Estudei dança mais de dez anos. Embora fascinada com os ritmos e os movimentos do jazz, com os ensaios e as fantasias dos festivais anuais, simplesmente, como talvez muitas garotas contemporâneas, abandonei equivocadamente a dança, para focar no aterrorizante vestibular. Etapa superada, já na graduação em Economia, não percebia nas aulas e nos conteúdos nenhuma correlação com a dança e jamais um professor levantou sequer essa possibilidade de conexão.

As ciências econômicas formam profissionais com forte conhecimento matemático e das relações humanas, capazes de analisar a produção e o consumo de bens e serviços, de investigar os fenômenos econômicos com base nas características da sociedade, seus comportamentos, questões políticas e relações sociais. A produção da dança em si, não lida necessariamente com um produto ou um artefato tangível, mas sim com a troca de conhecimento, busca da excelência, suporte, ideias e oportunidades. Um processo coreográfico pode potencialmente ser visto como uma transação de serviço fornecida por um coreógrafo para um dançarino. Essas “transações coreográficas” podem ser consideradas como eventos experimentais que tomam corpo e que são orientados ao consumidor, envolvendo tanto o dançarino quanto o criador da dança [coreógrafo], em uma troca criativa vital.

Essas “transações” se alinham às abordagens do século XXI que buscam a criatividade e a autonomia no trabalho, ajudando a superar as estruturas tradicionais de poder, incentivando novas formas de trabalhar de forma colaborativa.

Será que a dança poderia também ser vista como uma microeconomia ‘incorporada’ orientada a serviços e orientada ao consumidor, onde o dançarino é o consumidor, como propõe a dançarina Sarah Foster-Sproull? Ela, inclusive, desconstrói a noção do coreógrafo como único autor da dança, propondo um esforço criativo mais colaborativo: “Descobri que pensar sobre meu processo criativo dessa maneira desafia estruturas patriarcais que frequentemente ditam meu processo criativo. Proporciona a oportunidade de ter muitas vozes sendo ouvidas sobre quais temas devemos explorar na coreografia. A recriação da dança para se concentrar no serviço que o coreógrafo presta aos bailarinos dá oportunidades de auto-aprendizagem e autonomia do bailarino dentro da minha prática de estúdio”, reflete Sarah.

Hoje, vejo claramente como esse background da Economia e principalmente da Dança me ajuda a priorizar vozes plurais no processo criativo, tanto para pensar cenários futuros quanto para mapear comportamentos e tendências emergentes, no meu dia a dia no O Futuro das Coisas. E, na economia criativa do século XXI, é importante compreender como as interações entre grupos podem ser organizadas em processos criativos colaborativos, e que podem ter implicações no crescimento econômico, social, político e cultural.

E o que a dança tem a ver com cientistas e futuristas?

Para a maioria das pessoas a dança é apenas um hobby ou simplesmente uma maneira de corrigir a postura ou manter a boa forma física. Entretanto, a dança é, antes de qualquer coisa, uma expressão artística que usa o corpo de diferentes maneiras para evocar emoções no espectador. Podemos dizer que o dançarino profissional é um artista.

A rotina não é fácil. Além de ser preciso desenvolver uma rigorosa disciplina, ser perseverante e resiliente, dançarinos e coreógrafos precisam conviver com um mercado altamente competitivo, enfrentando uma disputa constante pelos melhores papéis e os primeiros lugares em concursos, embora, na maioria das vezes, eles atuem como um time na hora da dança, num encadeamento colaborativo, harmônico e preciso. Diante de um treinamento intenso para dominar técnicas de movimentação corporal como ritmo, equilíbrio, alinhamento e controle respiratório, o dançarino acaba desenvolvendo um conjunto de habilidades e competências altamente desejáveis. E isso começa a entrar no radar de outras áreas, principalmente na Ciência e na Tecnologia.

Coreógrafos e dançarinos já colaboram com cientistas há algum tempo, em projetos que unem os dois campos. Ultimamente, porém, temos ouvido falar cada vez mais desses profissionais não apenas colaborando com cientistas – mas eles próprios atuando nessa área.

Merritt Moore é bailarina profissional e física quântica. (Crédito: Science Oxford)

Merritt Moore, por exemplo, vive digamos uma “vida dupla”, como bailarina profissional e física quântica. Enquanto dançava no Zurich Ballet e no Boston Ballet, se formou em Harvard em Física. Atualmente, faz doutorado em Física Quântica em Oxford e paralelamente se apresenta no English National Ballet e no London Contemporary Ballet, e ainda espera acrescentar outra profissão em breve: a de astronauta.

Moore recomenda que todo dançarino tenha uma segunda carreira ou paixão e está convencida de que isso a torna uma dançarina melhor. “Ter um interesse não relacionado à dança mantém as coisas numa melhor perspectiva e faz você realmente valorizar o privilégio que é dançar. Todos sabemos que o mundo da dança às vezes pode ser um pouco maluco e é inevitável ficarmos inseguros e nos sentindo julgados. Mas se você tem uma segunda carreira, isso lhe dá a liberdade de não se importar tanto. O balé me ​​ensinou a ter persistência, e essa é de longe a minha maior força”

Maya trabalhando no Bill T. Jones’ Body, Movement, Language no Google Creative Lab. (Cortesia: Maya Man)

Outra dançarina para acompanhar é Maya Man, tecnóloga do Google Creative Lab que além de ser excelente em hip-hop, tem trabalhado na interseção entre movimento e máquinas. Recentemente, colaborou com o coreógrafo Bill T., explorando como o aprendizado de máquina pode aumentar a expressão artística. O projeto está no site BillTJonesAI.com.

Adeene Denton em seu TedX talk “Netflix and Chill at 0 Kelvin.” (Foto de TedXProvidence. Cortesia: Denton)

Adeene Denton, em seu doutorado em geologia planetária tem usando seu conhecimento de dança para entender como os corpos podem se mover e gerar significado durante viagens interestelares. Sua palestra no TEDx, “Netflix and Chill at 0 Kelvin”, questiona: como iremos dançar quando a gravidade não mais nos limitar? Já a coreógrafa Catie Cuan, que tem doutorado em engenharia mecânica em Stanford, está ensinando robôs a dançar.

Wayne McGregor (à direita) com um dos tecnólogos do Google Arts & Culture. (Cortesia: Wayne McGregor)

O coreógrafo britânico Wayne McGregor, juntamente com engenheiros e tecnólogos do Google Arts & Culture, recentemente treinaram um algoritmo, chamado “Living Archive“, usando milhares de horas de vídeo de trabalhos anteriores dele ao longo de 25 anos. O algoritmo também aprendeu como cada um dos dez dançarinos de McGregor se movimentam. O sistema não apenas entende os movimentos, mas também cria coreografias originais com base em seu estilo.

Há outros dançarinos, bailarinos e coreógrafos, criando coisas incríveis com seu background em Dança. Imagino que nessa próxima década, todos os campos científicos irão se beneficiar, e muito, com o conhecimento singular desses profissionais. Os futuristas/futurólogos que prospectam cenários, preparam empresas e pessoas para mudanças repentinas e a gerenciarem as incertezas, também têm muito a aprender com eles. Afinal, no palco do teatro ou no palco da vida tudo pode acontecer e é preciso pensamento adaptativo, precisão, cooperação, resiliência, dentre outras habilidades as quais os dançarinos têm se destacado.

Crédito da imagem da capa: Wayne McGregor

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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