Como as pesquisas de hoje, com dados de ontem, não são mais capazes de orientar cidades, regiões e países frente às incertezas.

Existem diferentes explicações para o surgimento das cidades. Particularmente, gosto da ideia de sermos domesticados pelo trigo. Segundo essa abordagem, ao deixarmos o nomadismo para cuidarmos das plantações e domesticar o trigo, acabamos nós mesmos, sendo domesticados. Esse momento, chamado de Revolução Agrícola, aconteceu por volta de 10.000 a.C, embora também haja certa discussão a respeito da data.

Se a vida urbana começou a existir embrionariamente nesse momento, foi muito tempo depois, na Revolução Industrial que a coisa complicou de vez. No século 18, a migração em massa para as áreas urbanas criou desafios até então sem precedentes no que se refere a habitação saneamento e infraestrutura, isso sem falar nos desafios sociais que essa nova organização urbana impunha às cidades. Arrisco dizer, e já corri esse risco em dezenas de artigos e publicações, que a ideia vigente até os dias recentes, de que a cidade era o “mal” e a felicidade só existia o mais longe possível dela e, supostamente, mais próxima da natureza. Não pela cidade em si, mas justamente pelos desafios impostos e não totalmente compreendidos na época.

O futuro, por sua vez, se apresenta ainda mais complexo. Segundo a ONU, no Relatório Mundial das Cidades 2022, a população mundial urbana será de 68% em 2050, com aumento de 2,2 bilhões de pessoas por ano. Em 2021, as cidades já abrigavam 56% da população global. Essa aceleração e crescimento traz enormes desafios, e isso, diga-se de passagem, levando em conta somente o nosso conhecimento adquirido até aqui e, pior ainda, enxergando o mundo de forma linear. Nesse artigo vamos justamente discutir essa abordagem, essa visão de mundo “padrão-linear” e entender quais podem ser os impactos desse pensamento e apresentar alguns possíveis caminhos alternativos.

As limitações da abordagem tradicional

Inicialmente, é preciso explicar o que chamarei de abordagem tradicional, e o assunto é tão extenso que precisaríamos de um novo artigo só para esse tópico, mas tentarei ser sucinto. Começo pela parte engraçada, eu, que tantas vezes fui chamado de “estranho” ou “doido” ou inovador (quando estavam na minha frente) começo esse artigo justamente dizendo que tudo isso que todos julgavam “doido” aqui será considerado, justamente, o tradicional, ou seja, negarei a seguir a inovação que eu mesmo ajudei a difundir e passarei as próximas linhas explicando por que ela hoje é tradicional, e, por isso mesmo, carente de evolução.

Vamos começar pelo óbvio, não pelo óbvio ululante, que seria falarmos do planejamento urbano em si, mas pelo óbvio dentro do que então foi considerado inovador, o famigerado Place Branding. Sim, pelo título você já intuiu que vinha uma pedrada, e teve a certeza de que eu enlouqueci de vez, afinal foi mais de uma década dedicada a difundir a importância das marcas-lugar. Mas afinal, o que mudou? Em uma resposta simples e curta: o mundo ao nosso redor.

Ao longo do tempo o place branding teve por objetivo melhorar a atratividade externa de cidades, regiões e países, seja na atração de visitantes, talentos, investimentos, seja promovendo seus produtos, serviços, criatividade… Sem dúvida são objetivos relevantes e necessários, mas o problema está na forma como isso é feito. Se já foi uma mudança razoável de paradigma, influenciar praticantes do mundo todo a envolver a comunidade no processo de construção de marcas-lugar ao invés de só se preocupar com a percepção e reputação externa, o próximo passo é uma ruptura que, confesso, parecerá óbvia para você leitor, mas bem pouco palatável para praticantes e mercado em geral.

Não é mais aceitável planejar um lugar com base nas pesquisas de hoje com informações de ontem.

Simplérrimo não é mesmo? E se adicionar a ideia igualmente óbvia e simples de que, pelo fato de ainda não existir, o futuro não é singular e sim plural, ou melhor, não existe UM futuro e sim vários futuros potenciais? Embora seja de fácil absorção conceitual, na prática é uma ideia que simplesmente muda tudo, não?

A linearidade e a singularidade do futuro é o que impede o place branding tradicional de prosperar diante do nosso mundo complexo e volátil, pra citar só duas características do V.U.C.A e seus novos acrônimos Nutella como diz um grande amigo.

Se tudo isso não bastasse, do que de fato importa a percepção e reputação externa de um lugar para a comunidade que vive nele? Muito? Certamente. Tudo? Certamente não. Se como meus sócios da minha antiga consultoria, costumavam dizer, e eu concordo plenamente, a percepção de um lugar é resultado de influência e experiência, onde diabos está a experiência no Place Branding.

Experiência urbana e Placemaking

Isso mesmo, o Placemaking é a experiência urbana, e portanto, complementar a marca-lugar. Desde os tempos imemoriais da fundação da Places for Us, que não conseguimos desassociar influência de experiência, ou marca-lugar de experiência urbana. Durantes anos, ao explicar o placemaking para os praticantes de place branding, quem não tinha ideia do que estava falando naquele momento, definia como “brand experience” de uma marca-lugar. Embora fosse automaticamente compreendido, não era uma definição lá das mais precisas. De fato, trata-se da materialização dos conceitos da marca-lugar, mas vai além disso, bem além disso, ou pelo menos deveria.

Se essa experiência urbana, sempre foi um irmão siamês do place branding na minha abordagem, ele também carece de evolução. Assim como as marcas-lugar, o placemaking também evoluiu, só não o bastante. Se de simples intervenções D.I.Y, envolvendo a comunidade na qualificação de lugares onde o urbanismo tradicional (mais uma vez a tal palavra) não foi capaz de atender ele se transformou em algo mais estratégico, abordando não só a microescala mas a relação entre as diversas microescalas e a relação desse conjunto com a cidade ou vetor de desenvolvimento urbano. Essa natureza tática, imediatista ou como prefiro, presentista, acabou limitando sua atuação ao agora, ao presente, e, provavelmente, com uma implicação ainda menos plural e diversa do que o place branding.

Se a pandemia e as mudanças climáticas nos ensinaram algo, as custas de tantas vidas, é que o mundo não se comporta de forma tão previsível assim (embora exista bastante controversa sobre a imprevisibilidade desses eventos) e que, mais do que isso (e, aí sim, um consenso) caminha de forma incerta, diversa e, um tanto errática, rumo aos futuros potenciais.

Se o caráter efêmero do placemaking D.Y.U era positivo para o dinamismo e incerteza dos lugares, sua evolução, estratégica, voltou a engessá-lo, fazendo-o flertar com os caminhos urbanísticos conhecidos, que no caso do Brasil, leia-se, modernista. O que era para nasceu dinâmico, foi tendendo a imobilização, uma imobilização mais contemporânea, com participação comunitária (algumas vezes) com doses de cocriação, é verdade, mas ainda pensando na solução única, ainda que para um lugar determinado e não um copia-e-cola, mas ainda assim uma solução “dura”. Também era preciso mudar.

E o novo sempre vem

A essa altura você deve estar pensando, pronto, mais uma disciplina com nome estranho e está tudo certo. Sim e não. De fato, trata-se de mais uma disciplina, porém uma disciplina tão complexa que se desdobra em várias outras, e esse é só o começo do problema.

Qualquer autor, quando começa a escrever sobre os temas relacionados ao futuro, começará, logo no primeiro parágrafo, a dizer que o ser humano sempre foi obcecado por prever o futuro, oráculos, astrólogos, bruxos, já tentamos de tudo e é aqui que precisamos marcar uma diferença significativa, quando falamos de futuro, não falamos de “prever” o futuro, qualquer um que prometer essa façanha será charlatão. Fala-se muito em “antecipar”, particularmente prefiro o termo “explorar” os futuros.

Quando disse que a disciplina se desdobra em várias é porque, embora não seja realmente recente, ainda existe uma confusão enorme sobre as diferentes abordagens e termos. Sim, aparentemente eu tenho a especialidade em me envolver com práticas de difícil explicação e consenso. No que se refere as cidades e lugares, algumas abordagens fazem mais sentido do que outras, me concentrei em duas de forma mais específica: futurismo e foresight. Enquanto a primeira explora os futuros de forma mais conceitual e por isso mesmo mais teórica, o foresight, explora os futuros com o objetivo estratégico e tático, ou seja, o foresight, entre muitas aspas, pode ser traduzido como uma área mais prática ou aplicável do campo dos futuros.

Mas também não seria tão simples assim. Na minha busca pelos diferentes métodos conhecidos, para o meu livro mais recente, percebi que tanto o ponto de partida quanto o de chegada, apresentavam implicações claras quando aplicado aos lugares, e é aqui que o quebra-cabeça se completa, o foresight estratégico, tal qual feito tradicionalmente, também não atenderia aos anseios dos lugares, ele precisava, vejam só, do place branding e do placemaking. Place branding como ponto de partida e placemaking como ponto de chegada. Era preciso embarcar nos processos de foresight a identidade dos lugares, suas vocações e percepções logo no início e aterrissar toda a discussão em estratégias que pudessem materializar todos os conceitos e ideias em experiências que transformassem a vida das pessoas e preparassem os lugares para os mais diferentes cenários, e foi aqui que entrou o placemaking. Chamei esse método no livro “Lugares Futuros” de Place Strategic Foresight©, e é a forma como venho trabalhando os lugares nos últimos anos.

O fechamento do círculo

Foi na junção das três expertises que encontrei o caminho que julgo ser o mais eficiente para conduzir os lugares, cidades, regiões e países, frente as incertezas futuras. Entendo esse processo como uma evolução, quase que natural. Se primeiro a identidade era o tema central (e continua sendo), era preciso aterrizá-la, materializá-la e não deixar que se perdesse em um relatório trancado na mesa de algum gestor público ou empreendedor imobiliário, ela precisava ser ouvida, compartilhada, ganhar vida.

Daí, a importância das experiências, principalmente nos lugares públicos, que, justamente por terem significado originário da identidade, deixam de ser espaços. Mas essa linearidade que aparentemente resolveria os problemas do lugar, foi colocada em xeque ao longo dos anos de prática, era hermética demais, ou não tinha elasticidade suficiente para sobreviver as alternâncias de poder ou não tinha adaptabilidade necessária para orientar um projeto de novo bairro, por exemplo, que pode levar até cinco anos para aprovar de depois mais uns dez para alcançar sua maturidade. Era preciso mais.

A ideia de Cidade Antifrágil surge aí, uma abordagem voltada para a imprevisibilidade, para a incerteza, mas também não era suficiente. A própria Cidade Antifrágil, embora continue usando suas dimensões imputadas no Place Strategic Foresight©, era adaptável e dinâmica, porém singular e imaginava o mundo como uma única seta em direção a incerteza e entendia o mundo com a simplicidade peculiar ao pensamento linear de causa/ consequência. O mundo é bem mais complicado do que isso, mesmo sem o devido aprofundamento no universo da mecânica quântica ou de teorias ainda mais complexas como o controverso Janus Point de Barbour.

O fato é que o tempo acontece de forma desigual, os tempos se entrelaçam, se sobrepõem, não são lineares. Falamos muito dos futuros múltiplos, mas e o passado? Sim, entendo que também devemos nos referir ao passado de forma plural, não pela sua imprevisibilidade e sim pela forma com a qual nos relacionamos com ele. Foi no trabalho de Terry, Castro, Chibwe, Sebina, Savu e Pereira, que lindamente provocavam uma práxis decolonial para os futuros que me deparei com os múltiplos passados e fiquei fascinado com a ideia dos tempos emaranhados. Claro, era uma reflexão acadêmica, que trazia o “Sankofa” com muita força dentro do processo. Sankofa é o ideograma africano que reforça a importância do passado para a construção do futuro. O Sankofa, numa analogia que me fazia sentido, era a identidade, e, portanto, o output do processo de place branding. A abordagem rizomática fazia cada vez mais sentido.

“O pensamento rizomático contrapõe-se ao pensamento linear na medida que explora diversas possibilidades, de igual importância estrutural, e se apresenta, portanto, como a síntese da abordagem frente aos futuros incertos, igualmente plurais…”ESTEVES

Sem querer desmentir o clickbait do título, não é que o place branding ou a ideia de marcas-lugar deixarão de existir, significa que diante da complexidade dos dias atuais e do porvir, uma disciplina, uma abordagem sozinha, isolada, realizada da mesma forma linear como foi feita durante as últimas décadas, entendida de forma linear, por melhor que seja, não é mais capaz de lidar com a imprevisibilidade dos futuros e sua diversidade. Cada vez mais é preciso juntar expertises diferentes, pessoas diferentes, ideias diferentes, abordagens diferentes, e ainda assim, questioná-las, se quisermos não só sobreviver, mas prosperar, evoluir, frente as incertezas e desafios futuros.

Foto da capa: São Miguel do Gostoso/RN, por Caio Esteves

Caio Esteves

Caio Esteves é sócio diretor na N/Lugares Futuros. Autor de "Cidade Antifrágil", "Place Branding" e "Lugares Futuros". Expert em place branding, placemaking e futuro das cidades.

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