Aprendizes autodirigidos são pessoas como quaisquer outras, mas que se acostumaram a posicionar o aprendizado como um aspecto central em suas vidas.
Para nós, praticamente tudo vira uma desculpa que nos permite descobrir mais sobre nós mesmos, o outro e o mundo. O modo de experimentação é uma constante. A impermanência assume o comando do barco, e nós sabemos como navegar na correnteza.
O aprendiz autodirigido também subverte o atual cenário educacional, deslocando o foco do professor para o aprendiz, do curso para o percurso, do ensinamento imposto para o aprendizado livre e da pasteurização de conteúdos para a autenticidade que pulsa em cada um.
O aprendiz autodirigido busca, investiga, se aventura, se arrisca, fuça, desenrola, explora diferentes caminhos, se mete onde não é chamado. Pode até fazer cursos, aulas e treinamentos formais, mas mesmo dentro desses espaços ele não abre mão da sua soberania.
Ele ou ela sabe que é assim que as maiores descobertas são feitas. E é assim que as almas mais grandiosas e interessantes vivem.
Ao longo dos anos, eu comecei a perceber vários padrões de comportamento em aprendizes autodirigidos altamente eficazes.
Esses padrões se referem a como essas pessoas encaram a atividade de aprender e a vida em geral – pois, aos olhos delas, uma coisa não se dissocia da outra.
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes podem ser considerados como Extreme Learners, um conceito criado pelo Institute for the Future (Instituto para o Futuro, em tradução livre) nos EUA.
Tendo por base a definição do IFTF, os Extreme Learners são “rebeldes que assumem a responsabilidade pela sua própria educação”. Eles desenham seus próprios currículos, buscam comunidades e ensinam ao mesmo tempo que aprendem.
Uma pena que os resultados completos da pesquisa sobre Extreme Learners iniciada pelo instituto americano não estejam disponíveis. No site da organização é possível encontrar algumas informações, mas a página principal do projeto está fora do ar.
Também por isso – pela falta de um retrato robusto sobre como se comportam essas pessoas –, senti a necessidade de trazer minhas observações sobre o tema.
A seguir, apresento cada um dos padrões que detectei em aprendizes autodirigidos altamente eficazes. Esses padrões podem ser considerados também estratégias (ou mentalidades) de aprendizagem.
Obs. 1: a ordem em que os padrões são apresentados abaixo não tem nenhum sentido de classificação do tipo “melhor” e “pior” ou “mais importante” e “menos importante”.
Obs. 2: para que o texto não ficasse grande demais, eu o dividi em três partes. Abaixo, apresento os 9 primeiros comportamentos.
1. Cara de pau | Tolerância à rejeição
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes têm facilidade para acessar pessoas, projetos, organizações e oportunidades potencialmente relevantes para o seu aprendizado.
Mesmo se forem tímidos em algum nível, eles criam as suas próprias formas de sair por aí fazendo pedidos, compartilhando seu trabalho e seus aprendizados e colecionando novas conexões – não por uma finalidade rasa de “networking”, mas sim porque entendem que a sua rede de contatos representa um manancial de oportunidades de aprendizagem, transformação e convivência com a diferença.
Além disso, eles geralmente são criativos na hora de se candidatar para vagas e projetos, indo além do que é usualmente solicitado e contando as histórias por trás de como aprenderam o que aprenderam.
E, caso não consigam acessar algo que precisam ou desejam, o seu entendimento tende a ser “não foi desta vez” em vez de “não sou bom o suficiente”.
2. Desenho dos próprios “currículos” e caminhos de aprendizado
“O mapa não é o território”. Ainda assim, em muitos momentos é importante ter um mapa.
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes, especialmente no início de uma nova trajetória de aprendizagem, se preocupam em planejar e estruturar minimamente o processo. Eles se perguntam: “qual é o curso que eu quero montar para mim mesmo?”, ou então “se a minha jornada de aprendizado fosse um livro, qual seria o índice?”
As perguntas “o quê”, “como”, “quando (ou por quanto tempo)”, “com quem”, “onde”, e “por quê” formam o mapa do percurso que o aprendiz almeja trilhar.
Momentos de entrega – compartilhamentos e desafios criados pelo aprendiz para si mesmo a fim de marcar a transição rumo uma nova fase e celebrar o que já foi realizado – também são planejados ao longo do trajeto.
Ao mesmo tempo, eles não se prendem totalmente ao planejamento, pois entendem que o próprio processo de descoberta revelará novas possibilidades que não poderiam ser previstas antes. A partir disso, eles adaptam e readaptam o mapa quantas vezes for preciso.
3. “Aprender em voz alta” | Compartilhamento de aprendizados
“Aprender em voz alta” significa ir compartilhando as descobertas e o seu próprio processo de desenvolvimento com frequência ao longo do caminho.
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes tendem a ser excelentes nisso, pois compreendem que o compartilhamento é uma das ações de aprendizagem mais simples e poderosas que existem.
Ao compartilhar, nosso cérebro precisa “arrumar a bagunça” de ideias e pensamentos para que outras pessoas sejam capazes de entender o que aprendemos. Isso contribui para organizar o aprendizado e facilita o “sensemaking”, isto é, a extração de sentido do que aprendemos.
Além disso, compartilhar nos ajuda a ser mais autodisciplinados – pois os outros agora estão “nos vendo” e, por isso, não queremos “fazer feio” – e também amplia o nosso reconhecimento e reputação.
4. Diversificação das fontes de aprendizado a partir do CEP+R
Aprendizes autodirigidos sabem que podem aprender de muitas maneiras diferentes a partir de Conteúdos, Experiências, Pessoas e Redes (CEP+R). A concepção do que significa aprender vai muito além do “consumo” passivo de conteúdos.
Por mais que possa haver uma preferência por parte do aprendiz em trilhar caminhos mais ligados a uma ou duas fontes de aprendizado específicas – por exemplo, alguém que tem a tendência de aprender mais frequentemente a partir de pessoas e redes –, ele se percebe nessas inclinações e se abre para experimentar também as rotas que não costuma trilhar.
(Para entender mais à fundo sobre CEP+R, clique aqui)
5. Criação de “nudges” para si mesmo | Modificação intencional de contextos
“Nudge” pode ser entendido como um mudança na arquitetura de escolha que tem o poder de favorecer certas decisões e ações e/ou dificultar outras.
Por exemplo: ter apenas comida saudável em casa para favorecer o hábito de se alimentar bem e dificultar o hábito de comer junk food.
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes costumam ser muito bons em criar essas “armadilhas” e “empurrãozinhos” para si mesmos com a intenção deliberada de potencializar seu aprendizado.
Alguns exemplos de ações que podem funcionar como nudges para favorecer o aprendizado autodirigido são:
– Marcar encontros periódicos com outras pessoas para compartilhar o que estamos aprendendo (nudge para estimular a autodisciplina e o compartilhamento)
– Ter um buddy (parceiro) para reforçar o compromisso com as nossas rotinas e intenções de aprendizado (nudge para estimular a autodisciplina e o aprendizado social)
– Criar experiências para nós mesmos que funcionem como um desafio de aprendizado dentro do tema que estamos investigando (nudge para estimular o aprendizado pela prática)
– Convidar alguém para ser nosso mentor (nudge para estimular o aprendizado social)
Além disso, pela consciência que possuem a respeito da influência dos contextos/ambientes em suas decisões e ações, aprendizes autodirigidos se tornam hábeis em modificá-los intencionalmente.
Por vezes, eles optam por mudar temporária ou definitivamente alguns contextos de suas vidas para terem acesso a novas descobertas e possibilidades – por exemplo, programar o celular para entrar no modo avião em determinados períodos do dia ou morar por três meses em outra cidade.
Uma frase do autor James Clear ilustra bem essa capacidade de alterar os próprios contextos:
“O ambiente é a mão invisível que molda o comportamento humano. Você não precisa ser vítima do ambiente. Também pode ser o arquiteto”.
6. Humildade radical | Consciência sobre vieses
Quanto mais o aprendiz autodirigido sabe, mais ele se torna aberto para continuar aprendendo, pois ele entende que as perguntas que é capaz de fazer sobre a vida e o mundo crescem junto com suas respostas.
O processo de aprender, assim, torna-se infinito. As verdades são sempre provisórias.
Sua humildade pode ser considerada radical na medida em que ele compreende que existem coisas que ele nem sabe que não sabe. Seu olhar é capaz de captar os vieses que sempre irão existir na hora de se analisar diferentes perspectivas sobre a realidade.
Ele percebe, inclusive, a existência dos seus próprios vieses, formados a partir de suas experiências, relações, da sua cultura, dos seus privilégios e do seu momento e circunstâncias de vida.
A máxima nesse sentido é “tudo que é visto é visto por alguém” – dentro de um conjunto de contextos que o influenciam a ver daquela determinada forma.
7. Otimismo aprendido | Altas crenças de autoeficácia
O otimismo aprendido se refere a um conjunto de mentalidades que nos ajuda a encarar as experiências de uma maneira positiva. É uma habilidade, ou seja, é algo que pode ser desenvolvido.
As mentalidades do otimista são:
– Mentalidade temporária: experiências negativas não irão durar pra sempre. Ex.: “Eu não entendo isso ainda…”.
– Mentalidade específica: adversidade se refere a algo específico. Ex.: “Estou tendo dificuldade com esse problema”.
– Mentalidade que externaliza: reconhece fatores além do eu. Ex.: “essa questão foi complicada”.
De maneira oposta, os pessimistas se comportam da seguinte forma:
– Mentalidade permanente: experiências negativas irão durar indefinidamente. Ex.: “Eu nunca entenderei isso…”.
– Mentalidade universal: adversidade se refere a algo amplo. Ex.: “Sou péssimo em matemática”.
– Mentalidade que internaliza: tende fortemente a se culpar. Ex.: “Não sou inteligente o suficiente para resolver isso”.
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes treinam a si mesmos para conseguirem adotar uma lente otimista ao longo da vida. Sem essa habilidade, eles estariam fadados a desistir ao primeiro sinal de dificuldade.
Indo na mesma direção, as crenças de autoeficácia de uma pessoa dizem respeito ao quanto ela acredita que pode ser bem-sucedida em algo.
Aprendizes autodirigidos tendem a cultivar altas crenças de autoeficácia através da realização de pequenos avanços continuamente – que os ajudam a provar para si mesmos que são capazes – e da escolha por frequentar ambientes e relações onde outras pessoas também estão avançando naquilo que desejam – o que os inspira a fazer o mesmo.
8. Momentos de solitude + Momentos de conexão
Aprendizes autodirigidos altamente eficazes sabem como ninguém a importância de se planejar diferentes tipos de momentos.
Às vezes, o necessário para avançar é ter um momento consigo mesmo – seja para ampliar o foco e a concentração, para conseguir se aprofundar em conteúdos e reflexões ou até mesmo para fazer uma pausa e reabastecer as energias. Essa experiência de solitude intencional pode durar desde algumas horas até várias semanas, meses ou anos.
Conta-se que Joseph Campbell, um dos mais famosos mitólogos do Ocidente e o criador da Jornada do Herói, escolheu passar alguns anos recolhido em uma cabana a fim de poder estudar vários livros que considerava importantes para a sua formação.
Somado a isso, aprendizes autodirigidos também manipulam seus contextos no sentido de criar ou abraçar oportunidades de conexão genuína com outras pessoas.
Desde um convite para almoçar com um mentor até um retiro ou imersão com o objetivo de reunir um grupo de interessados em um mesmo tema, as possibilidades de criação de momentos de aprendizado social são inúmeras.
9. Aprendizado online + offline
Hoje, é como se a nossa existência se dividisse em dois mundos: o físico e o digital. A criação do universo digital mudou drasticamente a maneira pela qual agimos no mundo e, em especial, como aprendemos.
Notadamente reconhecidos pela sua habilidade em criar a própria aprendizagem a partir do online – seja por meio do acesso a conteúdos, cursos, trocas com outras pessoas e participação em redes, fóruns e comunidades –, os aprendizes autodirigidos também percebem a importância do aprendizado offline.
Um dos maiores benefícios do offline é a sua capacidade de favorecer a serendipidade, isto é, aquelas descobertas que você nem sabia que estava procurando.
Além disso, é principalmente no ambiente presencial que conseguimos incubar nossas perguntas e ideias por meio de atividades físicas e manuais, ócio e momentos de relaxamento.
Para que a aprendizagem seja criativa, é essencial reservar tempo para viver esse tipo de experiência, pois é aí que o nosso cérebro consegue “decantar” as informações e recombiná-las de maneiras surpreendentes.
Além disso, certas experiências de aprendizado offline são simplesmente insubstituíveis: ler um livro físico acompanhado de um café quentinho, conversar com alguém olhando nos olhos, praticar certas habilidades como cozinhar, pintar ou fotografar etc.
Na semana que vem, será publicada a parte 2 do artigo com os seguintes comportamentos:
– Alimentar um commonplace book
– Portfólios > Certificados
– Não dependência de cursos e mestres | Capacidade de “hackear” a educação formal
– Mentalidade do “tudo é convite”
– Questionamento de regras e estruturas
– Aprendizado a partir da curiosidade
– Aprendizagem como criação, e não reprodução
– Recusa à idolatria | Crença na igualdade de inteligências
E para você, quais mentalidades e estratégias são importantes ao aprender de maneira autodirigida? Compartilhe nos comentários!
Essa série continua. Clique aqui para a Parte 2 e aqui para a Parte 3.
Imagem da capa: Debby Hudson
[…] Esta é a segunda parte do artigo sobre as mentalidades e estratégias de aprendizes autodirigidos altamente eficazes. Para entender o que eu considero como aprendiz autodirigido e acessar os primeiros 9 comportamentos, veja a parte 1 do texto clicando aqui. […]