Esta é a terceira e última parte da série sobre as mentalidades e estratégias de aprendizes autodirigidos altamente eficazes.
Para entender o que eu considero como aprendiz autodirigido e acessar os primeiros 9 comportamentos, veja a parte 1 clicando aqui. Para ver os comportamentos de 10 a 17, acesse a parte 2 clicando aqui.
Obs.: a ordem em que os comportamentos são apresentados não tem nenhum sentido de classificação do tipo “melhor” e “pior” ou “mais importante” e “menos importante”.
18. Fascinação por aprender
É um traço comum de grandes aprendizes autodirigidos – desde Marie Curie a Albert Einstein – se tornar um pouco obcecado pelas suas próprias investigações e descobertas.
Aos olhos da sociedade, talvez eles estejam indo longe demais e deixando de ter outras experiências importantes não relacionadas aos seus temas de interesse.
De certo modo, todo aprendiz autodirigido é um nerd. Sua paixão em seguir o fio de suas curiosidades pode fazer com que ele reconfigure a própria vida no sentido de priorizar tempo e demais condições para se dedicar a elas, inclusive a despeito das expectativas dos outros.
Yaacov Hecht, por exemplo, usa o termo “fascínio” para se referir ao que ocorre com frequência em experiências de aprendizagem autodirigida.
Além disso, ele também afirma que cada jornada de descoberta é pessoal e intransferível, ou seja, por mais que o aprendiz possa compartilhá-la com outras pessoas, só ele sabe exatamente as intensidades que o atravessam ao longo do percurso.
Há quem considere essa paixão algo exagerado ou prejudicial. Não é o meu caso.
19. Pausas, lazer e atividades manuais e físicas
Ao mesmo tempo em que podem se tornar um pouco obcecados pelo processo, aprendizes autodirigidos altamente eficazes compreendem a importância do lazer e das pausas, não apenas pelo seu poder de reabastecer as energias e ampliar a criatividade, mas também pelo seu valor intrínseco – é gostoso viver esses momentos.
Através das pausas, do relaxamento, do ócio e das atividades manuais e físicas, somos capazes de desopilar a mente e deixar decantar nossas perguntas e hipóteses sobre o que estamos aprendendo.
Novos caminhos podem brotar magicamente nessas horas – resultado das combinações imprevisíveis que o cérebro faz enquanto não estamos pensando conscientemente sobre algo.
Além disso, o fazer artístico e o contato com diferentes texturas, cheiros, cores e paisagens contribuem para que o aprendiz autodirigido sustente no corpo a sua aprendizagem, que por vezes pode se tornar desafiadora emocional e até mesmo existencialmente.
Sem sustentação corpórea e os respiros adequados, o aprendiz corre o risco de “travar”, de entrar em looping, de se esgotar. Ele se vê paralisado na movimentação de perspectivas que a espiral da aprendizagem requer dele.
20. Aprendizado social (P e R do CEP+R) é fundamental
Aprendizes autodirigidos não são como os autodidatas estereotipados que “aprendem tudo sozinhos”. No fundo, eles sabem que todo aprendizado se dá em relação.
(Se você leu um livro, é porque alguém o escreveu. Se assiste um vídeo, é porque alguém o gravou. Se acessa um site, é porque alguém o programou. Até mesmo nossas observações e reflexões individuais podem ser consideradas interações entre nós e o que captamos externamente)
Embora consigam se virar por conta própria, aprendizes autodirigidos altamente eficazes entendem que ser intencional ao navegar pelas suas redes de contatos para aprender é uma das estratégias de autodesenvolvimento mais poderosas que existem.
Duas frases capturam bem o espírito do aprendizado social autodirigido:
“Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos”. (Augusto de Franco)
“Eu guardo conhecimento nos meus amigos”. (Karen Stephenson)
Para aprendizes autodirigidos altamente eficazes, momentos de aprendizagem social profunda não ocorrem apenas por acidente – eles são intencionalmente criados.
Entrevistas, convites de mentoria, buddies, pedidos de escuta, tutorias, almoços, viagens, presença em diferentes tipos de eventos e até mesmo conversas durante caminhadas e caronas podem ser estratégias para aprender com o outro.
Além do P de Pessoas do CEP+R, aprendizes autodirigidos também são intencionais ao cultivarem suas Redes.
Eles sabem que, para praticamente qualquer assunto que estejam interessados, é possível encontrar grupos, movimentos e comunidades capazes de fornecer curadoria de qualidade, pertencimento, encorajamento, espaços de prática e novas amizades ao longo do caminho.
21. Aprendizado pela vivência (E do CEP+R) é fundamental
Um dos sinais distintivos de um aprendiz autodirigido é a sua intencionalidade em criar e viver experiências concretas para tangibilizar o aprendizado no mundo real.
Ele sabe que só conteúdo e teoria não são suficientes, por mais dedicado que seja em seus estudos. Para quase tudo que é possível aprender, a ação, a experimentação, a vivência e a prática são aliados indispensáveis.
Um ditado popular que expressa a consciência que o aprendiz autodirigido possui a respeito disso é: “na prática, a teoria é outra”. Outro, já utilizado anteriormente, mas que também é útil aqui, é “o mapa não é o território”.
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes sabem que o mundo real apresenta circunstâncias imprevisíveis, mutantes e complexas – as quais nenhuma teoria, método ou corpo de conhecimento é capaz de prever em sua inteireza.
É por isso que ele cria para si mesmo e/ou aceita convites de oportunidades para vivenciar e praticar o que está aprendendo com frequência.
Experimentos, protótipos, desafios, estágios, voluntariado, pesquisas de campo e visitas técnicas fazem parte do seu repertório de experiências reais de aprendizado.
22. Aprendizado como aventura ou investigação
O processo de aprendizado, aos olhos do aprendiz autodirigido, é uma aventura.
No livro Se Joga Que Aqui Tem Rede, eu defini aventura como “uma jornada emocionante em direção a algo que importa”. Às vezes, nem sabemos exatamente o que é que estamos buscando, mas ainda assim temos o desejo ávido de explorar e descobrir. A curiosidade não demanda explicação racional.
O senso de aventura devolve ao aprendiz o propósito, a diversão e o “frio na barriga” ao aprender. Dessa forma, o percurso se torna significativo e desafiador. Batalhas podem ser impostas, aventuras não.
Outra palavra que captura a essência dos percursos de aprendizes autodirigidos altamente eficazes é investigação.
Assim como ocorre em filmes e séries investigativas, em que vamos descobrindo os segredos dos personagens progressivamente ao longo da trama, processos de aprendizagem autodirigida também são compostos de revelações cada vez mais profundas que nos instigam a ir mais longe.
De maneira oposta, a educação tradicional baseada em ensinamentos compulsórios nos dá “spoilers” o tempo todo.
23. Ressignificação do erro ao aprender | Aprendizado como brincadeira
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes entendem o mundo de maneira intersubjetiva em vez de objetiva e contextual em vez de por uma lente única.
Uma das implicações disso é que as categorias “certo” e “errado” se esvaziam e dão lugar ao que é “adequado” ou “suficientemente bom” para dado momento ou circunstância específica.
Isso os ajuda a lidar de uma maneira positiva com o medo de errar, pois eles não estão tentando ser perfeitos.
Em vez de perceberem a trajetória de aprendizado como uma linha que sai do ponto da imperfeição completa para o ponto da perfeição completa – como se esses dois conceitos de fato existissem –, eles encaram o processo como um território cheio de diferentes rotas possíveis, algumas já conhecidas e outras ainda a serem descobertas ou mesmo inventadas.
Essa contínua disposição para a descoberta e a invenção de novos modos de enxergar e agir é o combustível que permite ao aprendiz autodirigido encarar o processo de aprender como uma brincadeira.
O mais importante ao brincar não é ganhar ou perder nem acertar ou errar, e sim manter a brincadeira interessante e divertida para si e para os outros que estão brincando.
24. Hábito de “estranhar” a realidade | Abertura e habilidade em fazer perguntas
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes possuem o hábito de “estranhar” a realidade, o que significa que eles são muito bons em se questionar constantemente a respeito dos múltiplos significados, entendimentos, contextos e novas possibilidades por trás das coisas.
Isso demanda, de um lado, uma disponibilidade interna para abrir mão de antigos pontos de vista e, então, ser capaz de ver com novos olhos. Trata-se de um tipo especial de desprendimento ou abertura que se conecta intimamente ao comportamento de humildade radical, já tratado aqui.
Somado a isso, “estranhar” o mundo (e a si mesmo) requer uma sensibilidade e uma habilidade em fazer perguntas. É por isso que aprendizes autodirigidos altamente eficazes estão continuamente formulando suas próprias perguntas sobre tudo que os interessa.
Algumas dessas perguntas são mais amplas e estruturantes – podendo gerar jornadas inteiras de investigação, como é o caso do método das “perguntas de aprendizagem” –, ao passo que outras são mais específicas e transitórias.
O mais importante é que uma pergunta “puxa” a outra, de modo que uma investigação autodirigida pode ser compreendida como um fio de perguntas conectadas entre si capaz de gerar descobertas cada vez mais interessantes e profundas – e, claro, novas perguntas.
Uma frase do professor e autor Neil Postman ilustra a importância da habilidade de fazer perguntas para o aprendiz autodirigido:
“Uma vez que você aprendeu a fazer perguntas – perguntas relevantes, apropriadas e substanciais –, então você aprendeu a aprender e ninguém pode impedi-lo de descobrir o que você quer ou precisa saber”. (Neil Postman)
25. Atitude altruísta | Devolver ao mundo o que aprendeu
Em um artigo acadêmico (p. 11-30) sobre as características pessoais de grandes aprendizes autodirigidos da história da humanidade, a professora e pesquisadora norte-americana Lucy Guglielmino, junto de outros autores, defende que o altruísmo é um dos principais traços característicos de quem pratica a autodireção no aprendizado.
Algumas das biografias estudadas para a confecção do artigo foram as de Sarah Grimke e Angelina Grimke (abolicionistas norte-americanas), Konosuke Matsushita (fundador da Panasonic no Japão), Rigoberta Menchú Tum (ativista indígena da Guatemala, ganhadora do Nobel da Paz), Viktor Frankl (psiquiatra e escritor que passou vários anos preso em um campo de concentração nazista) e Bill Gates (empresário fundador da Microsoft).
A partir da análise de suas histórias de vida, é possível deduzir que um elemento motivador significativo para essas pessoas é a sua vontade de devolver ao mundo os frutos de sua aprendizagem.
“Os inovadores retratados, quase sem exceção, buscaram seu aprendizado não apenas para fins de progresso pessoal, mas também, e muitas vezes principalmente, para a melhoria da sociedade”.
Elas podem fazer isso propondo inovações teóricas e práticas em seu campo de atuação, ensinando outras pessoas ou se tornando catalisadoras de mudanças, na forma de líderes e/ou pensadores de fronteira a partir do conhecimento que construíram.
Ou então de maneiras mais modestas e igualmente importantes, contribuindo com pequenos gestos dentro de suas famílias e comunidades a partir do que aprenderam.
O ponto que merece ser destacado é que aprendizes autodirigidos, quer sejam anônimos ou famosos, não são egoístas – pelo contrário. Contribuir com os outros está na raiz do porque eles aprendem.
Não pretendo exaurir o tema ao descrever esses 25 comportamentos, nem posicioná-los como “a verdade” no que se refere às mentalidades e estratégias de aprendizes autodirigidos altamente eficazes.
Também não gostaria que essas características gerassem uma crença num “super-homem” ou numa “supermulher” autodirigida. A ideia não é buscar a perfeição, e sim fertilizar o solo com caminhos potencialmente promissores.
O aprendiz autodirigido é um eterno tornar-se.
Ilustração da capa: Andrea Chronopoulos
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