Desde os tempos mais remotos, as pessoas já desenvolviam tecnologias e narrativas para buscar antecipar o futuro, o que estaria por vir. Hoje, algoritmos complexos podem simular um grande número de cenários futuros em segundos.
Na realidade, o conceito de antecipação está centrado na espera. Enquanto você espera por algo, você pensa sobre isso e, se o que você aguarda é algo que considera positivo e estimulante, esperar pode proporcionar sentimentos de alegria. Antecipação também é a base da adaptação. Se bem que, “espera” e “adaptação” podem ser comportamentos passivos. Mas isso merece outro artigo.
Então, o que acontece quando não mais antecipamos? Se deixarmos essa importante arena para um punhado de acadêmicos, pesquisadores, bancos, fóruns e bilionários?
Para não perdermos a arte de antecipar futuros e garantir nossa participação na formação deles, vamos acrescentar mais um elemento: Action Learning.
Traduzido para o português, “action learning” equivale a “aprender fazendo ou aprender no ambiente real de trabalho. O termo foi criado pelo Professor Reginald (Reg) Revans, na década de 1940, enquanto encorajava mineiros em uma mina de carvão a se encontrarem em pequenos grupos para compartilhar suas experiências e perguntar uns aos outros sobre o que viam e ouviam. Essa abordagem aumentou a produtividade em mais de 30%. “Aqueles que realizam o trabalho são as melhores pessoas para resolver os problemas” talvez teria sido o seu lema.
Quando adicionamos a antecipação ao “action learning”, temos o Anticipatory Action Learning (AAL), uma atividade bem conhecida no campo de Estudos de Futuros (Futures Studies) na intenção de questionar o futuro para transformar empresas, organizações e a sociedade no agora.
Um dos principais pontos da AAL é o ambiente, ou seja, o clima, a dinâmica, o formato. Se for um workshop, como será a experiência de aprendizagem? Como criar um ambiente seguro e de confiança? Como serão as interações e conexões entre os participantes? Outro ponto é haver uma pergunta ou uma questão que inspire, aguce e mexa com o grupo. O terceiro ponto é que as suposições, crenças, restrições e limitações dos participantes devem ser aceitas, compreendidas e transformadas. O quarto ponto é que essa deve ser uma atividade coletiva, com uma autêntica compreensão do outro.
Embora tenha formação em strategic foresight e estudos de futuros, não me considero uma futurista, mas pensadora de futuros e que gosta de facilitar esse processo para outras pessoas e grupos. Me identifico muito com a filosofia de Anita Sykes-Kelleher, futurista australiana, reconhecida internacionalmente, cujos valores organizacionais e empresariais que enxerga são “integridade, criatividade e visão”. Eu adicionaria, além desses valores, “humanidade, diversidade, equidade e ação”. Ação no sentido de não ser só discurso ou marketing.
E se não deve ser só discurso, de vez em quando também precisamos checar se estamos praticando o que estamos falando. Anita usa o modelo PATOP (Whiteley 2001) para conferir esse alinhamento. PATOP é o acrônimo de Philosophy (Filosofia e Valores), Assumptions (Suposições), Theory (Teoria), Organising (Organização) e Practice (Prática),
Neste artigo, iremos ver a primeira letrinha (P) que é a Filosofia e os Valores. E se vamos começar pela filosofia, uma delas é que o movimento para motivar alguém ou um grupo a pensar (imaginar e reimaginar) futuros não deveria partir apenas dos “futuristas”, principalmente se for em palestras (uma única pessoa falando para muitas).
O “action learning” antecipatório (AAL) é um processo de cocriação de futuros com aqueles que têm interesse neles – alunos, funcionários, lideranças, gestores públicos ou políticos. Envolve questionar suposições, desafiar o status quo, criar um ambiente que facilite o “emergir” de possíveis futuros, simular e até mesmo experimentar esses futuros. Trata-se de aprendizagem para o indivíduo e para o coletivo (organização ou comunidade).
Anita publicou em 2005 um ensaio estruturado em torno do modelo PATOP para conferir se havia aderência àquilo que ela considera genuinamente gratificante: contribuir para que indivíduos, organizações e comunidades usufruam de uma aprendizagem, de conversas e trocas significativas, criando potência para imaginarem e criarem seus próprios futuros.
Em relação à Filosofia e Valores (P), ela organizou 10 conceitos. A partir de cada conceito, eu busco também transmitir minhas percepções e valores.
1. Participação
Futuros deveriam ser pensados e imaginados com a participação de todos. Anita nos lembra que “a AAL sempre procura incluir e envolver pessoas interessadas na cocriação de futuros, incentivando-as a compartilhar suas visões sobre futuras possibilidades”. Visões também podem ser chamadas de imagens de futuros.
Essas trocas e conversas abrem espaço para que o grupo comece a reconhecer e apreciar as diversas formas de conhecimento. Saberes, intuição e experiência fundem-se com fatos e números. Todos os participantes são reconhecidos como iguais. (Inayatullah 2002; Zuber-Skerritt 2002)
Esse é um momento participativo, para além das narrativas hegemônicas, ocidentais e eurocêntricas, onde cabe a uns POUCOS a tarefa de imaginar, idealizar e formular estratégias de criação do futuro de MUITOS. É deixar de ser coadjuvante em futuros criados por pessoas deslocadas da sua realidade.
2. Perguntas perspicazes
As experiências dos adultos são “filtradas” através de suas referências, suposições e crenças arraigadas, argumenta Marsick (1998) com base no trabalho de Mezirow sobre aprendizagem transformadora. Anita vai além ao dizer que o questionamento destes pressupostos e crenças, e dos insights e novos conhecimentos advindos da reflexão, “possibilita às pessoas a apreciar as suas próprias limitações ou rigidez de pensamento e de mentalidade, abrindo a mente para experimentar novos e possíveis caminhos e para a criatividade.”
Nesse ambiente de questionamentos, de conversas e trocas, é importante haver uma pessoa com experiência em Estudos de Futuros e Strategic Foresight que facilite a formulação de “perguntas perspicazes e ousadas”, uma vez que os participantes podem não ter familiaridade ou não estar habituados a pensar no futuro e fiquem presos a experiências passadas.
3. Pensamento sistêmico
A capacidade de pensar de forma sistêmica permite-nos “conectar questões, acontecimentos e fatos de forma holística” (Zuber-Skerritt 2002), enxergar padrões e tendências e entender o impacto das decisões que tomamos.
O pensamento sistêmico compreende a interconectividade, a complexidade e a integralidade dos componentes de um sistema e as relações específicas entre si.
As pessoas são integrantes de um grande sistema aberto em que, individualmente, cada um conhece pequena parte do todo. Cocriar futuros está embasado nas aspirações de cada pessoa. Se elas são integrantes do mesmo sistema, sabem o que desejam pois vivem ali seu dia-a-dia. Mas se for um grupo heterogêneo ou um grupo social complexo, a interação pode ser fator multiplicador do conhecimento, transformando os participantes em comunidades de aprendizagem e crescimento.
4. Foresight
A tradução para o português de foresight é previsão ou predição. Como o futuro ainda não existe, ele só pode ser imaginado e pensado, prefiro chamar de Antecipação – antecipar possíveis e prováveis cenários futuros, avaliando as consequências dos planos (e tomadas de decisão) de hoje no mundo de amanhã.
A “Antecipação” é a capacidade de enxergar pequenos indícios e evidências de futuro que podem ser observáveis no presente. É a arte de detectar movimentos emergentes antes que se tornem tendências, de observar padrões antes que fiquem visíveis para a maioria das pessoas, e de identificar quais comportamentos emergentes provavelmente moldarão a direção de eventos futuros.
Para Anita, a reflexão sobre o futuro pode ser o aspecto mais desafiador para os participantes numa atividade AAL, “muitos dos quais estarão habituados a ambientes onde predomina a reflexão a curto prazo.”
5. Criatividade
É a capacidade de gerar ideias e conceitos originais, novas formas de fazer as coisas e novos pensamentos. “Tudo isso é essencial para um processo AAL”, adverte Anita, “onde os participantes devem ser encorajados a usar a imaginação e a não permitir que o seu pensamento seja limitado a experiências passadas.” Ou atravessados por futuros ditados pelo norte-global.
6. Sinergia
Na AAL, é a capacidade do grupo de produzir algo maior do que a soma das capacidades de cada indivíduo, “através da partilha de informações, de conhecimentos e de competências”, explica ela.
A contribuição do todo, é maior e melhor que a soma das imagens de futuro individuais. Cada um de nós sabe muito e sabe mais do que a gente pensa que sabe. O que falta para muitos é a oportunidade para contribuir e aprender uns com os outros.
7. Abertura e Confiança
Os participantes são incentivados a estarem abertos e a compartilhar suas ideias e pensamentos, e também a estarem receptivos às opiniões dos outros. Pra isso, um ambiente de inclusão e de confiança é um fator crítico para o sucesso da AAL.
8. Foco na Aprendizagem
Atividades de AAL enfatizam a importância da aprendizagem individual e coletiva como sendo de igual valor.
AAL proporciona um ambiente adequado para a aprendizagem e o desenvolvimento transformadores, tanto para indivíduos como para coletivos, e facilita a exploração de uma multiplicidade de futuros. (Marsick 1998; Inayatullah 2002)
Imaginar futuros e tomar decisões conscientes e assertivas em um mundo complexo e de permanente mudança de cenário implica aprendizado coletivo e envolvimento em processo que seja realizado por pessoas, visando a pessoas e com pessoas.
9. Emergência
A Emergência está intimamente ligada à “sinergia”. Pode ser definida como “o surgimento de estruturas, padrões e propriedades novos e coerentes durante o processo de auto-organização em sistemas complexos”. (Goldstein 2004)
Explicando melhor, a Emergência é um processo de formação de padrões complexos (coletivo) a partir de uma multiplicidade de interações simples (agentes ou entidades).
Uma narrativa emergente ou um movimento emergente ou um comportamento emergente podem ser imprevisíveis, ou seja, podem ou não se tornar dominantes (mainstream). Na opinião de Anita, a palavra “emergência”, também infere que “você permitirá que o futuro surja sem moldá-lo conforme suas crenças.”
10. Resiliência Organizacional
O aspecto antecipatório da AAL ajuda as organizações a tornarem-se ambientes de aprendizagem, desenvolvendo resiliência em contextos complexos e dinâmicos. Uma organização que aprende é aquela que combina a aprendizagem adaptativa (capacidade de interpretar, reagir, adaptar-se para a sobrevivência ou influenciar o seu ambiente) com aprendizagem generativa que desenvolve a capacidade de criar. (Senge 1990; Smith e Peters 1997).
Anita reforça que a capacidade de criar o próprio futuro constitui uma parte vital na construção de resiliência nos indivíduos e nas organizações. “Como metáfora, a resiliência capta a essência de uma organização adaptativa e generativa, onde a estratégia não é mais um processo linear de A para B, mas um processo que capacita as pessoas a antecipar, adaptar e criar estratégias em resposta a questões emergentes.” Pra ela, uma organização resiliente estaria mais bem equipada para sobreviver a mudanças repentinas no seu ambiente e para planejar e criar o seu próprio futuro.
Penso que uma característica de uma organização que aprende é o permanente olhar para cenários futuros. A tirania das demandas “urgentes” trava profissionais e empresas no que tem que ser feito agora, em função do que se sabe agora. Quando você desenvolve o pensamento em futuros torna-se uma pessoa mais propositiva: quais são os futuros que eu quero criar? E também cria uma cultura antecipatória.
Em um próximo artigo, vamos explorar as 4 outras letrinhas: ATOP – Assumptions (Suposições), Theory (Teoria), Organising (Organização) e Practice (Prática).
Referências
Goldstein, J. 2004. “Emergence as a Construct: History and Issues.” Emergence 1(1).
Inayatullah, S. 2002. Questioning the Future: An Anticipatory Action-Learning Guide to Transforming Organisations. Taipei, Taiwan: Tamkang University.
Marsick, V. 1998. “Transformative Learning from Experience in the Knowledge Era.” Daedalus 127(4): 119-37.
Senge, P. M. 1990. The Fifth Discipline : The Art & Practice of a Learning Organisation. London: Random House.
Smith, P. and J. Peters. 1997. “Action Learning: Worth A Closer Look.” Ivey Business Quarterly. Ivey Business School, Western University, Canada.
Whiteley, A. 2001. “PATOP for Leaders and Managers: the Decision Making Activity.” Occasional paper. Pp.1-19 Graduate School of Business, Curtin University.
Zuber-Skerritt, O. 2002. “A Model for Designing Action Learning and Action Research Programs.” The Learning Organisation, Bradford 9(3/4): 143-150.