Mariana Mazzucato, uma das economistas mais influentes do mundo, conseguiu demonstrar que o verdadeiro motor da inovação não provém de algumas mentes geniais, como a maioria pensa. Agora, ela está atuando junto ao governo do Reino Unido, União Europeia e ONU para aplicar sua abordagem aos maiores desafios globais.
A Wired publicou recentemente uma matéria extensa com ela, escrita por João Medeiros, a qual traduzimos a seguir. Acreditamos que para construir um futuro de inovação coletiva é importante entender o que essa economista ítalo-americana tem a dizer.
No início de 2011, três anos após a crise financeira de 2008, o governo de coalizão [no Reino Unido] formado por conservadores e democratas liberais decidiu prosseguir uma política fiscal austera que forçava os conselhos a reduzir os serviços públicos, o que por sua vez acabou por contribuir para aumentar a presença de pessoas nas ruas [sem-teto], como também aumentou o crime. “No meu bairro, clubes, centros da juventude, bibliotecas públicas, policiamento e orçamentos para a saúde mental foram cortados, afetando as pessoas mais vulneráveis da sociedade. Foi muito triste,” lembra Mariana.
O que particularmente a irritou foi a justificativa de que tais cortes eram necessários para aumentar a competitividade e a inovação. Em março de 2011, o primeiro-ministro David Cameron fez um discurso rotulando os funcionários públicos que trabalhavam no governo de “inimigos das empresas”. Naquele mesmo ano, em novembro, ele visitou Truman Brewery, uma área no leste de Londres, para anunciar seus planos para um novo cluster de tecnologia chamado Tech City. “Eles estavam exaltando empreendedores e dispensando o resto do mundo”, lembra. “Havia a crença de que não tínhamos Googles e Facebooks europeus porque não seguíamos a abordagem de mercado livre do Vale do Silício.”
Foi então que Mariana, que passou décadas pesquisando a economia da inovação e a indústria de alta tecnologia, decidiu aprofundar a história de algumas das empresas mais inovadoras do mundo. O desenvolvimento do algoritmo de busca do Google, por exemplo, foi apoiado por uma concessão da National Science Foundation, um organismo público de concessão de bolsas dos EUA. A empresa de carros elétricos Tesla recebeu um empréstimo de US$ 465 milhões do Departamento de Energia dos EUA. Na realidade, três empresas fundadas por Elon Musk – Tesla, SolarCity e SpaceX – foram todas beneficiadas com quase US$ 4,9 bilhões. Muitas outras startups conhecidas nos EUA foram financiadas pelo programa Small Business Innovation Research, um fundo público de capital de risco. “Não era [o investimento] apenas para a pesquisas iniciais, mas também para pesquisas aplicadas, financiamentos semente, compras estratégicas”, diz ela. “Quanto mais eu vasculhava, mais percebia: o investimento estatal está em toda parte.”
Mariana descreveu suas descobertas em 150 páginas enviadas para o Demos, um think tank de políticas do Reino Unido, que as distribuiu para milhares de formuladores de políticas, acabando por receber cobertura nos jornais. “Era óbvio que eu havia tocado um nervo”, diz ela. “Quanto mais eu pensava sobre isso, mais queria ir direto ao cerne dos mitos sobre inovação”. Ela então decidiu dissecar o produto que simbolizava as proezas de engenharia do Vale do Silício: o iPhone.
Mariana mapeou a procedência de toda a tecnologia que amparou o iPhone. O protocolo HTTP, por exemplo, havia sido desenvolvido pelo cientista britânico Tim Berners-Lee e implementado nos computadores do CERN, o centro europeu de pesquisa nuclear em Genebra. A internet começou como uma rede de computadores chamada Arpanet, financiada pelo Departamento de Defesa dos EUA (DoD) nos anos 60 para resolver o problema da comunicação via satélite. O Departamento de Defesa também estava por trás do desenvolvimento do GPS durante os anos 70, inicialmente para determinar a localização de equipamentos militares. Unidades de disco rígido, microprocessadores, chips de memória e telas de LCD também foram financiados pelo Departamento de Defesa. Siri [da Apple] foi o resultado de um projeto do Stanford Research Institute (SRI) para desenvolver um assistente virtual para o pessoal militar, encomendado pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA). A tela sensível ao toque foi resultado de uma pesquisa de pós-graduação na Universidade de Delaware, financiada pela National Science Foundation (NSF) e pela CIA.
“Steve Jobs, merecidamente, foi chamado de gênio pelos produtos visionários que concebeu e comercializou, [mas] essa história cria um mito sobre a origem do sucesso da Apple”, escreve em seu livro The Entrepreneurial State, de 2013. “Sem o enorme investimento público por trás das revoluções do computador e da Internet, esses atributos poderiam ter levado apenas à invenção de um novo brinquedo”.
Porém, uma narrativa de inovação que omitia o papel do Estado era exatamente o que as empresas estavam disseminando, enquanto faziam lobby por regulamentações mais frouxas e baixa tributação. De acordo com um estudo dela e do economista Bill Lazonick, entre 2003 e 2013, as empresas listadas publicamente no índice S&P 500 usaram mais da metade de seus ganhos para recomprar suas próprias ações e aumentar os preços delas, em vez de reinvesti-las em novas pesquisas e desenvolvimento. A empresa farmacêutica Pfizer, por exemplo, gastou US$ 139 bilhões em recompras de ações. A Apple, que nunca havia se metido nesse tipo de engenharia financeira na gestão de Jobs, começou a experimentar em 2012. Em 2018, gastou quase um trilhão de dólares em recompras de ações. “Esses lucros poderiam ter sido usados para financiar pesquisas e treinamentos para trabalhadores. Em vez disso, de forma frequente, foram usados em recompras de ações”, lamenta.
Isso expôs um problema urgente e fundamental. Se era o Estado, e não o setor privado, que tradicionalmente assumia os riscos de empresas tecnológicas focadas no desenvolvimento da aviação, energia nuclear, computadores, nanotecnologia, biotecnologia e internet, como então encontraríamos a próxima onda de tecnologias para enfrentar desafios urgentes, como mudanças climáticas catastróficas, epidemia de resistência a antibióticos, aumento da demência na população? “A história nos diz que a inovação é resultado de um grande esforço coletivo – não apenas de um grupo restrito de jovens brancos na Califórnia”, diz Mariana. “E se queremos resolver os problemas mais desafiadores do mundo, temos que entender melhor isso.”
Crédito: Matt Holyoak
Uma de suas lembranças mais vivas na infância era quando o seu pai Ernesto, físico de fusão nuclear da Universidade de Princeton, xingava as notícias na TV. Ela dizia: “Pai, isso é apenas uma informação”, ao qual ele respondia: “Isso não é informação, é exatamente o que eles estão tentando fazer você acreditar”. “Um olhar crítico foi a primeira coisa que meu pai me incutiu”, diz. Agora, após a publicação de The Entrepreneurial State, Mariana tornou-se assídua nos programas de TV, frequentemente fazendo críticas devastadoras e eloquentes às crenças econômicas. Quando perguntada sobre a evasão fiscal do Google por Jon Snow no Channel 4 News, ela respondeu: “Esse não é o problema. O verdadeiro problema é que as pessoas não têm conhecimento sobre os acordos nos bastidores que Googles, Apples, Glaxos e Pfizers têm feito com os tesouros ao redor do mundo em política tributária.”
O fato de que a mensagem principal de seu livro tenha ressoado com o público em geral não a surpreendeu. “Os empresários do Vale do Silício raramente reconheciam que estavam sobre os ombros de gigantes. Foi uma convocação aos inovadores para avançar e reconhecer isso”, diz Saul Klein, cofundador LocalGlobe, uma empresa de capital de risco. “Houve um esforço muito forte, nos últimos 40 anos, para essa construção intelectual que foi vendida ao governo e à sociedade sobre o livre mercado, apoiada por empresários que tentavam contar uma história que lhes era vantajosa,” diz o magnata da tecnologia Tim O’Reilly. “Agora, está bastante claro que há algo errado com essa história. Precisamos de uma nova teoria para substituir isso, e Mariana é uma das economistas que tentam construir uma narrativa real”.
Mariana ficou surpresa ao encontrar apoiadores dentro do governo inglês de coalizão. “Para ser sincera, já que eu tinha escrito em toda na minha vida principalmente coisas acadêmicas, não havia risco real de eu parecer uma comunista”. Esse apoio veio do secretário de negócios Vince Cable, que fundou os centros Catapult para promover parcerias entre cientistas e empresários; e o investimento das “oito grandes tecnologias” anunciado por David Willetts, Ministro das Universidades e Ciência. “Houve uma lacuna no conservadorismo ao oferecer uma descrição construtiva do papel do estado”, diz Willetts. “Mariana fez um relato do papel do governo que não era do governo mínimo nem do socialismo tradicional. Eu pude defender no governo que isso não era um experimento de socialismo de esquerda. É o que acontece na América republicana.”
Logo, ela se tornou uma visitante assídua da Whitehall, aconselhando Cable e Willetts em políticas como a Small Business Research Initiative, que financiava pequenas e médias empresas, e a caixa de patentes, que reduziu a taxa de imposto sobre as receitas derivadas de patentes (que ela chama de “a política mais estúpida de todos os tempos”).
Mariana sabia que para influenciar os políticos precisaria fazer mais do que apenas criticar. “A razão pela qual os progressistas geralmente perdem o argumento é que se concentram demais na redistribuição de riqueza e não o suficiente na criação de riqueza. Precisamos de uma narrativa progressista que não seja apenas sobre gastos, mas que seja investir de formas mais inteligentes”.
Na época, ela estava cada vez mais interessada no que chamava de organizações orientadas para missão. A principal referência foi a DARPA, a agência de pesquisa fundada pelo presidente Eisenhower em 1958, após o lançamento do Sputnik pela União Soviética. A agência investiu bilhões de dólares no desenvolvimento de protótipos que precederam a tecnologia comercial, como Microsoft Windows, videoconferência, Google Maps, Linux e nuvem. Em Israel, o Yozma, um fundo de capital de risco apoiado pelo governo, administrado entre 1993 e 1998, apoiou mais de 40 empresas. No Reino Unido, o Government Digital Service, lançado em 2010, estava por trás do premiado domínio.gov.uk, economizando ao governo 1,7 bilhão de Libras em compras de TI. “Quando uso a palavra ‘estado’, estou falando de uma rede descentralizada de diferentes agências estatais”, explica. “Quando essas agências são orientadas para missão de solucionar problemas e estruturadas para assumir riscos, elas podem ser um mecanismo de inovação.”
Para Mariana, o epítome do conceito orientado para missão era o programa Apollo, o programa espacial projetado para levar americanos à Lua e devolvê-los em segurança à Terra. Entre 1960 e 1972, o governo dos EUA gastou US$ 26 bilhões para conseguir exatamente isso. Mais de 300 projetos diferentes contribuíram, não apenas para a aeronáutica, mas em áreas como nutrição, têxtil, eletrônica e medicina, resultando em 1.800 produtos, de alimentos liofilizados a roupas de resfriamento, pneus de molas e controle digital de voo fly-by-wire, sistemas utilizados em aviões comerciais. O programa também foi fundamental para impulsionar a indústria do circuito integrado, uma tecnologia não comprovada na época e outros projetos espaciais, como o Ônibus Espacial e a Estação Espacial Internacional | NASA.
O modus operandi dessas instituições orientadas para missão deu a ela um repertório alternativo que contava uma história diferente sobre o papel do Estado. “A economia está cheia de histórias”, diz. “Palavras como “habilitar”, “facilitar”, “gastar” e “regular” – criam uma história do estado como chato e inerte. Torna-se uma profecia autorrealizável. Precisamos de uma nova narrativa para orientar melhor as políticas.” Essas instituições orientadas para missão estavam ativamente criando e moldando mercados, em vez de apenas consertá-los. Eles buscavam ambiciosamente orientações de alto risco para pesquisa e investimento, em vez de terceirizar e evitar incertezas.
A colaboração de Mariana com o governo inglês foi suspensa após as eleições gerais de 2015: Willetts saiu e Cable perdeu a cadeira. Naquela época, porém, ela havia se tornado globalmente conhecida – trabalhando com a democrata norte-americana Elizabeth Warren no financiamento público para inovação em saúde e assessorando o primeiro ministro escocês Nicola Sturgeon no desenvolvimento de um banco de investimento nacional escocês. Mariana também lançou um novo departamento de economia na University College London, o Instituto de Inovação e Propósito Público (IIPP) – com a missão de treinar a próxima geração de funcionários públicos na teoria das políticas orientadas para missão. “Queremos que eles pensem de maneira estratégica e ambiciosa para o bem público e, como dizia Steve Jobs, “stay hungry and stay foolish.”
No início de 2017, Carlos Moedas, Comissário Europeu de Pesquisa, Ciência e Inovação, ofereceu à ela uma posição de consultora especial, a qual aceitou. “Eu queria que o trabalho tivesse um impacto. Caso contrário, é o socialismo do champanhe: você entra, fala de vez em quando e nada acontece.” Ela sugeriu reformular o programa europeu de pesquisa e inovação como o Horizon Europe, uma iniciativa de 100 bilhões de euros, orientada a missões, que deve começar em 2020. Moedas deu carta branca para prosseguir com o projeto.
A Comissão Europeia tradicionalmente estruturava suas políticas em termos de grandes desafios, mas o conceito de missões trazida por Mariana as traduz em projetos concretos: a Guerra Fria foi um desafio; aterrissar na Lua era uma missão. Em fevereiro de 2018, ela publicou um relatório – intitulado Pesquisa e Inovação Orientada a Missões na União Europeia – no qual definiu cinco critérios que as missões devem obedecer: ser ousadas e inspirar os cidadãos; ser ambiciosas e arriscadas; ter uma meta e um prazo claros (você deve ser capaz de responder inequivocamente se a missão foi cumprida até o prazo final ou não); ser interdisciplinar e intersetorial (erradicar o câncer, por exemplo, exigiria inovação em saúde, nutrição, inteligência artificial e produtos farmacêuticos); e permitir a experimentação e várias tentativas de solução, em vez de ser micro gerenciadas de cima para baixo por um governo.
No relatório, ela ilustrou como seriam as missões com três exemplos hipotéticos: oceanos sem presença de plástico, 100 cidades neutras em carbono até 2030 e diminuir a demência em 50%. A missão de oceanos limpos pode envolver a remoção de metade do plástico que já polui os oceanos e a redução de 90% da quantidade de plástico que entra neles antes de 2025, por meio de projetos como estações autônomas de coleta de plástico ou redes distribuídas. A solução exigiria a invenção de alternativas ao plástico, o design de novas formas de embalagem de alimentos e a criação de sistemas de Inteligência Artificial (IA) que pudessem separar o lixo automaticamente. “Estes foram apenas exemplos para eliminar as dificuldades”, resume. “Quando as pessoas falam sobre missões, eu sempre as aviso: se isso é algo que faz você se sentir confortável e feliz, você não entendeu, porque trata-se de mudar fundamentalmente a maneira como pensamos sobre inovação.”
Crédito: Matt Holyoak
Em março de 2018, Mariana foi contatada por dois membros de um movimento político progressista nos EUA chamado Justice Democrats. Ela não tinha ideia de quem eram Saikat Chakrabarti e Zack Exley. “Eles diziam que estavam tentando trazer uma nova onda de jovens políticos”, lembra ela. “Foi mais curiosidade do meu lado ouvir o que estava acontecendo nos EUA, porque eu tinha meio que perdido o contato.”
Chakrabarti e Exley já haviam trabalhado para a campanha presidencial de Bernie Sanders em 2016. Chakrabarti então cofundou um comitê de ação política com o objetivo de recrutar 400 candidatos oriundos da classe trabalhadora para concorrer ao Congresso. “A ideia era criar uma nova convenção dentro do Partido Democrata”, diz Chakrabarti. “Temos pessoas como Donald Trump na Casa Branca, a liderança do Partido Democrata está agindo como se ainda fosse 1995. A verdadeira divisão não está entre esquerda e direita. Está entre ambição e não ambição. Queríamos uma visão alternativa da sociedade que fosse revolucionária. O que foi emocionante em conhecer Mariana é que não havia muita gente nos EUA falando sobre esse tipo de ideia.”
Em Londres, na casa de Mariana, os dois disseram a ela que, em três meses, esperavam ter funcionários eleitos no Congresso que estariam dispostos a falar sobre grandes ideias políticas, particularmente sobre mudanças ambientais. Um dos candidatos mais promissores era uma jovem de Nova York, chamada Alexandria Ocasio-Cortez.
Em junho de 2018, Ocasio-Cortez derrotou Joe Crowley, titular de 10 mandatos nas primárias democratas, chocando o establishment político e, com efeito, garantindo ela mesma um lugar no Congresso.
Um mês depois, Mariana e Ocasio-Cortez conversaram pelo Skype pela primeira vez. A conversa delas girou em torno de uma nova e ambiciosa política industrial que os Democratas da Justiça estavam chamando de Green New Deal (Novo Acordo Verde). Mariana havia sido uma das autoras, em colaboração com a economista Carlota Perez. “O mais importante é parar de pensar que devemos sacrificar nosso modo de vida para resolver nossos problemas ambientais”, diz Perez. “Sempre pensamos nisso como uma oportunidade de transformar nossa sociedade de uma maneira também mais justa e socialmente sustentável”.
Para Mariana, um Green New Deal poderia ser tão ousado quanto a viagem à Lua em 1969. “Quando meu livro foi lançado, Bill Gates me convidou para ir à Seattle. Ele me disse que seguiu líderes do setor público no que diz respeito à TI e que agora estava preocupado que não pudesse ver o público liderando em práticas verdes da mesma maneira.” Um New Deal Verde envolveria, como ela diz, “esverdear toda a economia”, transformando não apenas o setor de energia renovável, mas todos os aspectos da produção. Exigiria incentivos fiscais e desincentivos para combater altos poluidores e incentivar a inovação em áreas como desperdício e durabilidade. Isso exigiria financiamento de longo prazo.
Em 11 de setembro, Mariana e Ocasio-Cortez se encontraram no restaurante Firefly, em Sunnyside, Nova York. Elas falaram sobre tudo, desde a questão do retorno ao investimento público até a noção de cocriação de mercado versus ajuste de mercado. “Ela é bastante acadêmica”, observou Mariana. “Era muito mais fácil conversar com ela sobre essas coisas do que normalmente é com um político que só quer mídia.”
Ocasio-Cortez também pediu conselhos à economista sobre como transmitir melhor sua mensagem aos eleitores. Em 2009, quando Obama propôs sua reforma da saúde, ele teve que garantir às pessoas que os burocratas do governo não estavam se intrometendo. “Interessante, mas isso não prendeu a atenção do público. Ele deveria ter dito que, na verdade, as agências de financiamento público não estavam apenas regulando – estavam financiando a maior parte da inovação no sistema de saúde. A indústria farmacêutica recebe US$ 32 bilhões por ano de financiamento à inovação de uma agência estatal – os Institutos Nacionais de Saúde – sem condição, e ainda assim os contribuintes ainda tiveram que pagar preços exorbitantes por medicamentos que salvam vidas. Não fazia sentido. Acerte o tom”, aconselhou Mariana à Ocasio-Cortez. “Caso contrário, você será apenas uma boa e entediante política social-democrata.”
Em fevereiro de 2019, Ocasio-Cortez divulgou sua primeira resolução como congressista: 14 páginas sobre o Green New Deal, que ela chamou de “moonshot da nossa geração”. Algumas semanas depois, durante uma audiência no Congresso sobre a indústria farmacêutica, ela perguntou a Aaron Kesselheim, professor de medicina de Harvard: “Seria correto, Dr. Kesselheim, caracterizar o dinheiro do NIH que está sendo usado no desenvolvimento e pesquisa como um investimento de capital inicial? O público [população] está atuando como um dos primeiros investidores na produção desses medicamentos. Mas o público está recebendo algum tipo de retorno direto sobre esse investimento dos medicamentos altamente lucrativos desenvolvidos a partir dessa pesquisa?”
“Não”, respondeu Kesselheim.
Numa tarde de maio de 2019, Mariana sentou-se ao lado de David Willets em um auditório lotado na University College London. Ela se levantou e se apresentou à plateia. Então apontou para uma pilha de relatórios amarelos de 100 páginas sobre a mesa. A capa dizia “Uma estratégia industrial do Reino Unido orientada para missão”. “É isso que fizemos no ano passado”, refletiu. “Estamos trabalhando muito e esse é o resultado.”
Quase exatamente um ano antes, a primeira-ministra britânica Theresa May havia proferido um discurso no Observatório do Banco Jodrell sobre a nova estratégia industrial do governo, centrada em quatro grandes desafios: crescimento limpo, mobilidade, envelhecimento saudável e IA. May anunciava então uma missão para cada desafio: reduzir pela metade o uso de energia em novos edifícios até 2030; usar a IA para transformar o tratamento de doenças crônicas; prolongar em 5 anos extras a vida saudável e independente; estar na vanguarda da fabricação de veículos com zero emissões até 2040. Isso já havia sido um resultado direto da influência de Mariana com o então secretário de negócios, Greg Clark. Meses antes, Clark havia entrado em contato com ela para aprender mais sobre políticas orientadas a missões. Mais tarde, ele pediu que ela co-presidisse uma comissão com Willets e coordenasse as equipes de missão interdepartamentais em Whitehall, inspiradas pela DARPA.
Durante um ano, a comissão se reuniu todos os meses. “Descobrimos que colocar em prática os cinco critérios de Mariana para aquelas seriam muito mais difíceis do que o esperado”, diz Rainer Kattel, vice-diretor do IIPP.
Por exemplo, a comissão considerou a missão para o futuro da mobilidade muito ambiciosa e isolada no Departamento de Transportes. “Esse objetivo iria acontecer de qualquer maneira”, diz Kattel. “Retornamos a eles e dissemos que era muito baixo. A maior surpresa foi que eles foram muito abertos às nossas críticas.”
Em relação à missão de envelhecimento saudável, eles discutiram muito a definição de “salubridade”. “Como você mede isso?”, pergunta Mariana. Inicialmente, eles consideraram o cenário de um paciente com Alzheimer completamente independente em casa e auxiliado por tecnologias de ponta. Mas o líder da missão não gostou da ideia. “Por que ficar obcecado com a independência?”, ela disse. “Que tal estimular a co-dependência?”
A colaboração de um ano entre o IIPP e a Whitehall incluiu uma série de workshops sobre a teoria das políticas orientadas a missões, entregues por Mariana e sua equipe aos funcionários públicos de Whitehall. “Afinal, essas pessoas eram constantemente instruídas a sair do caminho e parar de sufocar a inovação. Pode ficar uma coisa deprimente”, constata Mariana. “Dar a eles uma narrativa diferente sobre missões ambiciosas e fazê-los sonhar alto, seus olhos simplesmente se iluminam.”
Algumas dessas conversas, no entanto, foram desafiadoras – particularmente em relação às avaliações de políticas conduzidas pelo Tesouro. “Como chanceler do Tesouro, 20 pessoas o procuram com propostas de políticas diferentes nas quais você pode investir. Como você consegue decidir qual delas terá maior impacto ou é a mais digna?”, reflete George Dibbs, chefe de estratégia industrial do IIPP. O método padrão de avaliação, usado pelos governos no mundo todo, é a análise custo-benefício, na qual é feita uma estimativa quantitativa simplista sobre quanto custará uma política e quanto dinheiro gerará. “É como a antiga mentalidade da guerra do Vietnã: enquanto a contagem de corpos do inimigo for maior, podemos ignorar todas as outras variáveis”, diz Kattel. “É por isso que, por exemplo, alguns novos medicamentos não são pagos pelo NHS porque não há pessoas suficientes que possam se beneficiar deles. Os burocratas realmente perderam a ideia de que de alguma forma são responsáveis pelos pedintes nas ruas.”
A análise de custo-benefício não é adequada para avaliar políticas orientadas à missão, que são inerentemente arriscadas e incertas, e visam criar novos mercados em vez de corrigir os existentes. Como Mariana gosta de ressaltar, nunca teríamos caminhado na Lua se o programa Apollo tivesse sido avaliado pelo custo-benefício.
No lançamento do relatório, Mariana contou à plateia uma história para ilustrar seu argumento: nos anos 1500, os jesuítas tinham um sistema que envolvia abrir uma caixa de dinheiro girando duas chaves simultaneamente – uma pertencia ao contador e a segunda ao dirigente. Isso significava que, para abrir o cofre, “era preciso ter uma visão, mas também pensar no orçamento”, concluiu. “Eu sei que parece estranho, mas é isso que está faltando.”
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Na tarde de junho, Mariana ficou pensativa em seu escritório no centro de Londres. Uma placa de néon com o letreiro “the value of everything” (foto acima) – presente do marido em comemoração ao segundo livro, que tem essa frase como título – adorna uma das paredes. Há também grandes pôsteres penduradas nelas, representando os complexos diagramas de suas missões. Dois dias após o lançamento do relatório de estratégia industrial, Theresa May renunciou ao cargo de primeira-ministra, potencialmente descarrilando toda a política de estratégia industrial e colocando o trabalho de Mariana com o governo, mais uma vez em espera. “Às vezes, você só quer rastejar de volta pra cama ou revidar com mais força”, diz ela. “Costumo sempre fazer o último.”
Mariana enxerga seu trabalho como uma batalha de ideias. “Muita besteira acontece em nome da inovação. Como consultora, é essencial acompanhar e dedicar tempo, argumentar e ajudar as pessoas a acertar os detalhes.”
Recentemente, no Banco Europeu de Investimento, ela teve que dizer a uma audiência formada por economistas: “Por favor, nunca mais escreva a palavra ‘de-risking‘ novamente em nenhum de seus relatórios, porque não é isso que você está fazendo. Você assumiu riscos e deveria poder dizer isso abertamente – meio que sair do armário por causa disso.”
Em uma palestra na Nasa, onde trabalha como parte de um grupo que estuda low-Earth orbit economy, ela pediu que recuperassem a ambição que seria condizente com uma agência de seu calibre. “Acho que muitas pessoas não percebem que a Novartis, uma das empresas farmacêuticas mais ricas do mundo, está trabalhando de graça na Estação Espacial Internacional”, diz ela. “Quem imaginou isso? Mas confira se o relacionamento é simbiótico e não parasitário.”
Em maio, o Parlamento Europeu votou e aprovou a proposta de missão de Mariana para o programa Horizon Europe. Após um longo período de consulta, foram escolhidas cinco áreas de missão: adaptação às mudanças climáticas; câncer; oceanos, mares e águas costeiras saudáveis; cidades inteligentes e neutras em termos de clima; e saúde e alimentação. A Comissão Europeia nomeará agora um conselho de missão com 15 especialistas para cada área. Eles serão responsáveis pela identificação das primeiras missões específicas, seguindo os critérios de Mariana. “Moedas, brincando, me ofereceu o papel de principal musa das missões”, ela ri. “Esse relatório foi a coisa mais importante que escrevi. Agora é um instrumento legal, não pode ser desfeito, a menos que haja outra votação.” Ela faz uma pausa. “Eu influenciei políticos, mas votar no parlamento sobre algo que escrevi é simplesmente fantástico. É isso que eu quero: trazer mudanças.”
Via WIRED.
Crédito da imagem da capa: Matt Holyoak