Às vezes, podemos nos achar bem informados, até espertos demais. Podemos achar que algumas pessoas são tão tacanhas ou mesmo que estão sendo enganadas. E se, em vez de criticar aquilo que os outros acreditam, você soubesse de onde vêm suas crenças?
Cada pessoa tem seu conjunto de valores e crenças que costuma defender, o que pode causar incômodo ou repulsa em outras, se estes parecerem irracionais. Como certas pessoas podem acreditar em coisas tão malucas?
Valores e convicções – que possam parecer sem cabimento – muitas vezes têm um significado e um propósito. Pode ser que o propósito seja simplesmente compartilhar esses valores e crenças com outras pessoas que pensam de maneira parecida no intuito de fomentar um senso de comunidade ou dar sentido à vida delas. Parece que nós, como humanos, precisamos de algo que gere unicidade e coesão. Pode ser algo como acreditar que as quilométricas linhas de Nazca, ou os misteriosos moais da Ilha de Páscoa, entre outros grandes mistérios arquitetônicos sejam resultados de intervenções alienígenas. Não importa, desde que essas crenças não causem nenhum dano, tudo bem.
Geralmente supomos que nosso conjunto de valores e crenças, que são evidentes para nós, deveria ser adotado por todos. Isso pode causar frustração. Se buscamos criar um bom nível de entendimento entre aqueles que nos cercam ou mesmo não nos revoltar com algumas postagens que vemos nas redes sociais, precisamos pelo menos tentar entender a mentalidade das pessoas que pensam diferente de nós.
Para isso, David Byrne, resgatou em seu artigo dessa semana, chamado “A Tool for Understanding” um conjunto de valores morais básicos proposto há alguns anos pelo psicólogo social Jonathan Haidt em seu livro The Righteous Mind (A Mente Moralista). Haidt destacou a importância de cada valor para nós como indivíduos como determinante do nosso comportamento. Sem querer entrar no mérito o quão inatos ou universais sejam esses valores, ou se eles seriam mais do que seis ou se seriam menos, Byrne, que é fundador de Reasons to be Cheerful (assista sua palestra no SXSW 2019), considera uma ferramenta útil para entender pessoas com pontos de vista diferentes dos nossos. “Essas ferramentas ajudam a evitar que alguém se sinta superior. Elas permitem imaginar o que a outra pessoa pode estar pensando e por que acredita no que acredita – porque, na realidade, nós compartilhamos muitos dos mesmos valores”, explica.
Estes são os valores (e seus opostos):
1. Cuidado / Dano. Somos todos uma família e devemos ter compaixão por todos os outros, tanto quanto podemos. O sofrimento deve ser eliminado, se possível.
2. Justiça / Trapaça. Uma sociedade deve se esforçar para ser justa. A justiça deve ser igual para todos. A cooperação é melhor do que a crueldade. O outro lado é que trapaceiros devem ser desprezados ou punidos.
3. Lealdade / Traição. A lealdade à própria família, comunidade, equipe, negócios e nação é essencial. É a força que mantém as coisas unidas.
4. Autoridade / Subversão. Deve-se cumprir a lei, concordando com ela ou não. Nosso acordo coletivo para obedecer às instituições sociais e jurídicas é o que nos faz funcionar como sociedade.
5. Sacro / Degradação. Pureza, retidão, temperança, e moderação estabilizam nosso mundo. Certos comportamentos são imorais e devem ser evitados.
6. Liberdade / Opressão. Deve-se permitir que as pessoas sejam livres em suas palavras, pensamentos e comportamentos, desde que não prejudiquem outras pessoas.
Byrne nos convida a perceber o valor em cada um desses seis valores. Nenhum deles parece errado. Cada pessoa irá priorizar ou se identificar com um ou outro valor de acordo com suas inclinações pessoais. Esse é exatamente o ponto. Aqueles valores que priorizamos determina nossa política, como nos comportamos e como pensamos em relação aos outros. “Eu faço isso, você faz isso, todos nós fazemos isso”, justifica.
Para Haidt, os valores que priorizamos determinam em que ponto estamos no espectro político. Por exemplo, enquanto os liberais tendem a enfatizar o cuidado e a justiça, os conservadores tendem a valorizar a lealdade, a retidão e a autoridade (embora, como Haidt aponta, nenhum dos grupos desconsidere o cuidado e a justiça – é sobre lealdade, pureza e autoridade que os liberais e conservadores realmente divergem.)
Byrne exemplifica: “como alguém que valoriza demasiadamente o cuidado e a justiça, eu posso apoiar leis que assegurem que todos, independentemente de suas crenças, devem tratar pessoas LGBT como cidadãos iguais. Mas pessoas que classificam a pureza acima do cuidado ou da justiça em sua hierarquia de valores podem sentir que a homossexualidade é “antinatural” e que “degrada” a santidade, portanto, anula a necessidade de igualdade.”
Outro exemplo citado por Byrne é o uso de máscaras para proteção contra a COVID-19. Algumas pessoas acreditam que as regras do uso de máscara interferem em sua liberdade pessoal; sentem que seus direitos individuais (liberdade) têm precedência sobre os da comunidade. Já outros dão um peso maior à cooperação e à saúde do coletivo (cuidado), não por acharem que liberdade não importa, mas por entenderem que esse valor precisa ser restringido para o bem de todos.
Algumas pessoas podem sentir que, para desafiar leis injustas, às vezes é preciso violá-las (justiça). Outras discordarão e dirão “lei é lei” (autoridade). Muitos acreditam que a liberdade de expressão é um direito absoluto (liberdade) e se outras pessoas são magoadas, ofendidas ou se sentem discriminadas pelo que é dito, esse seria o preço da liberdade. “Em geral, eu pessoalmente compartilho esse valor, mas não o vejo como absoluto – há momentos em que talvez deva ser regulamentado se tiver a intenção de causar danos ou incitar a violência (cuidado, justiça). O que quero dizer é que posso ver algum valor em todos esses valores”, diz Byrne que também chama a atenção para um ponto importante: o fato de que, mesmo que todas as nossas crenças (díspares) sejam oriundas dos mesmos seis valores não significa que todas elas tenham o mesmo mérito, ou mesmo algum mérito. Priorizar alguns valores – como pureza de raça ou pátria – pode justificar um comportamento desumano.
Byrne cita Adam Gopnik, que ao escrever sobre o “anjo da morte” (o nazista Josef Mengle) no The New Yorker, observou: “Não há nada de surpreendente em pessoas educadas fazendo o mal, mas ainda é incrível ver como eles constroem uma base lógica para permitir que façam isso, trazendo razões plausíveis na autojustificação, até que, como Mengele, sejam capazes de se olhar no espelho todas as manhãs com autocomplacência.” A questão reforçada por Byrne é que não devemos desculpar comportamentos que possam prejudicar os outros – devemos simplesmente tentar entender por que esses comportamentos acontecem e os mecanismos que são usados para justificá-los. “Parafraseando a escritora Hannah Arendt quando foi acusada de justificar o que os nazistas fizeram: Compreender não é desculpar”, ilustra.
Em seu livro, Haidt mostra que as pessoas argumentam para apoiar suas próprias conclusões. A razão não funciona como um juiz ou um professor, para pesar as evidências de maneira imparcial ou deixar-se guiar pela sabedoria. Haidt invoca uma hipótese evolucionária: competimos por status social, e a principal vantagem nessa luta é a capacidade de influenciar os outros. Portanto, se você quiser mudar a opinião das pessoas, conclui Haidt, não apele para a razão delas. Apele para o chefe da razão: as intuições morais subjacentes cujas conclusões a razão defende.
O que tudo isso pode nos dizer? Para Byrne significa que, embora você possa discordar de algumas pessoas em certas questões, essas discordâncias estão enraizadas em valores que elas – e você, até certo ponto – compartilham. “Nossas crenças e nossa política podem ser muito diferentes e, no entanto, ao reconhecer os valores por trás delas, posso, até certo ponto e em alguns casos, sentir empatia e entender por que alguém pode se sentir diferente sobre um assunto mais do que eu. Isso me ajuda a não julgar as pessoas como ignorantes ou más, e nos dá uma base, um lugar para começar uma conversa”, finaliza.
Ilustração da capa: David Byrne
O julgamento pode impedir o diálogo. Dialogar pressupõe acolher, permitir a aproximação das crenças… as possíveis tensões entre crenças podem gerar diálogo, ao passo que os julgamentos o impede.