Prever o futuro sempre foi uma ambição humana. Seja por meio da fé, da tecnologia (atualmente, por meio de algoritmos de machine learning), dos métodos de foresight e prospectiva estratégica ou mesmo através das lentes da psicologia e da sociologia; antever eventos antes que ocorram representa vantagens óbvias: antecipação de possíveis cenários, obstáculos e crises.
E, respondendo à questão “a vida imita a arte ou a arte imita a vida?”, as respostas que muitos analistas de conjuntura buscam pode se encontrar na Literatura. Mais especificamente, num gênero geralmente associado de forma genérica a naves espaciais e espadas de luz, apesar de ser muito mais do que isso por levantar especulações e discussões que frequentemente se mostram vitais anos depois de serem publicadas.
Não importa se você gosta ou não de Ficção Científica, certamente já se deparou com matérias dizendo algo do tipo: “Livro previu [imagine aqui qualquer novidade tecnológica ou social]”. Embora geralmente esse tipo de matéria trate de meros detalhes, como uma obra de 1948 retratando alguém chamado Elon levando humanos a Marte ou um livro brasileiro de 2013 abordando uma pandemia de coronavírus tendo seu ápice em 2020, ou ainda meu próprio livro prevendo o nome da plataforma de trabalho em metaverso criada por Mark Zuckerberg; a real capacidade de antecipação da Ficção Científica geralmente se encontra longe dos holofotes midiáticos, mas amplamente cultuada pelos aficionados pelo gênero.
O poder da Ficção Científica costuma se encontrar na capacidade de antever ou especular problemas sociais, ambientais ou mesmo a relação entre sociedade e alguma tecnologia. Não à toa, outro termo muito comum para designar a Ficção Científica e, geralmente mais restrito aos meios acadêmicos, é Ficção Especulativa.
E por ser justamente uma expressão literária que trabalha com especulação, seus autores frequentemente antecipam tendências, algo que ocorre desde a primeira obra do gênero, O Prometeu Moderno (mais conhecido por Frankenstein), de Mary Shelley. Publicado em 1818, o livro aborda estudos que só seriam iniciados posteriormente à obra, como as tentativas de ressuscitação de corpos por meio do galvanismo, o que indiretamente se relaciona com a origem do desfibrilador no século seguinte.
Outro exemplo se encontra em Neuromancer, de William Gibson, que, ao início da década de 80, apresentou um cenário especulativo no qual computadores portáteis seriam comuns, pessoas fariam transações financeiras por meio de chips que carregariam consigo (de forma bem semelhante aos cartões de crédito e débito), o cenário de colapso ambiental, massivo desemprego e uma sociedade cada vez mais digitalizada.
Ainda mais utilizadas como exemplos de cenários totalitários modernos e campanhas de desinformação são os clássicos Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell (mesmo autor de A Revolução dos Bichos). Geralmente, com pessoas à esquerda na política utilizando a obra de Huxley para criticarem ideologias à direita e indivíduos à direita exemplificando abordagens da obra de Orwell como crítica às ideologias de esquerda.
Ambas as obras encontram ecos na realidade contemporânea. Enquanto Admirável Mundo Novo fala, entre outras coisas, sobre uma realidade tão saturada de informações, que os conteúdos relevantes ficam perdidos de forma pulverizada em meio a uma quantidade massiva de conhecimento inútil e desinformação; 1984 aborda a ideia de uma novilíngua que encontra seu caminho na realidade por meio da saturação semântica (um tema que merece futuro artigo).
Curiosamente, as duas obras tornaram-se referência de debates até os dias de hoje, tamanha a força de seus textos e da capacidade de prever a relação entre o ser humano e a tecnologia. Assim, preferências políticas à parte, os dois livros acabaram por acertar muito daquilo em que se transformou nosso presente.
Talvez seja por essa capacidade de prever o futuro ou mesmo desdobramentos sociais do presente, como ocorre no subgênero Nowpunk (vertente criada pelo autor Bruce Sterling em The Zenith Angle que trabalha não com tecnologias do futuro, mas exclusivamente com a contemporaneidade), que a França tenha adotado uma nova estratégia de antecipação de crises.
Desde 2019, a recém-criada Agência de Inovação em Defesa (DIA, na sigla francesa) passou a incrementar entre seu quadro de funcionários – o que batizou de “Equipe Vermelha” –, escritores de Ficção Científica contratados para preverem possíveis ameaças futuras a nível nacional (francês), continental (europeu) e global. Os trabalhos, obviamente, não são levados a público, mas mantidos sob altíssima confidencialidade, por consistirem em vantagens estratégicas ante futuros cada vez mais incertos.
Esse gerenciamento de risco é uma tendência de mercado a qual já falamos por aqui: os superprevisores, pessoas, geralmente sem formação específica, que são perfeitas analistas de conjuntura, antecipando eventos que escapam até mesmo aos maiores especialistas das áreas. São profissionais capazes de assimilar grandes quantidades de informações e concatenar diferentes dados, aparentemente desconexos, de forma a tecerem um panorama mais amplo que o normal, sem se prenderem a crenças dogmáticas (sejam elas políticas, religiosas, ideológicas, estratégicas ou de quaisquer outras naturezas).
Todas essas qualidades acabam sendo essenciais com frequência para autores de Ficção Científica que pretendam especular o futuro, presente ou mesmo passado (a depender da proposta da obra).
Ferramentas, algoritmos e métodos prospectivos sem dúvida auxiliam na antecipação de possíveis futuros, mas a chave para a resolução de problema antes de tornarem-se uma crise pode muito bem se encontrar no fator humano. Afinal, o que melhor do que seres humanos para prever problemas de sociedades compostas por seres humanos?
A capacidade de gerenciar crises sempre esteve em nossas mãos e sob a nossa capacidade de gestão. Crer na ideia de que a robótica e a inteligência artificial aplicadas ao mercado de trabalho impactará desempregos, o que inclui a perda de seres humanos fazendo análises de conjuntura, é repetir o erro associado a cada inovação tecnológica, que sempre trouxe consigo o medo de desemprego, quando o que ocorreu em todas as vezes foi a ampliação dos postos de trabalho.
Isso aconteceu durante todas as Revoluções Industriais, durante o surgimento da informática, quando a robótica passou a dar seus primeiros passos e até mesmo no setor editorial quando o Pacote Office chegou às residências. Neste último caso, os editores e revisores temiam que o uso do Word fizesse com que escritores não dependessem mais de um profissional que editasse suas obras, criando esvaziamento no setor. Na realidade, ocorreu justamente o contrário: com a popularização da informática, passou a se produzir cada vez mais Literatura, causando um crescimento do mercado editorial em todo o mundo.
Não fosse por essa revolução de produção cultural trazida pela informática, provavelmente não teríamos tantas histórias de Ficção Científica antecipando nosso futuro nas últimas três décadas, e certamente este texto sequer existiria.
Ilustração da capa: Wiiliam Gibson por Golden Cosmos
Finalmente a ficção científica sendo valorizada para além do entretenimento.