Aprender não é consumir. E ensinar não é transferir conhecimento. Ponto.

Aprender é sempre construir, criar. Mesmo quando o conhecimento não é “inédito”, ele é novo para cada aprendiz, que estabelece um sentido para si em diálogo com sua história, o contexto em que vive e atua, seus desejos e aspirações. Grandes nomes da educação já exploraram brilhantemente esse campo e nos legaram conceitos e métodos. Apenas para citar alguns: Paulo Freire e sua aprendizagem significativa, Jean Piaget e o construtivismo – sem esquecer as premissas do modelo andragógico de Malcolm Knowles.

Essa reflexão sobre o fenômeno da aprendizagem carrega consigo uma composição interessante: por mais que seu processo seja absolutamente imbricado no contexto e significativamente social, o fenômeno em si se dá em um nível individual, íntimo. Não há como delegar. Podemos aprender juntos, mas ninguém pode aprender por você.

Tenho tido muitas oportunidades de conversar sobre aprendizagem com profissionais de diversas áreas e diferentes momentos de carreira. A partir desses diálogos, desenvolvi a seguinte percepção, em especial em relação àqueles que atuam no ambiente corporativo: “de forma geral”,

1- As pessoas sabem que a aprendizagem contínua precisa ser uma realidade presente na vida delas.

2- Muitos reconhecem que a aprendizagem é muito mais do que aquilo que acontece na sala de aula (seja de qual tipo for).

3- Expressões como lifelong learning, aprendizagem intencional, protagonismo na aprendizagem, cultura de aprendizagem estão cada vez mais presentes nas falas de todos.

Quanta coisa fantástica! O tema da aprendizagem já está ocupando o espaço merecido. Maravilhoso.

Mas o que vem depois da sensibilização, da consciência, da inspiração? Como colocar a visão em prática?

Venho percebendo que precisamente nesse ponto entre a vontade (de aprender) e o resultado (aprendizado) está o elo sensível da cadeia. O desenho de experiências de aprendizagem é uma atividade profissional especializada. Se vamos levar a aprendizagem para a vida, é útil começar a entender ao menos um pouco do assunto. É como a comunicação: todos nós nos comunicamos, mas faremos isso com muito mais competência se tivermos consciência e técnica.

Não à toa as ideias de aprendizagem autodirigida e de aprendizagem intencional vêm ganhando tanta força. Todos precisamos tomar decisões sobre nossa aprendizagem. Mesmo que continuemos fazendo cursos e acessando escolas, a escolha sobre o que e quando estudar, as conexões entre as experiências e a aplicação do aprendizado na vida só poderão ser feitas por nós mesmos. Saber aprender é a habilidade que possibilitará o desenvolvimento de todas as outras.

Os educadores profissionais são indispensáveis, mas como podemos ser mais eficientes naquela aprendizagem do dia a dia, na qual não podemos contar com eles? E como construir uma trajetória de aprendiz de forma mais autônoma?

Ter mais fontes de aprendizado é bom, mas não suficiente; separar horas na agenda é essencial, mas não garante nada; pensar de forma ágil e tomar decisões conscientes é uma condição, mas não é a receita; ter múltiplos interesses e manter o foco é um bom desafio, mas… o que, de fato, muda a curva? Como transformar a dedicação em resultados?

Sem nenhuma pretensão totalizante, trago aqui três abordagens que costumo usar nas experiências de aprendizagem que desenho e facilito – e que podem ser acionadas por você no melhor estilo “faça você mesmo”!

Existem muitas outras, mas escolhi estas 3 porque as considero valiosas e simples de aplicar: reflexão, disfluência e sensemaking (geração de sentido). Elas não fazem parte de um modelo acadêmico ou de uma proposta metodológica. Em alguns aspectos se complementam e em alguns se sobrepõem. Mas são 3 ideias diferentes, cada uma com seu valor.

A seguir vamos explorar o que significa cada uma delas, além de algumas sugestões de como podemos colocá-las na rotina.

Reflexão: o fundamento, nosso maior exercício de autonomia

Em uma reportagem publicada no El País em 2017, chamada “As redes sociais estão dilacerando a sociedade”, diz um ex-executivo do Facebook, Chamath Palihapitiya, que chegou a ser VP de crescimento de usuários na empresa de Zuckerberg, diz sem rodeios: “os ciclos de retroalimentação de curto prazo impulsionados pela dopamina que criamos estão destruindo o funcionamento da sociedade. Sem discursos civis, sem cooperação, com desinformação, com falsidade”.

Entre muitas outras consequências, a necessidade de uma validação imediata de todo e qualquer conteúdo vicia o direcionamento da nossa atenção. E, quando vemos, estamos repetindo por aí como se fosse a coisa mais natural do mundo: “ah, não tenho paciência…”; “precisa ser curto, rápido e divertido…”. Quando falamos que aprender não é consumir, é também por isso: aprender exige energia.

Nem toda ideia pode ser passada em 280 caracteres, principalmente quando queremos conhecer um novo assunto. Isso sem falar da importância do exercício da linguagem em si para o desenvolvimento do nosso pensamento (passar de 140 para 280 já bastou para que recuperássemos um mínimo de educação no Twitter!). Aprendizes não podem se conformar em ser escravos dos famosos 8 segundos do marketing de atenção. Nós podemos ser mais intencionais quando queremos aprender algo – saindo dessa posição de consumidor.  

É claro que não estamos falando daquelas aulas expositivas presenciais de 8 horas aos sábados (sim, eu tive!); podemos e devemos usar tecnologias e metodologias para deixar o aprendizado mais engajador. Mas não, não é possível aprender algo novo e complexo sem perceber, como quem come um balde de pipoca (ou passa 40 minutos rolando a timeline).

O processo de reflexão antes, durante e depois de uma atividade de aprendizagem, seja ela formal ou informal, é preciosíssimo, não podemos de forma alguma abrir mão dele. Pelo contrário, precisamos cada vez mais usá-lo de forma intencional.

Do essencial artigo da McKinsey de agosto de 2020, A habilidade mais fundamental: aprendizagem intencional e a vantagem na carreira (The most fundamental skill: Intentional learning and the career advantage. Tradução e grifo nossos):

“A metacognição, ou pensar sobre algo e direcionar o seu próprio pensamento, desempenha um papel crítico em todas as tarefas cognitivas, incluindo sua capacidade de refletir e aprender com as situações. A reflexão é uma habilidade de diagnóstico que ajuda você a se avaliar e determinar suas necessidades de aprendizagem, tanto à luz de seu próprio desempenho anterior quanto em comparação com especialistas reconhecidos. A reflexão ajuda você a desempacotar suas ações, a refinar as peças componentes e, em seguida, a juntar essas peças de forma a melhorar seu desempenho”.

Como podemos hackear aquele delicioso momento em que um facilitador/professor nos provoca a pensar e chegar nos mais preciosos insights?!

Algumas sugestões aqui – crie também as suas e compartilhe!

– Simplesmente pare de repetir para si mesmo que não tem paciência. Só isso não vai resolver, mas é um primeiro e importante passo. E desconstrua esse “clima” de ansiedade nos ambientes em que circula, sempre que tiver oportunidade. Dê-se o tempo e dê tempo.

– Leia. Parece uma sugestão surpreendente, mas ler exercita o pensamento complexo – e desenvolve a nossa capacidade de reflexão e aprendizado. Mas não vale ler a timeline apenas. Leia livros. De preferência, literatura. De preferência, romances. De preferência, clássicos. A experiência já dizia, mas agora a neurociência comprova: a leitura de romances faz bem para o cérebro. O campo da chamada “neurociência literária” (literary neuroscience) está em franco desenvolvimento e vem estudando como funciona nosso cérebro quando lemos literatura.  

“Já sabíamos que boas histórias podem colocá-lo no lugar de outra pessoa em um sentido figurado. Agora estamos vendo que algo também pode estar acontecendo biologicamente”, diz o neurocientista Gregory Berns em depoimento para este artigo de 2013, da Medical News Today, Ler um romance provoca mudanças duradouras no cérebro (Reading a novel triggers lasting changes in the brain). Seu experimento notou modificações duradouras nas áreas do cérebro relacionadas à linguagem e à principal região sensório-motora, associada à criação de representações de sensações para o corpo.

Mas não vale ler por ler. Outro estudo, realizado por Natalie Phillips, PhD em literatura inglesa em Stanford, investigou “como a cognição é moldada não apenas pelo que lemos, mas como lemos ”. A pesquisa de Phillips é relatada no artigo publicado em 2012 no site Stanford News, Este é o seu cérebro lendo Jane Austen, e os pesquisadores de Stanford estão fazendo anotações (This is your brain on Jane Austen, and Stanford researchers are taking notes). Os participantes foram convidados a ler de duas formas: como se estivessem passando os olhos em uma livraria e como se estivessem estudando para uma prova. Em ambos os tipos de leitura, há um aumento no fluxo sanguíneo do cérebro, mas em diferentes áreas. Phillips está interessada em saber o que acontece no cérebro durante a leitura atenta, que poderia servir – literalmente – como uma espécie de treinamento cognitivo, ensinando-nos a modular nossa concentração e usar novas regiões cerebrais à medida que nos movemos com flexibilidade entre os modos de foco.

A leitura de romances é uma forma de exercitarmos a concentração e o tempo do pensamento, variarmos pontos de vista e vivenciarmos novas realidades. Se colocamos esse exercício no nosso dia a dia, aprendemos a refletir de forma mais profunda sobre a vida (e o trabalho, que, afinal, faz parte dela).

– Por último, mas não menos importante para o processo reflexivo: trate a aprendizagem como um experimento, com olhar de cientista em laboratório. Faça testes e observe resultados. Estude as partes e o todo. Mude variáveis, observe mais. Refute hipóteses – inclusive aquelas que este texto traz. O que funciona melhor para você, como aprendiz, também muda em cada momento da sua vida.

Além de essencial à aprendizagem, o processo de reflexão ajuda no desenvolvimento do pensamento crítico, no autoconhecimento, na adaptabilidade e na tomada de decisão coerente aos seus valores. Não abra mão de algo tão precioso. E, além disso, contribua intencionalmente para a criação de ambientes que sejam inclusivos com os diversos ritmos. Nem sempre temos esse tempo, mas muitas vezes aplicamos a pressa a momentos em que ela não seria tão necessária assim, apenas por estarmos no piloto automático da execução – ou por estarmos acostumados com as curtidas instantâneas do Instagram.

A seguir, uma prática que anda junto com a reflexão no processo de aprendizagem.

Disfluência: sabe o que é?

Mesmo que não saiba, você já passou por processos disfluentes muitas e muitas vezes. Por exemplo, aqueles momentos “se vira nos 30” em uma aula, no qual precisou realizar uma atividade para a qual não se sentia preparado. Criar disfluência é gerar alguma dificuldade inicial para alcançar, posteriormente, um resultado melhor. Significa lidar com o novo conhecimento na prática, das muitas formas e níveis que isso pode acontecer. O desenvolvimento de um projeto complexo em grupo, o estudo ativo individual com exercícios e até mesmo o processo de anotar um pensamento a partir de uma conversa são processos disfluentes.

Adam Alter, professor da NYU, é uma referência no estudo da disfluência e diz:

Aparentemente, o importante é realizar alguma operação. (…) Se você obrigar uma pessoa a usar determinada palavra nova em uma frase, ela vai se lembrar dessa palavra por mais tempo. Se você obrigá-la a escrever uma frase com essa palavra, ela vai começar a usá-la em conversas.” – Citado em: DUHIGG, Charles. Mais rápido e melhor. Objetiva. p. 240. (Edição do Kindle).

Não é nenhuma grande novidade, certo? Essa ideia se aproxima muito das metodologias de “aprendizagem ativa”. Mas quando conheci o conceito de disfluência entendi que ele é mais preciso e aplicável para a construção da autonomia do aprendiz – que é o que queremos aqui! –, porque você pode criar disfluência na sua rotina, independentemente de ter alguém desenhando e conduzindo uma experiência de aprendizagem da qual participa.

No livro Mais rápido e melhor (Charles Duhigg, Objetiva), o capítulo 8 “Absorção de dados: transformando informação em conhecimento nas escolas públicas de Cincinnati” é dedicado a investigar como podemos superar a cegueira informacional – quando somos expostos a uma quantidade tão grande de informações que não conseguimos absorvê-las.

O capítulo explora o caso da melhoria da qualidade da escola pública South Avondale em Cincinnati, que era considerada uma “emergência acadêmica”, uma das piores do estado de Ohio, e se transformou completamente em apenas 2 anos. Como? Não foi com mais dinheiro – a escola já tinha um investimento alto, de “quase três vezes mais por aluno (…) do que o valor gasto por estudante em comunidades mais abastadas”. (p. 233)  

Então, em 2008, teve início a “Iniciativa Fundamental” (Elementary Initiative, EI), que consistia em criar condições e incentivos para que os educadores de fato usassem os dados disponíveis, interagindo com eles até que passassem a influenciar seu comportamento e tomada de decisão. Em vez de disponibilizar painéis sofisticados – que ninguém olhava –, as escolas passaram a ter uma “sala de dados” dedicada, na qual os professores manipulavam manualmente e coletivamente as informações.

“Eles precisavam traçar gráficos em folhas de papel pardo coladas nas paredes. Faziam experimentos improvisados — as notas melhoram se as crianças formarem grupos de leitura menores? O que acontece quando os professores trocam de turma? — e anotavam os resultados em lousas brancas. Em vez de apenas receber informações, eram obrigados a se envolver com elas.” – DDUHIGG, Charles. Mais rápido e melhor. Objetiva. pp. 235-236. (Edição do Kindle).

O processo disfluente dificulta um pouco o entendimento inicial da informação, mas depois proporciona uma compreensão mais profunda e duradoura. Significa, sim, ter mais trabalho. Mas é um trabalho recompensador. South Avondale passou a ser considerada “excelente”, com índices de aprovação altos nas provas estaduais e quadruplicando a quantidade de alunos. “A South Avondale melhorou drasticamente o desempenho acadêmico dos alunos no ano letivo de 2010-11 e mudou a cultura da escola”, dizia um relatório da subsecretaria. (p. 235)

Como podemos trazer disfluência para o dia a dia e potencializar nossos resultados de aprendizagem?

Algumas sugestões aqui – crie também as suas e compartilhe!

Em primeiro lugar, precisamos superar a “desculpa mais verdadeira de todos os tempos”: falta de tempo. O que vale mais: um livro lido com atenção, estudado e anotado ou 5 livros lidos no mesmo tempo com pouca absorção?

Claro, tudo depende do seu objetivo. Você pode apenas querer ter um panorama de determinado assunto. Sem problemas. Mas, tendo o objetivo de aprender, o melhor caminho é sem dúvida criar alguma disfluência – o que é muito diferente de consumir conteúdo. Colocar-se em relação ao conhecimento, fazendo efetivamente algo com ele, demanda esforço. Mas, segundo Charles Duhigg, é essencial para nos ajudar na “digestão de informações”.

Para criar disfluência, é necessário realizar operações com o novo conhecimento, o que implica “tirá-lo da sua cabeça”.

– Use sem moderação duas das ferramentas tecnológicas mais importantes que existem: papel e caneta. Anote, preferencialmente à mão – faz diferença sim, pois escrever manualmente gera mais disfluência do que digitar[1]. Use o papel como uma forma de visualizar os próprios pensamentos, refletindo a sua linha de raciocínio, fazendo sínteses e conexões com outros conteúdos. Para mim, funciona folhas soltas sem pauta, uma caneta simples para escrever e canetas coloridas para destacar. Minha habilidade de desenho é menor do que zero, então abuso da espacialidade para demonstrar a relação entre ideias e tenho alguns símbolos que classificam os conteúdos por relevância. Essa técnica funciona bem, principalmente quando estamos assistindo alguém falar. Confesso também que todos os meus livros de estudos são grifados – e preferência absoluta pelos impressos. Alguns que consulto muito tenho também a versão do Kindle, que ajuda nas buscas de palavras-chave. Será que é pela dificuldade em criar disfluência que ainda não me acostumei a estudar usando audiolivros? Pode ser.

– Angarie cúmplices: tive um chefe maravilhoso, que até hoje é meu amigo e mentor, que me chamava para “ajudá-lo a pensar”. Muitas vezes, eu não tinha profundidade no assunto, mas era ouvinte atenta e fazia boas perguntas. Eu funcionava como “escada” para ele, um termo que no teatro, principalmente o cômico, designa aquele que levanta a piada para o outro finalizar e ganhar aplausos. Se você tiver bons parceiros, eles podem aumentar o alcance da sua disfluência, atuando como escada que ajuda a testar o assunto. Mas atenção à reciprocidade! É fundamental também estar disponível para ser escada para o outro – e há muito o que aprender nesse papel.

– Compartilhe conhecimento, explique, ensine: a famosa – e controversa – Pirâmide do Aprendizado coloca o ato de ensinar na base, como a maior forma de retenção (90, 95%, depende da versão) de conhecimento. É importante saber que a Pirâmide já teve seu valor científico questionado (veja aqui e aqui) – as evidências metodológicas não sustentam os números e haveria outros fatores de influência no processo de aprendizagem.

De qualquer forma, isso não exclui o fato de que ensinar algo nos obriga a uma disfluência intensa com o assunto.

O físico Richard Feynman, além de um cientista brilhante (Nobel de Física em 1965), era famoso por sua habilidade de aprender e de ensinar assuntos complexos de forma simples. Ele criou a Técnica Feynman, que tem algumas etapas de disfluência anteriores: é necessário explorar, desconstruir o conhecimento e reconstruí-lo de forma simples, para só então ensinar. Você pode saber mais sobre a técnica aqui e aqui (curiosamente, também com alguma variação no número de etapas). Mas o que importa é que ela traz passos claros sobre como você pode gerar disfluência de forma autônoma.

“As pessoas que melhor conseguem aprender — as que são capazes de digerir os dados à sua volta, que têm ideias com base em suas experiências de vida e tiram proveito das informações que as cercam — são as que sabem aproveitar a disfluência. Elas transformam aquilo que a vida lhes oferece, em vez de apenas aceitar tudo do jeito que é. Sabem que as melhores lições são as que nos obrigam a fazer algo e a manipular informações. Pegam os dados e os transformam em experimentos sempre que possível.” DUHIGG, Charles. Mais rápido e melhor. Objetiva. p. 257. (Edição do Kindle).

Gere sentidos: sensemaking

“O sentido é uma silhueta que se recorta contra o fundo da realidade”.

Essa é uma das frases que mais gosto na vida, pela sua precisão conceitual e potência poética.

Foi escrita pelo neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl, fundador da Logoterapia e Análise Existencial. Seus livros são referência no campo, e esse de onde vem a frase acima é um ótimo começo – Sede de Sentido, escrito a partir de uma conferência proferida em 1974, que resume em menos de 90 pequenas páginas os conceitos humanísticos básicos da logoterapia.

Frankl não está falando de aprendizagem, mas a ideia cabe perfeitamente para nós, para complementar as ideias de reflexão e disfluência. Buscar sentido exige que nos coloquemos em atitude comprometida com o contexto em que vivemos e aprendemos. Para Frankl, o sentido não é injetado nas coisas, mas extraído delas. Por isso, uma silhueta que se destaca contra o fundo da realidade. “É uma possibilidade que se destaca luminosamente, e é também uma necessidade. É aquilo que é preciso fazer em cada situação concreta; e esta possibilidade de sentido é sempre, como a própria situação, única e irrepetível.” (p. 36)

O processo de dar sentido à aprendizagem no contato com a realidade é essencial para que façamos dela um ato efetivo de construção de futuro. Em tempos nos quais estamos mais isolados do que nunca, estamos também tomando decisões que influenciarão nosso futuro comum de forma definitiva. Fazer ativamente o exercício de colocar o conhecimento em contexto e dar novos sentidos para ele é essencial em nosso processo de aprendizagem e entendimento do mundo – lembrando que, como diz Howard Gardner em Cinco mentes para o futuro, não faz sentido pensar que deveríamos escolher entre o nível individual ou social. Precisamos associar as duas preocupações.

Chegando ainda mais perto do mundo da aprendizagem no trabalho, o consultor canadense Harold Jarche em seu artigo de 2017 Sensemaking e o poder das humanidades (Sensemaking and the power of humanities) diz que “Gerar sentido é nos conectar à nossa humanidade comum, é o talento humano”. Jarche trabalha a ideia de Personal Knowledge Mastery, um conjunto de processos, construídos individualmente, que nos ajudam a dar sentido ao mundo exterior e trabalhar melhor (saiba mais sobre o PKM).

O interessante é perceber que o processo é composto por 3 etapas – buscar, dar sentido e compartilhar (seek, sense e share, em inglês). Buscar conhecimento é apenas a primeira delas, na qual normalmente paramos. Dar sentido é uma etapa essencial, anterior ao compartilhamento. É quando damos sentido que colocamos valor, experimentando, sintetizando, comparando e validando o conhecimento no contexto.  

Fonte: Sensemaking in a networked world. Harold Jarche. Posted 2019-04-08.

E por que sensemaking é tão importante? Em nossos trabalhos – em organizações ou fora delas – tendemos a tratar as representações da realidade como a própria realidade. Tomamos os números como a finalidade em si, esquecendo-nos de que eles se referem a algo; e modelos como se fossem a totalidade dos sistemas complexos que simbolizam. Sem perceber, passamos a tomar decisões como se influenciassem um campo abstrato, enquanto elas têm consequências concretas na vida de pessoas, de forma direta ou indireta.  

São muitos os casos extremos desse tipo de conduta – alguns deles foram transformados em filme.

“Quanto vale?” (Worth. Sara Colangelo, 2021, Netflix. Veja o trailer) é um dos mais recentes e muito contundente – por relatar uma situação pouco conhecida em relação ao 11 de setembro. Conta a história do advogado Kenneth Feinberg (Michael Keaton), que é nomeado mediador para liderar o fundo de compensação às vítimas. Com uma carreira de sucesso e experiência em outros casos aparentemente semelhantes, Feinberg inicia o trabalho convicto de que a melhor solução é encontrar uma única fórmula que calcule “quanto vale” cada vida, sem exceções. E designa sua equipe para conversar com as vítimas, mantendo-se a uma rígida distância emocional. O filme contrasta brilhantemente a planilha às histórias de vida, levando a um desenlace que não vou contar aqui para não dar spoiler.

Outro exemplo: “O preço da verdade – Dark Waters”, de 2019, dirigido por Todd Haynes e estrelado por Mark Ruffalo (veja o trailer). Também baseado em uma história real, retrata a história do advogado Robert Billot, que descobre que a empresa química DuPont é responsável pela poluição de águas que ameaçam a vida de animais e pessoas. Depois de ir até o local e compreender efetivamente o que estava acontecendo – doença, morte, desespero –, Billot nunca mais pôde se esconder atrás das tecnicalidades contratuais. E isso lhe custou a dedicação de uma vida.

Claro que são casos extremos, e ao acompanhar os protagonistas nos indignamos com a falta de ética e humanidade dos tomadores de decisão. Mas são histórias atuais e impactantes porque reconhecemos nelas o mecanismo que leva ao caminho da perda do sentido humano do trabalho por quem está no poder. Cada um de nós, em sua dimensão e responsabilidade, pode se deixar levar por esse tipo de justificativa – perfeitamente racional, mas com pouco sentido.

Como podemos gerar sentido a partir das experiências do dia a dia, levando a aprendizados mais relevantes para si e para os outros?

Algumas sugestões aqui – crie também as suas e compartilhe!

– Interesse-se e busque aprender sobre as questões humanas – independentemente da sua área de atuação. No livro Sensemaking: o poder das humanidades na era do algoritmo (tradução nossa para Sensemaking: the power of humanities in the age of the Algotrithm),Christian Madsbjerg (citado por Jarche no artigo já mencionado), defende a importância das humanidades nesse processo de criação de sentidos. Indo além de nos possibilitar imaginar outros mundos, as ciências humanas nos possibilitam perceber melhor nosso próprio mundo. Isso nos ajuda a evitar o viés de confirmação e a enxergar padrões com base na teoria e na prática, construindo uma perspectiva original. Madsbjerg chama isso de “investigação cultural” (cultural inquiry) – um processo baseado em valores, que estamos correndo grande perigo de esquecer. “Com a criação de sentido, nós usamos a inteligência humana para desenvolver a sensibilidade através de diferenças significativas: o que importa para outras pessoas e para nós mesmos”. 

– Exercite o pensamento crítico sempre e – caso ocupe posição de liderança de equipes ou projetos – tenha atenção para que sua postura estimule o pensamento crítico dos demais.

– Use as perguntas como dispositivos construtores de sentido, muito além de captadores de informação. Uma boa pergunta pode revelar todo um campo a ser explorado, iluminar um novo caminho de investigação. Use as perguntas para buscar ativamente a diversidade de visões, inclusive a respeito de assuntos sobre os quais você acha que já tem muita certeza.

Um por todos, todos por um

Aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos e a ser. Esses são os 4 pilares do lifelong learning enumerados pela Unesco, que muitos de nós conhecemos e sabemos de cor. Mas tenho a impressão de que sempre passamos pelo “aprender a ser” de forma meio batida, sem compreender que efetivamente é a via integradora dos outros três. No relatório de 1996 Educação: um tesouro a descobrir, está dito de forma clara:

“… além das necessárias adaptações relacionadas à alteração da vida profissional, ela [a educação ao longo da vida] deve ser encarada como uma construção contínua da pessoa humana, dos seus saberes e aptidões, da sua capacidade de discernir e agir.” (p.18)

Quando falamos do fortalecimento da autonomia do aprendiz, estamos necessariamente passando por essa dimensão: o valor intrínseco da aprendizagem como forma de construção de si mesmo.

“Trabalhar é aprender, e aprender é o trabalho”, diz Harold Jarche. Ampliando a perspectiva, ganharemos a autonomia que almejamos como aprendizes quando entendermos que a aprendizagem não é apenas meio para algum objetivo – é o objetivo em si.

Ver a aprendizagem como consumo diminui o seu poder transformador e de ampliação da consciência. Sim, aprendendo mais e melhor você terá melhores resultados no trabalho e na vida, mas não esqueça que as dimensões individual e coletiva da aprendizagem são absolutamente interdependentes.

Colocando mais reflexão, disfluência e sensemaking em sua rotina, certamente você contribuirá para o fortalecimento de uma cultura de aprendizagem por onde quer que passe.

Mas isso não é tudo!

Claro que não. Nunca tive essa pretensão.

Caso você queira explorar mais, segue uma pequena curadoria:

– Artigo. Se ainda não leu, comece por: A habilidade mais fundamental: aprendizagem intencional e a vantagem na carreira (em inglês, The most fundamental skill: Intentional learning and the career advantage), de McKinsey – agosto de 2020.

– Livro. Mais rápido e melhor: os segredos da produtividade na vida e nos negócios. Charles Duhigg, Editora Objetiva, 2016. Ainda bem que precisei ler esse livro para um trabalho, pois perderia uma preciosidade afastada pelo título, que parece um ataque de marketing a desavisados crédulos. Cada capítulo aborda uma “chave” para a produtividade, com pesquisas e exemplos. E, ao final, ainda tem um apêndice, deixando as ideias ainda mais aplicáveis. Vários hacks de aprendizagem podem vir daí.

– Livro. Sede de sentido. Viktor Frankl. Editora Quadrante, 2016. Em pouco mais de 80 pequenas páginas entendemos a dimensão do que pode ser o “aprender a ser” – mesmo que o autor não fale disso de forma direta. Fantástico para entender um pouco mais o campo da psiquiatria, além do senso comum. Também é excelente para refletir sobre os tempos de desesperança em que vivemos. Como diz a contracapa: “Extremamente viva e acessível, reflete todo o otimismo de um homem que passou pelos campos de concentração de Auschwitz e Dachau sem deixar de crer, em momento algum, no sentido incondicionado da vida”. 

– Livro. Cinco mentes para o futuro. Howard Gardner. Artmed, 2007. Gardner explora as cinco mentes que, segundo ele, o mundo precisa que desenvolvamos (mais do que nós precisamos desenvolver para ter sucesso): disciplinada, sintetizadora, criadora, respeitosa e ética. Para ter a dimensão da importância da aprendizagem para projetos individuais e coletivos.

– Site de Harold Jarche, para entender porque “trabalhar é aprender e aprender é o trabalho”.


[1] “Em um estudo publicado em 2014, pesquisadores de Princeton e da UCLA examinaram a relação entre aprendizado e disfluência ao analisar a diferença entre alunos que faziam anotações à mão durante uma aula e os que usavam laptops. Registrar os comentários de um palestrante com papel e caneta é mais difícil e menos eficiente do que digitar em um teclado. Sentimos câimbra nos dedos. Escrever à mão é mais devagar do que digitar, então não dá para anotar tantas palavras. Por sua vez, estudantes que usam laptops passam menos tempo se esforçando durante uma aula e, mesmo assim, fazem cerca de duas vezes mais anotações do que os colegas que usam caneta. Em outras palavras, escrever é mais disfluente que digitar, porque exige mais trabalho e captura menos expressões literais.” DUHIGG, Charles. Mais rápido e melhor. Objetiva. p. 257. (Edição do Kindle).

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Clara Cecchini

Clara Cecchini é especialista em aprendizagem organizacional, consultora, escritora e palestrante. Coautora do livro Aprendiz Ágil, fundadora do Clube da Escrita CC e do Centro Brasileiro de Design de Aprendizagem.

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