O céu se enganchou comigo num abraço vulcânico, daqueles que querem te dizer coisas jamais ditas. Eu o observava através de uma espessa moldura de árvores, e ali, naquele instante, naquela noite incandescente, ele se comunicou comigo — tenho pra mim que o céu se comunica com a gente o tempo todo, mas somente quando os olhos assumem forma e jeito de estrela é que conseguimos responder à altura.
Meu coração estava aceso por intermédio de uma fogueira. O cheiro da queima brotava narizes na minha pele. Eu enxergava tudo ao redor, tudo, ainda que meu olhar estivesse flechando copiosamente o céu e mais nada. Pessoas dançavam e cantavam, mas a minha pessoa estava interessada mesmo era no banho escuro que lá de cima se derramava. Eu senti uma palavra sendo derramada: “Respeito” — com letra maiúscula, pois gastamos letras maiúsculas com coisas de muito menor importância.
“Respeito”, o céu cochichava: não fique tentando compreender tudo. Respeite, Alex, aquilo que está além de qualquer entendimento. Contemple, reverencie, faça de sua vida uma homenagem a todas as coisas que existem e ainda não foram decifradas. Não pense nunca que algo já foi decifrado. Tenha uma humildade ontológica. Não se acanhe por não entender: sorria e a vida vai lhe sorrir de volta. Assimile; respire o ar da existência e não o prenda em seus pulmões.
Uma sensação forte e azulada, escura como a noite e quente como o sol, tomou conta de mim. A serenidade se apoderou do meu corpo. A paz me convidou para dançar sem que eu precisasse mover um dedo. Eu, que sempre tentei saber de tudo, descobrir tudo, fui parar no hospício da vida: o lugar em que assumimos, lá nos recônditos do humano, a maluquice que é viver. O céu me transportou e não cobrou um centavo. Aprendi a respeitar como quem aprende a comer. A existência vale mais assim: inaudita, acachapante, livre — o tanto quanto possível — dos nossos esquemas ordinários de percepção.
Tocava “Porcelain” do Moby ao fundo. Ouvi essa música como uma criança que descobre uma folha que se movimenta com o toque. O céu nunca mais foi o mesmo. Também nunca mais foram os mesmos as areias, águas, flores, peles, cores, palavras. Tudo se movimentou, assim como a dormideira quando acorda. Há de se fazer deslocação de céu para mudar por dentro; as estrelas podem falar tanto quanto uma tese de doutorado.
Contemplar e reverenciar sem precisar entender é uma arte da vida. Passa por aceitar nossa pequeneza diante das coisas. Por isso gosto da poesia do Manoel de Barros, que fala das pequenices do chão e do quintal, daquilo que acontece não quando ninguém está olhando, mas sim — e somente — sob um olhar atento para os esconderijos de encantamento da vida comum. É possível olhar para a vida-de-todo-santo-dia e encontrar tesouros? É viável fazer reverência — se curvar, mesmo — diante da vitalidade de um gotejo de água, de uma nota musical, de uma descoberta singela ou de um leve carinho nas costas?
Essa arte leva tempo. As pessoas pensam que aprender a fazer algo leva tempo ou que dominar uma habilidade leva tempo, mas aprender a ver — a se comover — leva mais tempo ainda. Foi o céu que me ensinou a ver pela primeira vez as coisas que eu já vi um milhão de vezes. Para isso nós temos as melhores professoras: as crianças. Na verdade, qualquer coisa e qualquer pessoa pode nos educar nesse sentido. É uma operação que se dá no tipo de relacionamento que se estabelece com o meio, e não se engane, você está no meio do meio, você é Um com ele.
É claro que conhecer ajuda. Não sou inimigo do conhecimento. Os saberes que produzimos sobre as coisas podem nos abrir ou nos fechar, podem ser chave ou fechadura — cuidemos para não nos enclausurar. Saberes são repertórios, cores, e eu não sei você, mas eu desejo uma vida matizada por abundantes tonalidades. Não quero apenas o saber racional; quero também as poesias, filosofias, artes, loucuras, as culturas populares, os fazeres manuais, as genialidades ocultas, o ouro submerso. Um conhecimento colorido intensifica a arte de contemplar; um conhecimento cinzento a apaga.
É por isso que se expor ao diferente agrega — sua paleta epistêmica cresce. Aí você é capaz de descobrir o que não sabia que estava procurando, sentir o que não sabia ser possível sentir, enxergar o invisível. É uma questão de sintonia, de se lançar em viagens um pouco incertas e se ligar pro que vem. Não precisa nem viajar de fato; dá pra permanecer no mesmo lugar e apenas olhar de novo. Respeito, aliás, é isso: olhar outra vez.
Um olhar que se permite encher é como se banhar, e na vida a gente pode se banhar de muita coisa, não só de água (na verdade, acho que a água roubou o banho da lua, porque o verdadeiro banho só pode ser de lua). Você se banha de uma fala que arrepia até o dedão do pé, se banha de um livro que te obriga a expandir seu mundo, se banha de entusiasmo ao adentrar numa nova aventura, se banha do amor que floresce nas encruzilhadas, se banha do olhar afetuoso dos seres ao serem notados, enfim, podemos nos banhar de muitos jeitos diferentes e isso enriquece a vida.
A metáfora é boa porque se banhar, na literalidade, é um ato que transborda prazer. É de uma gostosura descomunal tomar um banho, abrir os poros, se entregar para uma disposição corporal aquática e sentir como isso mexe com a alma, as emoções e o intelecto. O ato de contemplar — de fazer reverência à vida e às coisas da vida — , o ato de respeitar absolutamente tudo, a postura genuína do conhecer, o pensar certo de Paulo Freire, tudo isso é se banhar, sabe? Isto não é pouco: regar a vida com muitos banhos.
A ação de se produzir uma descoberta a partir de nossas estruturas cognitivas passa a ser, então, um “se molhar”. Não dá pra descobrir as coisas realmente interessantes sem se molhar. É corpóreo, é emocional e é tesudo, como elaborou Roberto Freire. As pessoas, com medo desse tesão todo, se fixam em seus esquemas caquéticos de sempre, se demoram em moradas que já deram o que tinham que dar e isso gera secura, falta de fluidez. O céu vai se desertificando e a gente nem percebe; quando vê, talvez já seja tarde demais, mas eu acredito que, se você está lendo isso, ainda é tempo, sempre é.
O mundo é vasto e o céu mais ainda, mas apenas um olhar com respeito consegue ver. Um olho de quem descria o mundo, de quem desorganiza para organizar e organiza para desorganizar, de quem transvê. Eu não sinto que realmente aprendi isso, mas me ensinaram que o caminho é o que importa. Ter chegado no hospício da vida me preparou para seguir despreparado, desacostumado, desarmado, e é assim que eu sigo pelos becos e avenidas da existência, desaprendendo um cadin a cada oportunidade.