexões. Hoje atuo como um disseminador interno global de conhecimento, pois preciso garantir que as Regiões aprendam entre elas, evitem erros desnecessários, ganhem escala e evoluam mais rápido. Desnecessário afirmar que tem sido um tremendo desafio assegurar o engajamento das Regiões – cada uma delas já tem “objetivos demais” para se preocuparem – contudo perguntas genuínas podem ser o elo que procuro. Minimizar a politicagem corporativa e priorizar a disseminação genuína dos conhecimentos que têm interesse Global podem ser boas possibilidades.
Que texto incrível. Obrigada, Clara.